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Acordo ou tática política: o que está acontecendo no Conselho Eleitoral da Venezuela?

Após renúncias, Poder Eleitoral passará por renovação; EUA citavam reformas como requisito para fim de sanções

Caracas (Venezuela) |
Novos diretores serão escolhidos pelo Legislativo em conjunto com sociedade civil - Miguel Zambrano/AFP

Além da ausência de um calendário e da indefinição de candidaturas por parte da oposição, um fato promete trazer ainda mais surpresas às eleições presidenciais que devem ocorrer no próximo ano na Venezuela: a renovação do Conselho Nacional Eleitoral (CNE).

A instituição, responsável por organizar todos os pleitos do país, deve ter uma nova direção nomeada nos próximos meses. O processo foi iniciado na última semana após os atuais diretores, incluindo o presidente do órgão, Pedro Calzadilla, renunciarem aos cargos.

As mudanças causaram furor no mundo político venezuelano. Isso porque a direção não apresentou motivos claros para as renúncias, o que fez com que diferentes setores políticos do país levantassem hipóteses sobre o que pode estar por trás das trocas. Fontes ligadas à coalizão opositora chamada Aliança Democrática, rival do setor que era liderado pelo ex-deputado Juan Guaidó, afirmaram ao Brasil de Fato que as mudanças no CNE podem configurar uma tática do governo venezuelano para enfraquecer o processo de eleições primárias convocado pela chamada Plataforma Unitária (PU).

A justificativa apresentada pelas fontes foi a de que os primeiros diretores que renunciaram aos cargos eram ligados ao governo, incluindo o presidente Calzadilla, e formavam maioria no órgão. A saída deles, portanto, impossibilitaria o pleno funcionamento da instituição, o que motivou também a saída dos membros da direção que haviam sido indicados pelos opositores: Roberto Picón e Enrique Márquez.

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Nomeada em 2021, a atual direção do CNE havia sido resultado de um acordo político entre governo e oposição que previa maior equilíbrio entre os diretores nomeados. Desde o início do processo de diálogos no México, trocas no CNE eram uma das principais demandas do setor opositor radical. No entanto, segundo fontes ouvidas pela reportagem, o momento das trocas era inoportuno, já que as primárias acontecerão em apenas quatro meses.

A Plataforma Unitária, também conhecida como G4 por contar com a participação dos quatro maiores partidos de direita da Venezuela, planeja consultar a população na tentativa de definir uma candidatura presidencial unificada em 2024 para enfrentar o candidato governista, que também ainda não foi anunciado oficialmente. A coalizão já havia decidido pedir apoio técnico do CNE quando os diretores do órgão anunciaram as renúncias.

O processo fez com que a PU voltasse atrás e anunciasse uma votação independente, que será realizada no dia 22 de outubro. Analistas argumentam que primárias autônomas enfraqueceriam o processo, já que a votação seria totalmente manual e a apuração deve ser realizada pela própria comissão de primárias, o que traria pouca transparência e credibilidade ao processo.

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Apesar dos 14 pré-candidatos que participarão da votação interna apoiarem a decisão de dispensar o apoio do CNE, as posições divergem. A ex-deputada Maria Corina Machado, ultraliberal do partido Vente Venezuela, é uma das principais entusiastas do processo independente, mas encontra resistência do ex-governador e ex-candidato presidencial Henrique Capriles, que classificou o processo como "eleições primárias VIP" porque a oposição não teria estrutura suficiente para chegar às regiões mais afastadas do país.

Acordos: com quem e sob quais condições?

Outros setores políticos, por sua vez, acreditam que as mudanças no CNE estão ligadas a algum tipo de acordo político, divergindo da tese de que essa seria uma decisão unilateral do governo para tentar interferir de alguma maneira no processo de primárias da oposição. 

Fontes da base governista disseram ao Brasil de Fato que as renúncias e o processo de escolha de uma nova direção do órgão podem estar relacionados com os diálogos travados entre o governo e a oposição que vinham ocorrendo no México. A hipótese envolveria inclusive os EUA, já que reformas no Poder Eleitoral venezuelano são uma das principais exigências de Washington para a eliminação de sanções.

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Durante o mais recente esforço para retomar as negociações entre chavismo e direita na Cúpula de Bogotá, convocada em abril pelo presidente colombiano Gustavo Petro, a delegação do governo do presidente dos EUA, Joe Biden, não prometeu a suspensão do bloqueio, mas citou diretamente a necessidade de reformar o CNE venezuelano para realizar alívios pontuais.

"Por mais que digam que pode ser apenas uma hipótese, o mais provável é que seja resultado de acordos políticos e das exigências de atores internacionais, ou seja, de elementos que estavam colocados como requisitos da comunidade internacional para destravar o jogo político". Essa é a opinião do cientista político venezuelano Luis Eduardo Díaz, que conversou com o Brasil de Fato sobre o tema.

Para o pesquisador, os assuntos internos da Venezuela estão relacionados aos problemas geopolíticos de combustíveis, já que o país é um grande provedor internacional de petróleo e gás. "O fato de a Venezuela estar ilhada, sem capacidade de movimento não só do ponto de vista financeiro e econômico, mas também do ponto de vista energético, prejudica os interesses de uma grande quantidade de países no mundo", argumenta.

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A possibilidade de que as trocas no CNE sejam resultado de um acordo também é cogitada por deputados da base chavista no Parlamento. Fontes do Legislativo ouvidas pela reportagem afirmam que essa hipótese é a mais discutida entre a bancada governista, sob a justificativa de que as trocas trariam "mais confiança ao processo eleitoral de 2024".

Para Díaz, ainda que a renovação do CNE, de fato, cause problemas logísticos e de prazos para a realização das primárias opositoras, a impressão de maior impacto é a de que as trocas serviriam como uma espécie de renovação da institucionalidade do país. "É uma oportunidade para refrescar a cara institucional e para cumprir com parte das exigências que alguns setores da comunidade internacional fazem à Venezuela para diminuir a posição de confrontação que tiveram nos últimos anos", diz.

Quem estará no novo CNE?

Apesar das posições contrárias e ainda muito hipotéticas, em um ponto políticos governistas e opositores concordam: o cenário ficará mais claro quando os nomes dos novos diretores forem divulgados.

Segundo as fontes ouvidas pelo Brasil de Fato, caso os novos diretores sejam identificados com o que se chama de "linha dura" do chavismo, então a tese de que as renúncias foram parte de uma tática para enfraquecer a oposição será mais plausível. No entanto, se os novos membros do Poder Eleitoral forem quadros moderados, técnicos e se mantiver o equilíbrio entre diretores governistas e opositores, então é possível que um acordo tenha sido feito.

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O Brasil de Fato ouviu um ex-diretor do CNE, que preferiu não se identificar, mas que apostou que a atual ministra da Educação Universitária, Sandra Oblitas, é a favorita para assumir a presidência do Poder Eleitoral. Socióloga formada pela Universidade Central da Venezuela, Oblitas integrou a direção do CNE entre 2006 e 2010, como reitora principal, e entre 2010 e 2020, como vice-presidente do órgão.

Segundo a mesma fonte, o atual diretor Enrique Márquez é cotado para repetir o mandato e continuar como representante da oposição. Tanto Oblitas quanto Márquez são vistos como perfis técnicos e que não estariam comprometidos com nenhum partido político, seja chavista ou opositor. Fontes de ambos setores afirmaram à reportagem que uma conformação com a presença deles daria ao novo CNE uma face mais moderada e enviaria sinais de estabilidade institucional.

Edição: Thales Schmidt