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Perifacon 2023: 'Nesse dia, a periferia é o centro', diz Andreza Delgado

Uma das fundadoras da convenção, Delgado explica que ainda há uma dureza do mundo geek em aceitar protagonistas negros

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"nesse dia, a gente costuma falar, que a periferia é o centro e isso se desloca para vários sentidos", diz Andreza Delgado, cofundadora da PerifaCon - PerifaCon/Divulgação
É legal saber que a periferia é muita coisa, ela é samba, pagode, rap, funk, mas ela também é geek

No próximo dia 30 de julho, o Centro de Formação Cultural da Cidade Tiradentes sediará a 3ª edição da Perifacon, a maior convenção nerd da periferia de São Paulo. Em um intenso dia de programações, estão previstos painéis com mesas, exposições e debates sobre o mundo geek.

Além da parte expositiva, a convenção terá concursos de cosplay, sala de games e atrações musicais. Outro espaço importante é o Beco dos Artistas, onde ilustradores e quadrinistas poderão levar seus trabalhos direto para as mãos dos consumidores da cultura nerd.

O evento já teve outras duas sedes, no Capão Redondo, em 2019, e na Brasilândia, em 2022, após uma parada forçada pela pandemia. Mas sempre manteve o caráter principal da feira, de descentralizar a cultura geek das grandes convenções, realizadas em regiões centrais e, por isso, voltadas para um público majoritariamente branco e com relativo poder aquisitivo.

"A gente também reforça a autoestima desse produtor, desse consumidor periférico, que é muito importante, porque, de novo, a gente tá falando de eventos muito legais, que às vezes custam muito caro para você ir. E não é só o ingresso, é o deslocamento, é comida, se você quiser comprar alguma coisa, você tem que ter essa grana reservada, então tá aí a importância dessa grande convenção", explica Andreza Delgado, uma das fundadoras da Perifacon.

Delgado destaca que, para além do evento, a convenção é "um convite para as pessoas pensarem como descentralizar a cultura e também sair de coisas óbvias - apesar de não serem tão óbvias".

"É legal saber que essa periferia é muita coisa, ela é samba, pagode, rap, funk, mas ela também é geek. Eu acho que a proposta da Perifacon também é evidenciar esses talentos e dar oportunidade para as pessoas acessarem determinados conteúdos. A gente costuma falar que, nesse dia, a periferia é o centro e isso se desloca para vários sentidos", explica.

Convidada desta semana no BDF Entrevista, Delgado fala também sobre a representatividade que personagens negros, que apareceram recentemente no mainstream do mundo geek, exercem sobre uma população pouco representada em culturas de massa.

"São movimentações muito importantes, mas que elas estão ligadas também a questões estruturais. Eu ainda tenho uma dureza do público de aceitar a negritude ocupando esse lugar, essas histórias, como protagonistas, sejam histórias originais, sejam em releituras, há uma dificuldade, há um racismo e está ligado à questão estrutural que, na verdade, eu preciso mudar a estrutura", aponta.

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Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Queria começar nossa conversa falando sobre a Perifacon. O evento terá sua terceira edição no final deste mês, em um bairro do extremo leste de São Paulo, a Cidade Tiradentes. Queria saber como estão os preparativos, tudo pronto já?

Andreza Delgado: Ai cara, o coração está daquele jeito. Evento chegando, a gente fica pensando na importância e como entregar o melhor evento possível. A gente sabe que quando se trata de periferia, a gente precisa entregar as coisas da forma mais excelente possível, porque o peso é sempre peso dois.

Estamos ampliando o evento, temos uma expectativa de 15 mil pessoas. É uma edição que, novamente, tem 12 horas de duração. Os espaços tradicionais como o Beco dos Artistas, onde ficam os ilustradores, quadrinistas, a parte de palco, concursos de cosplay, que são coisas que já aconteceram no último evento, vão continuar rolando.

A gente tem algumas novidades, como um espaço que a gente fez em parceria com o Teia, que é um espaço que discute várias questões de empreendedorismo e vai estar ligado 100% ao nosso evento. Vamos ter análise de portfólio, ou seja, o artista que é ilustrador, quadrinista, vai receber essa análise de dois profissionais super legais do mercado.

A gente vai ter bate-papo e experimentações para discutir mercado de games com a SPCine, a gente vai ter também uma oficina da AMBEV Tech para discutir e ensinar a galera como fazer um pitch [discurso para apresentar seu produto a investidores]. A gente vai ter bate-papo também sobre a produção de podcast na quebrada. Então, essa edição traz essa coisa nova de discutir o mercado e gerar novas oportunidades, porque o evento também prova sua importância chamando as pessoas para esse tipo de bate-papo.

Esse tipo de evento, em geral, acontece em espaços mais distantes da periferia e que, de certa maneira, privilegiam a população mais branca e mais rica da cidade. Qual a importância de levar um evento desse porte, que atrai tanta gente, para a periferia de São Paulo?

Acho que é um convite para as pessoas pensarem como descentralizar a cultura e também sair de coisas óbvias - apesar de não serem tão óbvias - mas é legal saber que essa periferia é muita coisa, ela é samba, pagode, rap, funk, mas ela também é geek. Eu acho que a proposta da Perifacon também é evidenciar esses talentos e também, dar oportunidade para as pessoas acessarem determinados conteúdos que elas precisam se deslocar até o centro.

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É um evento que te dá grandes oportunidades para você experimentar, tem muita coisa dentro desse eixo geek, que também, por si só, já é muita coisa, são muitas propostas. Eu acho que nesse dia, a gente costuma falar, que a periferia é o centro e isso se desloca para vários sentidos.

A gente também reforça a autoestima desse produtor, desse consumidor periférico, que é muito importante, porque, de novo, a gente tá falando de eventos muito legais, que às vezes custam muito caro para você ir. E não é só o ingresso, é o deslocamento, é comida, se você quiser comprar alguma coisa, você tem que ter essa grana reservada, então tá aí a importância da Perifacon, como essa grande convenção.

Estava vendo algumas publicações sobre o mundo geek e alguns artistas negros, entre eles o Renato Cafuzo, que é designer e toca a Nigeek, ainda relatam episódios de racismo dentro da comunidade. Obviamente não há separação entre a sociedade e a cultura nerd, como nicho, mas como lidar com esse racismo dentro desse espaço de entretenimento?

Eu acho que, por exemplo, é importante você normalizar pessoas negras ocupando vários espaços, e criar uma comunidade segura. Eu acho que o evento da Perifacon também vem nessa contramão, de educar a nossa audiência, e também porque é gritante a diferença do público da Perifacon em relação às grandes convenções, que é, em sua maioria, negro.

Quem apresenta os painéis, em sua maioria, são apresentadores negros. O Beco dos Artistas esse ano - eu que sou a curadora de toda a programação da Perifacon - é de maioria não branca. A gente tem ilustradores indígenas, a gente tem ilustradores amarelos, mais uma pequena minoria de artistas brancos no Beco dos Artistas.

Porque, para a gente, é importante gerar essas oportunidades e gerar essas conversas. A gente educa nosso público até esteticamente, você vai chegar lá no palco e quem vai estar apresentando é um apresentador negro, é uma apresentadora negra. Isso é muito legal porque muitas vezes a gente escuta que não tem [pessoas negras para exercerem determinadas tarefas]. Não tem ou você não procurou?

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A pessoa vai chegar no Beco dos Artistas e as artes que ela verá se parecem com o artista e com ela também. Isso é muito louco, é muito legal, porque são novas possibilidades. Eu sempre fico pensando porque eu gosto tanto de trabalhar com isso… Eu curto porque você consegue imaginar novos mundos e trabalhar a cultura como esse lugar do descanso. 

Eu escuto muito como a cultura é supérfluo. Na pandemia mesmo, a gente consumiu muita série, muito filme. Mas de onde saem esses orçamentos? Então, eu acredito muito no poder da cultura para salvar a vida de jovens negros periféricos.

Há também um debate sobre essa representatividade de grandes personagens do mundo geek com a população negra. E a gente sempre vê que há ruídos, mesmo que esses personagens sejam originalmente negros nos quadrinhos, numa história que foi relançada, enfim, sempre há algum ruído. Isso tem melhorado, tem se transformado ao longo do tempo?

A gente está vivendo um momento muito interessante e importante para a cultura periférica, para as pessoas da periferia, no sentido da representatividade mesmo. O Jordan Peele [diretor de cinema estadunidense e negro, responsável por filmes como Corra e Nós] acabou de anunciar uma coletânea de contos de horror, na qual a gente vai poder ver vários escritores negros nessas obras.

A gente tem agora o Miles [Morales, protagonista da animação Homem-Aranha: Através do Aranhaverso], que o futuro aponta para ele ser a versão do Homem-Aranha mais conhecida dos próximos anos. Nós temos uma gama de novas e grandes representações, seja de histórias originais ou de histórias sendo redesenhadas com possibilidades negras.

Nós vemos também algumas questões sendo corrigidas. Eu fiz um vídeo falando sobre o Charlie, da Fantástica Fábrica de Chocolate, porque no conto original, o Charlie foi pensado com um menino negro e as pessoas estavam chiando porque, no musical da Fantástica Fábrica de Chocolate, a menina é negra. Só que a viúva do autor retomou uma história de que, originalmente, esse conto foi escrito para uma criança negra.

São movimentações muito importantes, mas que elas estão ligadas também a questões estruturais. Eu ainda tenho uma dureza do público de aceitar a negritude ocupando esse lugar, essas histórias, como protagonistas, sejam histórias originais, sejam em releituras, há uma dificuldade, há um racismo e está ligado à questão estrutural que, na verdade, eu preciso mudar a estrutura.

Eu fico muito feliz, mas ao mesmo tempo muito triste, porque é uma pressão tão grande. A gente tava com uma questão sobre a série do universo do Senhor dos Anéis, do J. R. R. Tolkien, que inclusive é um autor muito problemático, que a gente tinha um elfo negro… tivemos o anúncio de uma Pequena Sereia negra e era muito racismo nas redes sociais.

Mas, ao mesmo tempo, a gente viu uma bilheteria muito interessante da Pequena Sereia, a gente viu uma bilheteria muito importante e expressiva do Miles no Aranhaverso, são coisas e apontamentos que a gente precisa levantar. É um trabalho educacional, porque não adianta só trazer uma representatividade sem educar o público.

Você acredita que essa indústria, que está pautando isso agora, essa representatividade, faz porque, de fato, ela entende que precisa retomar essas histórias originais como elas foram pensadas ou elas estão pensando em uma falsa inclusão?

Cara, o que eu sinto é que há uma pressão muito grande do público, e algumas delas fazem genuinamente. Eu tenho certeza que quando a Sara Pichelli e os outros três criadores do Miles decidiram fazê-lo desse jeito, tinha uma coisa muito genuína. Porque a gente sempre fala que é importante separar o que é o autor dos quadrinhos - que, na moral, é um trabalhador fudido e que não está nadando em rios de dinheiro - e o  interesse dessas grandes indústrias, porque isso dá dinheiro.

E realmente, eu acho que é uma coisa que a gente tem que falar que dá dinheiro. É uma parada que a galera acaba querendo comprar. Eu mesmo, maluquete, querendo comprar o meu próprio bonequinho do Spider Punk, sabendo que ele iria odiar saber que está sendo vendido como bonequinho a R$ 300.

A gente fez lá na Perifa ano passado o cartaz do Super Choque e foi um negócio incrível. A galera amou, foi uma coisa muito representativa, porque a galera gosta. Como não falar com esse público, sabe? É muito importante e eu acho que também tem um purismo ideológico de determinadas pessoas da esquerda, de achar que "ah, não, mas aí foi feito pelas grandes corporações".

Mas como eu vou dialogar com uma menina de nove anos que, até então, não tinha nenhuma representatividade. E aí ela se sente representada e isso melhora a sua autoestima? Como eu vou negar isso a ela?

De ir ao cinema e ter essa experiência...

Exatamente. Por muito tempo, eu fiquei me cobrando, pensando: "cara, o que isso que eu estou fazendo tem a ver com as minhas discussões, até então, dentro da militância?". E depois eu fui entender que sim, tem tudo a ver, porque quando eu faço um evento na periferia evidencia, por exemplo, a questão da passagem, eu continuo conectada com uma Andreza de 18 anos, que estava ali militando no [Movimento] Passe Livre, e que entende que o custo do dinheiro da passagem impede as pessoas de terem acesso a coisas como educação ou cultura.

Neste mês de julho, também celebramos o Dia da Mulher Negra, Latina e Caribenha. Que importante ter mulheres como você à frente de um projeto tão importante e grandioso. Como isso chega até você e qual a mensagem para que isso se espalhe para outros eventos desse mesmo porte?

Cara, eu fico bem feliz, ainda mais porque... Estou aqui na empresa, eu olho para o lado e a maioria das pessoas é de mulheres negras. Isso é muito importante de pensar, porque são algumas conversas para a quais a gente não é chamada. Você olha para a estrutura dos grandes eventos de entretenimento no país, e eles são tocados por homens brancos.

É um desafio, porque além de ser uma mulher negra, eu sou jovem e também tem as questões relativas a isso. Mas a gente sempre comenta na Perifacon o quanto eu aprendi muitas coisas militando nos movimentos sociais, as questões de organização, de fazer uma parada e contar com a solidariedade das pessoas. Isso é muito foda.

Eu acho importante também trabalhar esse imaginário de possibilidades. De que é possível pensar um novo futuro, de que essa conversa sobre tecnologia, por exemplo, é uma conversa muito importante, que a gente tem que fazer parte. Eu fico sempre muito feliz, muito feliz mesmo.

Edição: Nicolau Soares