Tormenta econômica

'O FMI encara os países como o balanço de uma empresa', diz economista argentino

Enquanto 39% dos argentinos estão abaixo da linha da pobreza, FMI pressiona o governo para a redução de gastos públicos

Brasil de Fato | Buenos Aires, Argentina |
Encontro na semana passada entre Alberto Fernández e Joe Biden; EUA é o país de maior peso nas decisões do FMI. - Jim Watson/AFP

Durante o Fórum de Desenvolvimento da China, no final de março, a Diretora-Geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina Georgieva, destacou as consequências econômicas da pandemia e da guerra na Ucrânia. "2023 será mais um ano desafiador, com uma desaceleração do crescimento mundial", disse. Para ela, "a fragmentação geoeconômica poderia dividir o mundo em blocos econômicos rivais, o que resultaria em uma divisão perigosa que deixaria a todos mais pobres e menos seguros".

A alta da inflação, instabilidade no preço e fornecimento de alimentos e energia afetam a economia global. A visão do órgão dirigido por Georgieva sobre as políticas econômicas dos países endividados com o FMI, no entanto, sustenta um posicionamento rígido sobre as alternativas possíveis para o Sul Global.

A Argentina vivencia esta ambígua relação com o órgão. Busca o pagamento de uma dívida que o próprio presidente Alberto Fernández disse que deveria ser investigada, já que o empréstimo excede em muito o valor que corresponderia a uma economia como a argentina. O acordo foi fechado durante os governos de Donald Trump, nos Estados Unidos (país com maior poder de decisão no FMI), e Mauricio Macri, na Argentina. Enquanto paga altos juros, a Argentina atravessa uma severa crise econômica, com 39,2% da população abaixo da linha da pobreza, segundo dados de março do Instituto Nacional de Estatística e Censos da Argentina (Indec).

A Argentina acaba de completar um ano do acordo com o FMI para ampliar o prazo de pagamento da dívida de US$ 45 bilhões. As condições econômicas do país, contudo, não melhoraram. A inflação disparou e, mais recentemente, uma das piores secas da história impactam os cofres públicos do país. Tudo isso pressiona para uma constante renegociação de pontos de um acordo.


Reunião bilateral nos EUA entre equipes de Alberto Fernández e Joe Biden, na semana passada. / Casa Rosada

"Entre outras coisas, o Fundo pede redução do gasto público", pontua o economista argentino e professor de Relações Internacionais Ricardo Aronskind. "O governo argentino apontou que, devido à seca, a arrecadação tributária vai ser menor. E o Fundo exige, então, que o governo argentino reduza os subsídios dos serviços de energia, o que se reflete diretamente no bolso da população – e geram impacto inflacionário. O FMI pressiona sem nenhum tipo de compreensão social e política que isso implica", afirma. "É como se visse o balanço de uma empresa: caíram as vendas, fechem alguma sucursal. Não é a mesma coisa."

O episódio mais recente foi a aprovação da lei de moratória, um programa de financiamento de dívidas previdenciárias que permitirá que cerca de 800 mil pessoas em idade de se aposentar acessem esse direito. O FMI reagiu à aprovação no Congresso argentino: de maneira vaga, disse que a medida pesaria nas contas e que, já aprovada, a lei deveria atender "apenas os mais necessitados".

"O FMI foi muito enfático nesse ponto. Mas a questão é que cada vez, surgem mais necessidades", aponta o economista Emiliano López, coordenador do Instituto Tricontinental. "A lei de moratória da aposentadoria é para trabalhadores que não contribuíram os anos necessários, porque trabalharam na informalidade toda sua vida. Qualquer um nessa condição necessitaria ser atendido por essa lei."

Negociação com os Estados Unidos e o FMI

Na semana passada, Alberto Fernández e seu Ministro da Economia, Sergio Massa, foram aos Estados Unidos em busca, especialmente, de uma renegociação da meta de reservas do Banco Central para este trimestre, dado o impacto da seca que enxugou as reservas. As exportações de oleaginosas e cereais, principal fonte de divisas para a Argentina, foram 65% mais baixas em relação ao mesmo período do ano passado.

No último sábado, após a insistência das autoridades de Buenos Aires, o FMI aceitou flexibilizar a meta de reservas internacionais líquidas para este ano, de US$ 4,8 bilhões de dólares para US$ 2 bilhões – com uma previsão de compensação em 2024. Assim, foi aprovada a quarta revisão do FMI sobre o cumprimento do acordo por parte da Argentina, com o monitoramento trimestral também contemplado como parte do acordo. Nenhum outro ponto foi renegociado.

"Essa foi a base da negociação: como reduzir a meta de reservas, porque a meta do ano passado foi de US$ 5,4 bilhões, acima dos US$ 5 bilhões exigidos pelo Fundo", destaca López. "O resto dos pontos do acordo ficaram intactos: a redução do déficit fiscal; a restrição monetária e aumento da taxa de juros, reais e positivas como política de Estado; a redução dos controles cambiais e uma unificação do tipo de dólar. O que fica evidente é o monitoramento super estrito das metas por parte do FMI e do governo estadunidense."

A redução do déficit fiscal – ou seja, a diferença negativa entre a arrecadação e os gastos do país – é uma das principais metas que não só o FMI, mas também da política neoliberal. Isso implica, principalmente, em cortes do que se consideram "gastos". Os movimentos sociais na Argentina enfatizam: primeiro, as necessidades da população. E, em ano eleitoral, o governo está especialmente pressionado.

"O governo faz um equilíbrio precário entre pressões da direita e a especulação com o outro lado, para que não venham pressões similares", afirma Aronskind. "Ou seja, o governo escuta com muita atenção os protestos da direita, sabendo que deve cumprir um pouco com a base social, mas não muito. É uma situação confusa."

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"O governo traçou uma trajetória de medo dos setores mais concentrados da economia, e chega nesta reta final da gestão completamente debilitado, sem instrumentos e facilmente atacável pelos setores que especulam com o tipo de câmbio, que retêm as colheitas e não as vendem, pelas empresas que aumentam os preços, especialmente dos alimentos, ignorando os acordos com o governo", afirma Aronskind. "Quem está governando é o mercado."

Para López, este será o desafio deste ano eleitoral. "É muito provável que as empresas que fixam os preços em função do que devem ser seus lucros em dólares acabem pressionando por uma desvalorização [do peso argentino]", pontua. "Esse é um grande problema, e o estranho é que sequer foi discutido com o FMI, o debate gira em torno apenas da redução do déficit fiscal."

Com pouca margem de negociação, a Argentina, assim como outros países sujeitos ao FMI, como os caribenhos, recebem propostas profundamente assimétricas por parte do país de maior peso no órgão, os EUA.

"Na recente visita aos EUA, o presidente e o ministro da Economia pediram que os EUA intercedam no FMI para flexibilizar as condições que o órgão exige, e, em troca disso, Joe Biden pediu que a Argentina freie os projetos estratégicos com a China", ressalta Aronskind, enumerando alguns dos projetos da China com a Argentina: construção de represas no sul, uma central atômica, um porto na Tierra del Fuego, o sistema 5G.

"Qual é a proposta dos EUA? Não é uma chuva de investimentos, infraestrutura, nada. O apoio norte-americano é muito pouco importante",  diz Aronskind. "Neste momento, a Argentina deveria renegociar completamente este acordo devido à terrível emergência que o país está atravessando."

Edição: Thales Schmidt