Luta antissistêmica

Interseccionalidade e luta são caminho para avanço de pautas feministas no governo Lula

Para ativistas, avanços em temas universais beneficiam mais as mulheres, mas pautas específicas não podem ser esquecidas

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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É um consenso entre estudiosas e ativistas que o momento atual representa progressos, por um lado, mas implicará em limites, por outro - Marcelo Camargo/Agência Brasil

Neste 8 de março, é celebrado o Dia Internacional de Luta das Mulheres, que neste ano se apresenta em uma conjuntura histórica. Após quatro anos de governo de Jair Bolsonaro (PL), marcado por ataques aos direitos das mulheres, o início do novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) traz uma atmosfera de esperança e confiança para os movimentos de mulheres, a despeito dos limites impostos pela conjuntura política e as estruturas patriarcais.

O clima de alívio se construiu a partir dos acenos feitos pelo petista desde a sua campanha eleitoral, no ano passado, até o anúncio do pacote de 25 medidas e programas em prol das mulheres, feito neste 8 de março. Entre as políticas, estão a criação do Dia Nacional Marielle Franco contra a violência política de gênero, linha de crédito com taxa menor para agricultoras familiares ou empreendedoras e lançamento do Programa Dignidade Menstrual para pessoas em situação de vulnerabilidade.

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As ações dão a tônica do que serão os próximos quatro anos e contrastam com o governo anterior. A título de comparação, a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro foi marcada por retrocessos, com manifestações contrárias a políticas públicas de proteção e promoção dos direitos das mulheres e ataques a iniciativas que visam garantir a equidade de gênero e o combate à violência contra a mulher.

Entre tais retrocessos, estão o fim do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, a redução de recursos para políticas públicas de proteção às mulheres, o veto à campanha publicitária contra a violência doméstica e a falta de apoio a programas de educação e conscientização sobre a igualdade de gênero.

Barreiras aos avanços

A despeito dos acenos e medidas que caminham para o avanço das pautas ligadas às mulheres neste governo, é um consenso entre estudiosas e ativistas que o momento atual representa progressos, por um lado, mas implicará em limites, por outro. 

Nessa linha, Flávia Biroli, professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora do CNPq, afirma que se trata de "um governo que procura avançar novamente numa perspectiva que tem a justiça social como elemento importante e parece haver um reconhecimento claro de que, sem olhar para as mulheres e para as pautas de gênero e raciais, não há justiça social".

Esse avanço, entretanto, ocorrerá diante de um quadro "desvantajoso de condições estruturais e políticas" devido tanto a "limites estruturais do capitalismo e do Estado patriarcal quanto pela oposição muito ativa a essas pautas igualitárias, que está dentro das instituições", como à atuação da extrema direita.

"Não é apenas pelo lado estrutural do capitalismo que este momento restringe a capacidade estatal em muitos sentidos, mas também porque há uma atividade em vários espaços sociais e políticos que se apresenta com o objetivo de bloquear pautas igualitárias e reverter avanços nesse sentido", afirma Biroli.

"A gente tem que entender que esses grupos aprenderam a fazer política nos últimos anos. A extrema direita hoje é uma realidade do país com a qual a gente lida. Não é o conservadorismo de antes. Não é a visão neoliberal de antes. É uma extrema direita organizada, que tem diferentes formas de ativar políticas anti-igualitárias na sociedade e nos espaços institucionais, como no Judiciário."

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Maria Sylvia Aparecida de Oliveira, coordenadora de Políticas de Promoção da Igualdade de Gênero e Raça do Geledés Instituto da Mulher Negra, lembra que o país elegeu um Congresso Nacional "hostil a pautas de proteção e promoção dos direitos das mulheres". Para a ativista, "há uma expectativa de que o quadro em relação à pauta das mulheres melhore. Mas a gente tem todo um trabalho de convencimento que não sabemos se é possível sobre um Congresso que é basicamente de direita".

Hoje, o Partido Liberal, do ex-presidente Jair Bolsonaro, ocupa o posto de maior bancada da Câmara dos Deputados, com 99 congressistas. No total, as mulheres são apenas 90 de 513 parlamentares, o que representa 17%. Quanto à raça, 71,12% são brancos.

Soma-se à baixa proporção de mulheres a presença de parlamentares que atuam no sentido contrário à promoção dos direitos femininos, como as deputadas Carla Zambelli (PL-SP) e Bia Kicis (PL-DF) e a senadora Damares Alves (Republicanos-DF).

Zambelli, por exemplo, já classificou o movimento feminista como desnecessário, e a Marcha Mundial das Mulheres, uma das principais organizações em defesa das mulheres, como uma "concentração de mulheres sem causa". Na mesma linha, Bia Kicis já deslegitimou uma campanha contra assédio contra mulheres. Na ocasião, ela disse: "Ai do homem que for homem, tá ferrado com essas feministas. Paquera, cantada, tudo isso é crime quase que hediondo".

Damares Alves, por sua vez, que foi ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos no governo Bolsonaro, chegou a dizer que o feminismo "destrói" a família e "mata mulheres". Durante seu período como chefe da pasta, o orçamento destinado às políticas para as mulheres caiu progressivamente, até atingir seu menor valor em 2022: R$ 43,28 milhões, segundo levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos.

Para Maria Sylvia há a expectativa de pelo menos "reverter todo o retrocesso que tivemos nos últimos anos na pauta das mulheres e, se possível, avançar em outras áreas". A coordenadora do Geledés lembra que "o Ministério das Mulheres também é mínimo, porque o novo governo está trabalhando com um orçamento elaborado pelo governo anterior, que não tinha a mínima intenção de colocar recursos em pautas relativas à questão das mulheres. É nesse cenário que a gente busca reverter os retrocessos que tivemos e ampliar o direito das mulheres", afirma.

"Esse novo governo revogou uma série de decretos, normas e portarias. Isso nos ajuda a tomar fôlego para pensar quais serão os próximos passos para reivindicar para o novo governo as pautas mais importantes para as mulheres negras e para as mulheres de uma forma geral. Nós, movimento de mulheres negras, somos hoje um movimento político autônomo e podemos levar as nossas pautas para esse novo governo."

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Na mesma linha, Nalu Faria, coordenadora da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) – a mesma atacada por Zambelli – no Brasil, acredita que "existe o reconhecimento de que é um governo que traz a esperança e que resgata a possibilidade de mudança, de participação popular e de diálogo com os movimentos de mulheres". Ao mesmo tempo, no entanto, "é um governo com as suas contradições, devido à correlação de forças na sociedade, à própria composição do governo e ao que significa hoje um governo com visão de transformação nos marcos do capitalismo".

A superação desse quadro, acredita a coordenadora do MMM, só pode vir da capacidade do movimento em mobilizar a sociedade. As portas desse caminho podem ser abertas a partir da defesa de políticas transversais para todos e todas, mas que impactam mais diretamente a vida das mulheres, como é o caso do aumento do salário mínimo. "Com certeza nós teremos avanços, mas também limites", afirma.

Luta e interseccionalidade 

Há somente um caminho para a superação dessas barreiras, que é o diálogo aliado ao enfrentamento. Analba Brazão Teixeira, educadora do SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, de Recife, afirma que derrotar Jair Bolsonaro nas urnas "foi uma grande conquista", mas não significa a resolução de todos os problemas. "Ainda há muitas coisas para resolvermos. Devemos continuar lutando, apoiando o governo, mas também criticando quando necessário. Somos um movimento que busca empurrar o governo cada vez mais para a esquerda", afirma.

"A história não é linear. Às vezes conquistamos, às vezes perdemos. Por isso, é importante estar presente na luta, não só resistindo, mas também lutando e construindo novas percepções e estratégias para cada momento e contexto que enfrentamos."

Teixeira defende que o momento deve ser aproveitado para implementar mudanças mais profundas, como descriminalização e regulamentação do aborto, que impacta diretamente as mulheres, mas também aquelas mais gerais que impactam especialmente as mulheres, como demarcação de terras indígenas, redistribuição de terras, construção de moradias, valorização do salário mínimo e pleno emprego.

Os dados mostram que as mulheres negras têm as piores taxas em relação aos outros grupos demográficos quando o assunto é renda e emprego, por exemplo. As mulheres negras apresentaram, em média, rendimentos 71,31% menores do que os homens brancos. O dado vem de um artigo de Janaína Feijó, pesquisadora da área de Economia Aplicada do FGV IBRE, com base nos dados da PNAD do quarto trimestre de 2019 e da Relação Anual de Informações Sociais.

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Quando os rendimentos são corrigidos com relação a fatores como nível educacional, ocupação e setor em que trabalham, idade, experiência, horas trabalhadas, localização geográfica, a diferença cai, mas persiste: mulheres negras recebem 26,98% a menos do que homens brancos.

"Para nós, a demarcação das terras indígenas é uma pauta feminista, o genocídio do povo negro é uma pauta feminista. A maioria das pessoas afetadas são mulheres, mulheres negras, população pobre. É preciso fazer a articulação não só da questão das mulheres com a questão racial, mas também com a questão de classe. É uma luta antissistêmica", diz Teixeira.

Trata-se de uma abordagem interseccional dos problemas que afetam a realidade brasileira. Isto significa abordar não apenas o machismo que incide sobre as mulheres, mas também o racismo e a questão de classe, que difere a realidade e as demandas de uma mulher branca de classe alta de outra mulher negra e de classe baixa.

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Heloisa Buarque de Almeida, professora de Antropologia e Gênero da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do Núcleo de Estudos dos Marcadores Sociais da Diferença (Numas), afirma que não há mais como fazer política sem a abordagem interseccional.

"A abordagem interseccional é fundamental. Não tem mais como fazer política sem isso. Eu acho que é fundamental ter um Executivo preocupado em ter mulheres negras, indígenas e trabalhadoras importantes nos cargos. Isso faz toda a diferença. É preciso manter esse tema na pauta para não esquecermos de todos os temas", afirma a docente.

"Temos temas que são transversais e que podem unificar as mulheres em torno de algumas coisas, assim como podem unificar homens e mulheres, brancos e negros. A luta não é só por uma boa política, mas também por considerar a diversidade social e ter efeitos para todo mundo. Por exemplo, ter assistência integral de saúde é fundamental e o SUS tem um modelo universal porque parte de uma política interseccional que reconhece a diversidade."

Edição: Nicolau Soares