Crise política

O que está por trás do processo de impeachment do presidente do Equador?

Conforme anuncia seu slogan, Lasso tem promovido verdadeiro “Governo do Encontro”, porém com máfias e pobreza

São Paulo | Brasil |
Guillermo Lasso, que hoje enfrenta forte instabilidade política, toma posse em 24 de maio de 2021 em Quito, capital do Equador - Google Creative Communs

O Equador vive uma profunda crise política, econômica e social, cujas origens remontam ao início do governo do ex-presidente Lenin Moreno. Eleito pelo mesmo movimento que Rafael Correa, embora tenha traído o partido, a ideologia e seu plano de governo após seis meses de poder, Moreno fez uma virada radical à direita e aplicou todas as medidas neoliberais clássicas, isto é, o receituário do Consenso de Washington.

Durante o governo de Moreno, o país fez um programa de ajuste estrutural após acordo de financiamento com o FMI; priorizou pagar a dívida externa antes de investir em políticas públicas, até mesmo durante a pandemia, o que resultou numa das maiores taxas de mortes do mundo; aprovou uma Lei de Desenvolvimento produtivo que retirou os elementos redistributivos e a capacidade do Estado de intervir na economia, cortou subsídios aos combustíveis atrelando seu preço ao mercado internacional e tentou privatizar instituições e empresas públicas. 

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Do mesmo jeito que aconteceu com outras lideranças da região, mas especialmente com o presidente Lula no Brasil e a vice-presidenta da Argentina, Cristina Kirchner, Moreno desencadeou uma perseguição política implacável contra Rafael Correa, o presidente progressista do Equador entre 2007 e 2017, bem como contra muitos outros quadros políticos de seu movimento usando o lawfare como principal arma. 

Sob a bandeira do antipopulismo, que ganhou legitimidade e consenso social com a consulta popular de 2018, as velhas elites fizeram os maiores esforços para impedir qualquer ação política da Revolução Cidadã (RC), o movimento de Correa. O partido político da RC, chamado de Alianza País, foi expropriado por Moreno e seus capangas que, depois, impediram por três anos que a RC criasse um outro partido.

Guillermo Lasso, eleito presidente em 2021, continuou na mesma linha que Moreno: políticas econômicas neoliberais e desmonte do Estado,  perdendo muita capacidade de administrar serviços e de responder à sociedade. Uma parte da mesma burocracia, que foi “correísta”, acompanhou Moreno e Lasso no processo de desmonte.

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Moreno e Lasso também reprimiram de forma muito mais autoritária e violenta os protestos populares, especialmente as fortíssimas manifestações de outubro de 2019 e junho de 2022, com ampla participação popular e lideradas pelo movimento indígena. Após o fim da última ditadura no país (1979), nunca houve tantos mortos em protestos populares - 11 e 7, respectivamente. 


Indígenas marcham em direção à Casa de la Cultura em Quito, em 24 de junho de 2022 / Cristina Vega RHOR/AFP

Durante esses dois governos a fome, a pobreza e a desigualdade aumentaram, o que pode ser explicado, em parte, pelas condições mundiais: queda do preço do petróleo, que é o principal produto de exportação do Equador, a pandemia de COVID-19 mas, sobretudo, pelas próprias políticas dessas gestões à frente do país latino americano. Apenas 32,5% da população equatoriana tem o que a Organização Internacional do Trabalho (OIT) define como emprego decente. Além disso, a pobreza aumentou de 22% em 2017 para 32% em 2021.

Deterioração econômica e migração

No Equador, a migração ao exterior em busca de oportunidades tem sido uma constante nos últimos 50 anos, mas esse processo acirra e se transforma num verdadeiro “êxodo” nas crises econômicas. E isso é o que está acontecendo agora. Devido à destruição do Estado, não há dados atuais e confiáveis de migração, mas estima-se que apenas entre 2021 e 2022, 190 mil pessoas emigraram, ou seja, 1% da população do país - cerca de 17 milhões de habitantes. 

Dados compilados num relatório do Ministério das Relações Exteriores do Equador apontam que, entre 2016 e 2018, 120 mil equatorianos viajaram para o México e não regressaram.  Em 2018, 2.000 equatorianos foram detidos enquanto tentavam atravessar a fronteira entre México e EUA, número que cresceu em mais de 40.000 nos primeiros seis meses de 2021. A estimativa é que a cada pessoa detida, três conseguem atravessar a fronteira. 

Segundo dados do Banco Central do Equador, as remessas - recursos enviados por imigrantes a seus países de origem - cresceram num ritmo vertiginoso como consequência da migração, alcançando em 2021 US$ 4,3 bilhões, o equivalente a 3,45% do Produto Interno Bruto (PIB), um aumento de 30,7% em relação ao ano de 2021. Em dezembro de 2022 o montante chegou a US$ 4,74 bilhões,  8,7% a mais do que no ano anterior, chegando a uma fatia de 4,09% do PIB.

Aumento da criminalidade

Diferentemente do que ocorreu no período neoliberal - entre os anos 1980 e meados de 2000 -, nesta última fase aumentaram enormemente a criminalidade e as mortes violentas, com presença muito visível de pistoleiros e “novos” crimes hediondos, que são noticiados todos os dias pela imprensa equatoriana. 

A taxa de homicídios por 100.000 habitantes, que era de 5,8 em 2017 - depois de despencar do índice de 18 em 2010 - chegou a 24,1 em 2022, o número mais alto da história. Nas pesquisas de opinião, a população identifica a insegurança como o maior problema do país, seguido pela corrupção e a pobreza. 

Uma outra consequência macabra dos péssimos governos de Moreno e Lasso é evidenciada na gestão das prisões. Desde fevereiro de 2021 houve mais de oito massacres em prisões equatorianas, com um número de mortos superior a 416 pessoas. A última delas, que ocorreu em 14 de abril, deixou 12 mortos.


Policiais realizam operação no bairro de Rivera del Rio em Esmeraldas, Equador, em 21 de abril de 2023. No mesmo mês, Lasso  declarou estado de emergência em diversas províncias / ENRIQUE ORTIZ / AFP

A resposta do governo tem sido muito fraca, demonstrando negligência e incompetência no controle e prevenção dos crimes. Por último, Lasso aprovou diversas medidas de liberalização do porte e da posse de armas e fez uma fala dizendo que “a cidadania tem que se defender”, ou seja, reconhecendo a incapacidade do Estado para controlar a criminalidade. 

A quebra do legítimo monopólio do uso de armas nas mãos do Estado para liberaliza-lo terá dois efeitos muito perigosos: colocar ainda mais armas nas mãos de criminosos e facilitar a formação de milícias, enquanto a cidadania será apanhada no fogo cruzado entre os bandidos e a inação do Estado.

Lasso também decretou constantes estados de exceção, com toque de recolher e deslocamento dos militares para as ruas sem conseguir resultados. Atualmente, três províncias do litoral estão sob esse estado.

Numa última “genialidade” que também não aborda as causas estruturais do aumento da insegurança, o Ministro do Governo antecipou a intenção de classificar como terroristas as quadrilhas do crime organizado. A declaração teria por objetivo permitir que os militares participassem do controle do crime e autorizar o “atirar para matar", o que vai totalmente contra os direitos humanos consagrados na Constituição equatoriana e nos acordos internacionais assinados pelo Estado.

Corrupção

Lasso parece incapaz de executar qualquer política pública e, para justificar sua incompetência para governar, continua acusando Correa de todos os problemas do país. O atual mandatário tem dito que o crime disparou porque desfez os acordos de Correa com os narcotraficantes. 

Mas no governo do Correa, os roubos, os assaltos e o número de mortes violentas foram drasticamente reduzidos, sobretudo em razão da melhora da economia e das políticas contracíclicas, que tiveram o êxito de reduzir a pobreza e gerar novos empregos. Além disso,  também houve melhores políticas de segurança pública, especialmente no controle de armas, treinamento da polícia, construção de infraestrutura e criação do sistema 911 para emergências. 

Na verdade, quem tem vinculações com máfias é Lasso. Em janeiro de 2023, o jornal digital La Posta publicou uma série de documentos e gravações de áudio vazados que revelaram as ligações de um membro do primeiro escalão do governo a um parente de Lasso, que tinham realizado negociações de cargos e contratos públicos em troca de dinheiro. Também foram a público relatórios da Polícia Nacional sobre as ligações do governo com a máfia albanesa e com o tráfico de drogas.  

Esse parente, Danilo Carrera, cunhado do Lasso, tinha um operador político, Rubén Chérres, mencionado nesses vazamentos, que foi encontrado morto em 31 de março. Chérres era a ligação mais clara e a testemunha mais importante dos vínculos entre o governo Lasso e as máfias. Seu cadáver e os de mais três pessoas, uma delas um guarda de segurança, foram encontrados com sinais de tortura. 

Vale a pena lembrar que o nome de Lasso, de seus familiares e de funcionários das suas empresas aparecem nos famosos casos dos Panama Papers e dos Pandora Papers.

Finalmente, o caso pelo qual o atual presidente do Equador está sofrendo um processo de impeachment é o do FLOPEC - uma empresa pública de transporte marítimo. A companhia contratou empresas estrangeiras para cobrir algumas rotas.

A Controladoria Geral disse em 2018, durante o governo Moreno, que um desses contratos era prejudicial aos interesses do país. Em 2020 a Controladoria repetiu o mesmo parecer e disse ao governo que não deveria mais contratar essa empresa. Lasso não só manteve, mas renovou o contrato em 2021. Em 2022, um gerente que não quis renová-lo foi demitido.

Saídas: impeachment, morte cruzada ou renúncia

Em fevereiro deste ano, o partido de governo e seus aliados perderam a eleição para autoridades de províncias e munícipios. O partido da situação não ganhou em nenhuma província e chegou à chefia de poucas prefeituras, quase todas de cidades pequenas.

Lasso aproveitou a eleição para convocar um referendo, que teria como objetivo fazer emendas à Constituição através de oito perguntas, e perdeu em todas. As questões eram sobre: permitir a extradição de equatorianos réus por crime organizado; reduzir o número de membros da Assembleia, impor um número mínimo de membros aos movimentos políticos; retirar o poder de nomear autoridades estatais (como o Procurador Geral e o Controlador) do Conselho de Participação Cidadã e Controle Social (CPCCS); mudar a forma de nomear os membros do CPCCS; dar mais poder para a Procuradoria Geral para que ela ficasse fora do controle democrático e teóricas mudanças na governança dos recursos naturais que, na realidade, não mudariam nada.

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O partido de Lasso, Movimiento Creando Oportunidades (CREO), tem apenas 12 parlamentares do total de 137 na Assembleia Nacional e governa por meio de uma aliança com vários outros partidos de direita e centro. No entanto, Lasso está ficando isolado. Ele já não conseguiu aprovar o último Projeto de Lei (PL) que enviou para a Assembleia em março deste ano, uma reforma da Lei Orgânica de Ensino Superior.

As mesas de diálogo entre o governo e o movimento indígena, que começaram depois dos grandes protestos de 2022, pararam de funcionar há vários meses porque falharam em definir ações concretas. O movimento sinalizou que poderia retomar os protestos se o governo continuasse a descumprir os acordos declarados em junho do ano passado como forma de encerrar as mobilizações.

Nesse clima, a Assembleia Nacional adotou, em 20 de março de 2022, uma resolução na qual qualificou e admitiu o julgamento do impeachment contra o Lasso, e solicitou, como exigido por lei, um parecer da Corte Constitucional para determinar se o impeachment é ou não admissível.

A maioria da Corte decidiu, em parecer do dia 30 de março, com seis votos a favor e três abstenções, rejeitar duas acusações contra Lasso relacionadas a um suposto crime de extorsão, e admitir a acusação relacionada com um possível crime de desvio de fundos. Em 31 de março, a Assembleia começou o processo de julgamento do impeachment, que tem várias etapas.

Quem preside a comissão parlamentar que vai fundamentar o processo é a Comisión de Fiscalización [Comissão de Auditoria], liderada por Fernando Villavicencio, parlamentar de direita, aliado de Lasso há muitos anos e com uma trajetória pouco limpa.

Para o impeachment serão necessários 92 dos 137 votos da Assembleia. Além dos 47 votos do correísmo - corrente responsável pelo pedido de impeachment - e dos 25 votos de Pachakutik, o partido vinculado ao movimento indígena que até o momento parece estão garantidos, são necessários mais 20 votos de outras bancadas.

Esses outros votos poderiam vir da Esquerda Democrática, recém aliada de Lasso, de membros independentes da Assembleia, da Unidade Popular (maoístas) - ainda que difícil porque tem sido sempre um inimigo ferrenho do correismo - ou até mesmo do tradicional Partido Social Cristão (de direita) com o qual simpatizantes de Correa costuraram uma aliança em maio de 2021, no começo do governo Lasso, para a tentar conseguir a Presidência da Assembleia. 

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Um impeachment faria com que o vice-presidente, Alfredo Borrero, se torne presidente e não mudaria a linha política do governo. 

No entanto, há outro mecanismo possível para encerrar o mandato de Lasso, conhecido como "muerte cruzada" (morte cruzada). O dispositivo está incluído no artigo 130 da Constituição equatoriana e estipula que, imediatamente após a Assembleia demitir o Presidente, o Vice-presidente assume o cargo. Após sete dias, o Conselho Nacional Eleitoral deve convocar uma eleição geral e simultânea para Presidente, Vice-presidente e uma nova Assembleia, dentro de um período máximo de seis meses.  

O mecanismo tem o nome de “morte cruzada” porque o presidente também pode dissolver a Assembleia, e da mesma forma, deve acontecer de forma imediata uma eleição geral e simultânea para Presidente, Vice-presidente e uma nova Assembleia.

Entretanto, Lasso só pode aplicar o dispositivo se comprovar que a Assembleia assumiu funções que não se enquadram na sua competência constitucional; obstruiu repetidamente o Plano Nacional de Desenvolvimento; ou em caso de grave crise ou convulsão social.

Se Lasso aplicar a “morte cruzada”, ou seja, dissolver a Assembleia, poderia ficar no cargo por seis meses no máximo (prazo da nova eleição), governando por decretos. Se ele não permitir a convocação de uma nova eleição imediatamente, aquilo seria, de fato, um golpe.

O Ministro de Governo, Henry Cucalón, disse a vários meios de comunicação que esse recurso não seria usado. Entretanto, Lasso disse ao Financial Times que o faria se a Assembleia tivesse os votos para destituí-lo. 

No caso de morte cruzada, a esquerda tem melhor chance numa nova eleição, dada a situação de catástrofe social atual.  Se Lasso renunciar, que seria a terceira opção, também se tornaria o governante do país o atual vice-presidente, Borrero. 

Imediatamente após os protestos de junho de 2022, a Assembleia tentou a morte cruzada contra Lasso, mas não conseguiu os votos que precisava. Segundo pesquisas de opinião, 63% da população está a favor do impeachment do presidente. Há 25% contra e o resto (11%) ainda não decidiu. 

Enquanto o correísmo fazia uma declaração a favor da morte cruzada em 20 de abril, vazou um áudio no qual uma governadora do Pachakutik negociava cargos com funcionários do governo. Lasso precisa só de 46 votos para evitar o impeachment e poderia consegui-los.

Durante os últimos anos tem se dado uma transferência da crise de legitimidade dos partidos políticos - que já é antiga - para o Estado como um todo. Trata-se de uma crise orgânica, como diz Gramsci. Mesmo aqueles atores políticos que atualmente lideram o processo de impeachment estão encurralados. A crise arrasta com ela a legitimidade da política. A crise econômica se alastra destruindo empregos, possibilidades de geração de renda e a falta de segurança mata mais equatorianos do que nunca. Um quadro verdadeiramente sombrio com ou sem impeachment do Lasso.

Edição: Patrícia de Matos