Queima de estoque

Governo Tarcísio de Freitas: morosidade do STF favorece regularização de terras griladas

Processos que estabelecem compra de terras devolutas por até 90% de desconto estão aptos para a conclusão do acordo

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Tarcísio de Freitas se mantém fiel ao agronegócio, setor que o apoiou durante as eleições de 2022 - Foto: Governo de São Paulo

Desde 19 de dezembro de 2022 está parada na gaveta de Cármen Lúcia, ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) que questiona a venda de terras devolutas para latifundiários com descontos de até 90% no estado de São Paulo. A ação foi protocolada pela bancada do Partido dos Trabalhadores (PT) da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp),

Apesar de vedada pela Constituição, a comercialização das terras devolutas, áreas públicas que nunca tiveram dono e que devem ser destinadas à reforma agrária, é possível desde a aprovação da pela Alesp, em 29 de junho de 2022, da lei 17.577. Mais tarde, em 21 de julho, o ex-governador Rodrigo Garcia (PSDB) a sancionou.

Em 1º de junho, a bancada petista na Alesp enviou um ofício a Cármen Lúcia, relatora da ADI, solicitando celeridade na análise da ação. Semanas depois, em 27 de junho, a ministra recebeu os deputados estaduais Eduardo Suplicy (PT) e Simão Pedro (PT), em audiência solicitada pelo ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira.

Durante o encontro, Cármen Lúcia sinalizou que publicaria seu parecer sobre a matéria ainda em agosto deste ano. Perto do fim do mês colocado como prazo pela magistrada, parlamentares de oposição na Alesp e movimentos sociais seguem aguardando o voto da ministra, que forçará o plenário do STF a votar a matéria. A Procuradoria-Geral da República (PGR) e a Advocacia-Geral da União (AGU) já declararam nos autos da ADI que consideram a lei paulista inconstitucional.

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Yamila Goldfarb, doutora em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP) e integrante da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), explica o preceito constitucional das terras devolutas. "Essas terras têm um preceito constitucional a cumprir: toda terra devoluta deve ser destinada à terra indígena, quilombola, unidade de conservação ou assentamentos da reforma agrária", disse.

A geógrafa é crítica à legislação aprovada em São Paulo. "O que a lei 17.577 faz é possibilitar a venda por parte do estado de terras devolutas, portanto terras públicas, para as pessoas que já ocupam essas áreas e queiram comprar essas terras com enormes descontos. Isso significa a legalização de uma ocupação que já é irregular, ou seja, é a legalização da grilagem", afirmou.

Queima de estoque

Nos bastidores, a oposição ao Palácio dos Bandeirantes está preocupada com a morosidade de Cármen Lúcia, que tem dado tempo para que o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) avance com a regularização das áreas griladas por latifundiários.

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"A nossa expectativa é que a ministra leve em consideração a dimensão do problema que temos em São Paulo com o avanço dessa lei, que vai contra os princípios da reforma agrária e também da Constituição", afirmou o deputado estadual Simão Pedro.

Pessimistas com os caminhos que a lei deve seguir na Justiça, membros do governo paulista passaram a se articular para que os latifundiários apressassem o registro de seus processos na Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), órgão responsável pelas políticas agrária e fundiária.

Em maio deste ano, o diretor-executivo do Itesp, Guilherme Piai, foi flagrado pelo jornal Folha de S.Paulo em uma reunião com latifundiários, alertando os empresários do agronegócio sobre os riscos de morosidade no protocolo dos processos.

Segundo Piai, seria necessário atuar no processo "enquanto a lei está vigente". "Agora está acontecendo uma questão política, que também foge da alçada do Itesp, que essa lei tem grandes chances de cair", disse na ocasião.

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O Palácio dos Bandeirantes já encaminhou a venda de dez fazendas que estão em áreas de terras devolutas, com desconto de até 90%. Dessas, sete já receberam parecer positivo da Procuradoria-Geral do Estado (PGE) para conclusão da negociação e recebimento de títulos fundiários.

Os dez terrenos, somados, valem R$ 64,1 milhões, de acordo com avaliação realizada pelo próprio Itesp. Porém, o o governo de Tarcísio de Freitas vai vendê-las por R$ 13,7 milhões, um abatimento de R$ 50,3 milhões, calculado com base no texto da lei.

Áreas em litigio

As áreas requeridas pelos latifundiários, todas na região do Pontal do Paranapanema, são alvo de litígio com o estado de São Paulo. A pendenga judicial é, inclusive, um dos parâmetros determinantes para o cálculo do desconto. De acordo com a lei, o cálculo de abatimento é influenciado pela "fase processual da ação discriminatória ou da ação reivindicatória, de modo que deverá ser majorado o percentual de acordo com o estágio da fase processual nas respectivas ações judiciais, e reduzido de acordo com o critério da ocupação mansa e pacífica no tempo."

Duas fazendas, a Triunfo I, requerida por Alberto Azenha de Almeida e Silvia Pádua Ferreira de Almeida, e Triunfo II, reivindicada por Aldora Rodrigues Azenha de Almeida, conseguiram descontos de 90%. As outras oito tiveram abatimento de 78% (ver tabela).


Relação com as dez primeiras fazendas que pediram a regularização das áreas que ocupam ilegalmente / Arte: Brasil de Fato

Reforma agrária de rico

O deputado estadual Carlos Giannazi (PSOL) qualificou a lei como "escárnio". "É quase que uma doação que o estado está fazendo para os grandes grileiros e latifundiários. Estão entregando terras devolutas (públicas) - que deveriam ser destinadas a reforma agrária dos sem-terra -, a preço de banana para empresários do agronegócio. Um escárnio total."

Para Yamila Goldfarb, o prejuízo da lei 17.577 pode ser maior que os R$ 50 milhões de desconto. "O que essa lei faz é barra a reforma agrária em São Paulo. É evidente que ainda existem grandes latifúndios, fazendas que devem ser desapropriadas quando improdutivas, mas grande parte da reforma agrária é feita nas terras devolutas, não nas particulares."

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"É ilegal e também imoral", criticou Simão Pedro, "pois se desfaz de bens públicos a preço de banana, com descontos exagerados e infinitas parcelas, para beneficiar apoiadores e eleitores tanto do ex-governador Rodrigo, no 1º turno, quanto o Tarcísio no 2º turno".

O governo de São Paulo prepara um grande evento para o dia 14 de setembro, em Presidente Prudente, para a entrega de títulos de propriedade. Nos bastidores, a expectativa é que Tarcísio de Freitas entregue os primeiros registros para os latifundiários que aderiram à lei 17.577 e conseguiram comprar terras devolutas que ocupavam.

Outro lado

Em nota, o Itesp afirmou que "até o momento, a maior parte dos processos considerados aptos pelo Itesp têm registro imobiliário em nome do proprietário há mais de 70 anos. Conforme determina a legislação, o recurso proveniente da indenização é destinado estritamente para políticas públicas de saúde, educação e desenvolvimento social e econômico, priorizando investimentos nos respectivos municípios onde houver a regularização fundiária."

O STF informou que não há previsão para que a Ação Direta de Inconstitucionalidade do PT seja analisada pelo plenário da Corte.

Edição: Thalita Pires