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Com compromisso assumido internacionalmente, governo deve priorizar avanço nos direitos humanos

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Brasil assumiu perante a comunidade internacional compromissos em matéria de direitos humanos que merecem nossa forte atenção, vigilância e monitoramento nos próximos quatro anos - Mídia Ninja
Tarefa do Brasil é priorizar a agenda de direitos humanos, inclusive no plano do orçamento público

Por Camila Gomes*

A 52ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) encerrou-se na última terça-feira (4), em Genebra. E nela o Brasil assumiu perante a comunidade internacional compromissos em matéria de direitos humanos que merecem nossa forte atenção, vigilância e monitoramento nos próximos quatro anos.

Representantes do novo governo federal já vinham participando de alguns fóruns com o objetivo de demarcar a mudança de posicionamento do país na seara internacional em relação a diferentes temas. Foi assim na COP do Clima em novembro, quando jornais ao redor do mundo noticiaram a participação de Lula na Conferência no Egito e reproduziram a mensagem transmitida naquela oportunidade: o Brasil está de volta. Mas a mensagem de mudança anunciada por Lula na COP 27 precisava ser levada a outros importantes espaços das Nações Unidas, como o Conselho de Direitos Humanos.

Composto por 47 Estados-membros e vinculado ao Alto Comissariado das ONU para os direitos humanos, o Conselho de Direitos Humanos apoia a Assembleia Geral das Nações Unidas e constitui, desde sua criação em 2006, o principal órgão multitemático voltado à garantia dos direitos humanos das pessoas de todo o mundo.

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Dentro do período de aproximadamente quatro anos e meio, cada país é sabatinado e analisado pelos demais, que avaliam o grau de cumprimento das obrigações assumidas perante a comunidade internacional em matérias de direitos humanos e fazem recomendações para avanços na área. É a chamada Revisão Periódica Universal (RPU), que é tratada com muita importância pelos países porque está fortemente ligada à imagem que o país quer transmitir perante a comunidade internacional.

O Brasil passou, pela primeira, segunda e terceira Revisão Periódica Universal em abril de 2008 (1º ciclo), maio de 2012 (2º ciclo) e maio de 2017 (3º ciclo), respectivamente. O último ciclo encerrou oficialmente nesta semana, com a adoção pelo Estado brasileiro das recomendações do 4º ciclo. Concluída essa etapa, a nova revisão do Brasil pelo Conselho ocorrerá em 2027.

Enquanto Lula participava da COP Clima, no mesmo período o governo Bolsonaro fazia a sua última participação no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra. Sua participação foi um verdadeiro show de horrores, um misto de fake news, negacionismo e lemas fascistas. Apesar da importância desse espaço, tal participação recebeu pouca atenção da imprensa brasileira, assim como aconteceu com a etapa final desse processo, concluído há poucos dias.

A revisão do Brasil pelo Conselho ocorreu ao final do governo do ex-presidente Bolsonaro, a partir, portanto, das informações e dados relativos ao período, ao passo que a adoção das recomendações foi feita pelo governo recém-empossado do presidente Lula. Essas circunstâncias contribuíram para que esse processo fosse especialmente particular e com vários ineditismos.

Ainda que complexo, vale dizer que é natural que a passagem de um ciclo da RPU para outro envolva mais de um governo, com diferentes posturas em relação à agenda de direitos humanos. Inclusive isso chama atenção para o fato de que as obrigações assumidas perante a comunidade internacional em matéria de direitos humanos são de responsabilidade do Estado, e não de um governo específico.

Isso reforça o que foi muito enfatizado pela sociedade civil brasileira no debate público no último período: a promoção e proteção aos direitos humanos não estão suscetíveis à discricionariedade dos governantes, são um compromisso permanente (seja por determinação da Constituição Federal, seja em razão das obrigações assumidas em tratados internacionais) e assim devem ser tratados.

Com a derrota eleitoral de Bolsonaro e a péssima imagem externa do Brasil na garantia dos direitos humanos, e considerando que a sabatina do Estado brasileiro pelos demais países se daria no apagar das luzes do governo do ex-presidente, esperava-se uma participação mais discreta ou protocolar da Delegação Brasileira que se deslocou para a Suíça, em novembro. Mas não foi o que se viu. Com uma delegação enorme, o governo brasileiro foi para a Revisão Periódica Universal fazendo uma defesa feroz do bolsonarismo e do seu legado de destruição das políticas de direitos humanos. De modo inédito também, a Delegação do Brasil sob condução de Bolsonaro rejeitou naquele momento 17 das recomendações feitas pelos demais países, incluindo aquelas relacionadas a direitos dos povos indígenas, direitos sexuais e reprodutivos, e ao reconhecimento do Conselho Nacional de Direitos Humanos como INDH.

Meses depois, coube ao Governo Lula participar da fase final da RPU em Genebra. Em março deste ano o Brasil adotou 304 das 306 recomendações recebidas, encerrando o processo de revisão dos direitos humanos no Brasil. A ação inaugura o 4° Ciclo da Revisão Periódica Universal.

O ciclo anterior (de 2018 a 2022) deixou um cenário de destruição. Das 246 recomendações recebidas pelo Brasil em 2017, no 3º ciclo da Revisão Periódica Universal, apenas uma foi considerada cumprida e 80% foram consideradas descumpridas. Os indicadores do último ciclo sobre a situação dos direitos humanos no Brasil foram tão marcadamente ruins que a sociedade civil, em seus relatórios, precisou atualizar a metodologia até então existente, criando a categoria "não cumprida e em retrocesso", em que foram enquadradas 114 recomendações, o que corresponde a 47% do total. Essa foi a avaliação feita pelas 31 ONGs brasileiras que integram o Coletivo RPU Brasil - entre elas a Terra de Direitos - e reunidas em um relatório entregue na ONU.

Leia mais: Brasil deixa de cumprir 80% das metas estabelecidas pela ONU para os direitos humanos

A passagem do Brasil nesta última Revisão Periódica Universal é bastante importante, porque a documentação reunida - que inclui relatórios feitos pelo governo, por sociedade civil, informações contidas nos documentos e relatórios elaborados pelos Procedimentos Especiais, órgãos de tratados de direitos humanos e outras entidades da ONU, entre outros - constitui um verdadeiro inventário da atual situação dos direitos humanos no país e do saldo de violações deixados pelo período anterior.

A RPU é importante, também, porque o conjunto de recomendações recebidas consolida um rol de prioridades em matéria de direitos humanos, dentre elas: proteger as defensoras e defensores de direitos humanos; fortalecer a proteção legal e institucional dos povos indígenas e comunidades quilombolas, incluindo os direitos territoriais; proteger direitos das meninas e mulheres, e da comunidade LGBTQIA+; combater o racismo e discriminação; erradicar o racismo estrutural identificado na arquitetura das forças policiais e construir uma política de segurança pública orientada pelos direitos humanos; garantir a participação social; combater os discursos de ódio; rechaçar projetos de lei que pretendem ampliar o conceito de terrorismo sobre atuação de movimentos sociais; garantir que o Conselho Nacional de Direitos Humanos funcione em consonância com os Princípios de Paris, assegurando sua autonomia inclusive financeira, dentre outros.

O próximo período (2023-2026) - coincidente com o novo mandato presidencial - diz respeito ao tempo para implementação pelo Brasil das recomendações feitas pelos demais países que compõem o Sistema ONU para o avanço dos direitos humanos.

No início deste 4ª ciclo, há, do ponto de vista das organizações da sociedade civil, uma sensação de dever cumprido, pois logrou-se - em um contexto interno bastante adverso - produzir informações e dados sobre o cenário de direitos humanos no Brasil e provocar os demais países a incorporar em suas recomendações a interseccionalidade de raça e gênero, em uma mobilização sem precedentes da sociedade civil brasileira junto ao Conselho da ONU. Como ressaltamos na manifestação submetida pela Terra de Direitos ao Conselho, do ponto de vista da sociedade civil, há de fato um sentimento de esperança no ar, ao mesmo tempo em que há um sentido de urgência, porque o saldo de violações a direitos deixado pelo último período é muito grande. Urgência para que os direitos humanos ocupem um espaço prioritário, inclusive do ponto de vista orçamentário, na agenda do atual governo federal.

*Camila Gomes é coordenadora de incidência internacional de Terra de Direitos.

 

**A Terra de Direitos é uma organização de Direitos Humanos que atua na defesa, na promoção e na efetivação de direitos, especialmente os econômicos, sociais, culturais e ambientais (Dhesca). Criada em 2002, a Terra de Direitos incide nacional e internacionalmente nas temáticas de direitos humanos e conta com escritórios em Santarém (PA), em Curitiba (PR) e em Brasília (DF).

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Nicolau Soares