Análise

Só porque está na rua, todo mundo acha que pode dar pitaco

Desacredito em quem duvida da astúcia preta de levantar um pagode com restos de lata e plástico que são menos que lixo

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Essa tal de vulnerabilidade, tão presente por sua ausência e tão ausente por sua constante presença
Essa tal de vulnerabilidade, tão presente por sua ausência e tão ausente por sua constante presença - Marcelo Camargo/ Agência Brasil

Toda pessoa que dorme na calçada é uma sobrevivente. Escrevo e olho pela janela. Faz uns 12 graus com uma garoa que chega nos ossos. Por isso, é chocante a ignorância e arrogância da frase "tá com dó, leva pra casa", que se repete quase como um mantra quando o assunto chega na Cracolândia (não vou falar de crueldade agora).

Pessoas que nunca estiveram na minha casa, sabem lá como eu vivo, se sou sádico ou imundo, dizem com toda a convicção do mundo que faria um bem enorme acolher quem, até este momento, existiu com muito pouco. Desprezam histórias que mal cabem em uma vida, menos ainda em um livro, para estabelecer, em um segundo, o que é o melhor a se fazer. 

Me incomoda profundamente esse sentimento, por todo o lado, de poder se oferecer assim qualquer coisa para essas pessoas que, a todo momento, demonstram tanta força. Não estou fingindo que não há ódio. É porque percebo uma ponta disso também em muitos dos que dizem se importar, mas, talvez trabalhem mais para si mesmos. Nunca esqueço Cadu, irônico, pedir o fim das salsichas nas marmitas de doação. Nem dentes tinha mais para mastigar tanta falsidade, de carne e de coração.

:: Queremos te dizer outra coisa sobre a Cracolândia ::

Depois de escutar tantas reflexões que, como essa, me atravessam pelos anos sem conclusão completa, vou perdendo o interesse nos experts em resolver problemas que não conhecem. Desacredito em quem duvida da astúcia preta de levantar um pagode com restos de lata e plástico que são menos do que lixo. Deixo falar sozinho quem não enxerga esse casal dançar, bem juntinho, cortando o fluxo* e desconcertando a fé burocrática.

* fluxo é o termo usado pelas pessoas que vivem e frequentam a Cracolândia para denominar essa multidão em situação de calçada e que consome drogas, que circula pelas ruas pelas ruas do centro de São Paulo.

É muito duro e difícil ser vulnerável. Essa tal de vulnerabilidade, tão presente por sua ausência e tão ausente por sua constante presença. Não saber, não sentir, não sofrer vulnerabilidade é em si, brutal. Mais do que isso ainda, é fatal. E fazemos tanto isso no nosso dia a dia. Ser forte, não mostrar fraqueza, não ser vulnerável, esconder, sumir com as vulnerabilidades. Transformando, assim, o fatal em banal. E a brutalidade, em vírgula.
O doce fruto bruto de suculências e violências bem passadas, mas também, sempre, presentes. Com notas e núncias – (N) A M A D EI R A D A S -, ao sugo ou ao sangue, gratinado ou queimado, no molho branco, na redução caudalosa e salivante do ódio fervido e regado, com pitadas de ouro, no bife malpassado, atravessado, pois vez ou outra, se apresenta em presente, lindo embrulho brilhante e enlaçado, de um futuro tão presente, quanto àqueles que passaram. Passo, passado. Atravessado.

:: Polícia prende ativistas, trabalhadores e usuários na Cracolândia por "perturbação do sossego" ::

Prato servido frio, acompanha violado brando, temperatura incipiente, bem servido, pois serve várias pessoas, em bandejas e/ou gamelas, mesmo não servindo pra nada. A pequenez humana, por nada. 
….

Ocupando a pressão da rua, entre-trechos, margens, periferias, deslocamentos, desterritorializações e desterros. O fluxo, um território em si, uma linguagem, uma gramática em pleno terreno da discórdia, da disputa e da guerra de mundos. 

Se fossem menos pretes, menos drogades, mais ordeiros, mais pra dentro, mais controláveis. Se quisessem voar mais baixo, quisessem trabalhar… Se não deixassem tão explícita a negação a tudo o que somos e odiamos em nós.

Ali, o galo não canta ou ele não para de cantar nunca? Ali, as mensagens correm por todos os meios – olhares, toques, gritos, cheiros, pisadas, sons… A cidade, projeto-território que sonha com o controle, que almeja a milimetria da arquitetura estéril, vê o rasgo de si e se pergunta sobre soluções: como colocar fim à Cracolândia? Só dá pitaco quem não consegue olhar pra si.

:: Em meio à repressão policial, arte e solidariedade resistem e modificam vidas na "Cracolândia" ::

Lá, aqui, em todo lugar que negue o projeto totalitário da colônia, busca-se o movimento. Corpos e territórios, corpos-territórios que perseguem e são perseguidos pela trans-formação e jogam pra frente, prum horizonte imaginado, a partir de um presente catastrófico e distópico, a zona de contorno do possível. Isso inverte a aniquilação das perguntas que buscam encerramentos, colocando questões que semeiam possibilidades. É pelas margens que abrimos caminhos.


…….


Noite, asfalto, São Paulo 
Bituca de cigarro amassado 
Pés, pretos, vão e voltam
Velocidade nos passos

Aqui é a rua onde todo mundo dá pitaco? 

Multidão concentrada  
O burburinho estrala 
Pendurado no ombro
O funk passa 

A cadência é ligeira
No riso, na treta, no grito:  
"Ó o pesado!"

Aqui é a rua onde todo mundo dá pitaco? 
... 

Coloco a bola no chão pra disfarçar o desassossego  
As primeiras petecadas relaxam os músculos e abrem meu peito
Levanto a cabeça e já são dois, três, cinco, temos um contra feito
Pneu, Renato, Jennifer, Luan ...e o futebol acontece

Gol é gol, trave é trave, falta é falta 
Da rua da infância à Cracolândia
As regras são as mesmas 

Enquanto a bola rola, continuam ali as portas metálicas da Santa Efigênia
Enquanto a bola rola, continuam ali os carros da GCM normalmente
Enquanto a bola rola, continuam ali os cachimbos sendo acesos 
Enquanto a bola rola, o fluxo é vivo

Vivo como um reflexo no espelho
Que não pode ser visto sem tempo, com medo ou preconceito

Aqui é a rua onde todo mundo dá pitaco? 
É sim! Onde também reside um espelho
Quer olhar? 
...

P.I.T.A.C.O 

Do Dicionário: 
Palpite dado por alguém que, geralmente, não conhece o assunto, mas insiste em comentar; comentário, opinião. 

Expressão:
Dar pitaco. Dar uma opinião sem que alguém tenha perguntado.


A Craco Resiste


*Aline Yuri Hasegawa é mãe, pesquisadora e produtora. Integra o time misto de futebol de várzea União Lapa que, juntamente com o Coletivo Rosanegra ADF e A Craco Resiste, promove ação de redução de danos com futebol no Fluxo. Militante d’A Craco Resiste.

**Daniel Mello é militante d’A Craco Resiste e faz parte da Associação Birico. É autor do livro Gargalhando Vitória - poemas da cracolândia (Editora Elefante)

***Ricardo Paes Carvalho - educador social de rua e jornalista. Militante da Craco Resiste.

****Verena Carneiro: jornalista, pós-graduada em jornalismo literário. Redutora de danos pela Craco Resiste e integrante dos times mistos de várzea de São Paulo União Lapa e Rosanegra ADF -, ambos com atuação política e social por meio do futebol.

*****Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Thalita Pires