recursos naturais

Edafologia, agroecologia e Ana Maria Primavesi

Pioneira no estudo do solo como organismo vivo, maior especialista em agroecologia faria 103 anos nesta terça (3)

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Ana Primavesi deixou diversas obras que demonstram o solo como um organismo vivo e a eficiência das agroflorestas
Ana Primavesi deixou diversas obras que demonstram o solo como um organismo vivo e a eficiência das agroflorestas - Foto: Reprodução

Conhecer as propriedades físicas, químicas e biológicas dos solos é a meta dos edafologistas. A complexidade do assunto e os requisitos didáticos levaram às especializações, surgindo especialistas em física do solo, em química do solo e em microbiologia do solo. Como consequência, o entendimento desse importante recurso natural como um todo, único, indiviso, acabou prejudicado.

A compreensão das múltiplas interações ocorrentes entre os três componentes edáficos, a maneira como um interfere no outro, e o emprego dos conhecimentos advindos dessas inter-relações para o manejo e a conservação corretos do solo, visando boas colheitas sem destruir suas propriedades e desequilibrar negativamente a bioquímica das plantas, é assunto complexo demais para ser do entendimento reducionista, típico dos profissionais especializados. Nesse sentido, os edafologistas de formação ecológica conseguem obter melhores resultados práticos.

:: O exército de Ana Maria Primavesi ::

Da mesma forma que não se pode deduzir as propriedades da água (que é um líquido, H₂O) com base nas propriedades dos elementos que a formam (o hidrogênio e o oxigênio), que são gases, também não se pode inferir as propriedades do solo pela simples análise de seus componentes isolados. O ecologista sabe que o todo é muito mais do que a simples soma de suas partes, tendo características próprias, que precisam ser entendidas. Por isso ele trabalha com sistemas, que no caso da agricultura é o agroecossitema. 

Dentro da visão holística, a engenheira agrônoma Ana Maria Primavesi pautou toda a sua vida. Formada na Áustria, seu berço natal, veio para o Brasil logo depois da 2ª Guerra Mundial. No Rio Grande do Sul, na Universidade Federal de Santa Maria, desenvolveu, com seu marido Arthur Primavesi, um dos mais importantes trabalhos sobre a biota do solo, de tal profundidade e pioneirismo, a ponto de surpreender até os cientistas europeus que prefaciaram o livro, por título A biocenose do solo na produção vegetal* (1964), análise holística fundamentada nas relações planta-solo-microrganismos, em que demonstram haver relação entre a vida no solo e a produção vegetal.

O solo é entidade viva e não mero suporte físico para as plantas. Um ano depois, lançam novo livro, Deficiências minerais em culturas. Nutrição e produção vegetal (1965)*, onde comprovam "não haver doença vegetal sem prévia determinada deficiência vegetal".

A vida da professora Ana M. Primavesi está perfeitamente documentada em memorável trabalho escrito por Virginia M. Knabben (2016). Quero aqui relatar apenas como vim a conhecer esta notável cientista, com quem convivi por quase quarenta anos, sempre divulgando, com ela, por todos os estados deste país, as ideias de uma nova agricultura, de base ecológica.

O ano era 1980. Visitando um colega no Departamento de Solos e Geologia da Esalq, o que habitualmente eu fazia para atualizar meus conhecimentos, com profissionais do mais alto nível, notei sobre a mesa de sua sala um grosso volume, cujo título me chamou a atenção: Manejo Ecológico do Solo.
               — Conhece o livro? perguntou-me ele.
               — Não! respondi.
               — E a autora?
               Achegando-me mais próximo do livro pude ler: Primavesi. E logo abaixo do nome:
A agricultura em regiões tropicais.
              — Não conheço, foi minha resposta.
              — Perguntei pois estou fazendo a resenha do livro, e encontrei vários problemas - afirmou-me ele.

Deixei o prédio do Departamento com a forte convicção de que algo de novo havia na Edafologia de que eu ainda não tinha conhecimento; era importante que eu conhecesse, pois Ecologia e Conservação dos Recursos Naturais (que depois se chamou Agroecologia e Agricultura Orgânica) era o que eu estava ensinando para meus alunos da Esalq desde 1977. Ora, raciocinei, se ele como adepto que é da agricultura industrial encontrou "problemas" no livro é porque carece de conhecimentos ecológicos. Conseguintemente, o livro deve ser bom.

No mesmo dia fui à biblioteca da escola e encomendei três exemplares, prontamente adquiridos pela instituição. Foi quando conheci a obra em toda a sua profundidade, quebrando velhos paradigmas, lançando conhecimentos e técnicas ainda pouco conhecidos, alguns totalmente novos. Um fato, entretanto, intrigou-me: a autora não falava de compostagem.

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Descobri, depois, que a escola que seguia era aquela dos países de língua germânica, onde compostagem se faz sobre o solo, da mesma forma que a natureza faz, e não em pilhas, como artificialmente se descobriu e se ensinava na Inglaterra e na Esalq. Para mim, que sempre defendi o húmus como elemento primordial para a fertilidade do solo, sua boa estruturação e fornecimento de nutrientes para as plantas, constituiu surpresa a afirmação de que isso só ocorria quando o húmus se formava em condições favoráveis de pH, o que de fato constatei depois.

Conheci a professora Primavesi quando ela já estava aposentada, residindo em São Paulo com os filhos. Em todos os eventos de agricultura alternativa, como se chamava na época a agricultura orgânica, lá estávamos nós a proferir palestras, conferências, seminários, por todos os cantos deste imenso país. As pesquisas que passamos a fazer para a Fundação Mokiti Okada, de agricultura natural, levou-nos a viajar por vários países da América do Sul, da Europa, da Ásia e da África, onde os resultados de nossos trabalhos foram apresentados e publicados. Sempre rodeada por estudantes, toda a vez que me via chegar dizia, esboçando o sorriso sincero que sempre caracterizou seu espírito elevado: "Professor…!"

Mas o tempo passa e tudo muda. Sem vê-la por muitos anos, mas nunca deixando de saber como estava, uma cerimônia, a do lançamento de um meu livro (2019), fez-nos rever um ao outro. Aos 99 anos de idade, não participando mais de nenhum evento, aceitou, com muita alegria, como me disse a filha Carin, vir ao lançamento do livro. Com os braços abertos para mim, e seguramente dizendo baixinho: "Professor…!", reencontramo-nos enfim. Sob aplausos acalorados, que não cessavam, acheguei-me a ela e sussurrando-lhe no ouvido disse: "Veja, Ana, quantos seguidores nós deixamos!" Nada respondeu. Apenas sorriu.

"A mãe está na luz!", disse Carin, ao anunciar para minha esposa a perda do ente querido. Estar na luz significa estar com Deus, local dos bons, dos justos, dos abnegados, daqueles que viveram para pregar o certo, o bem, o útil, ensinando com convicção as suas ideias, conseguidas em muitos anos de estudos, criando um mundo novo e sólido para milhares de pessoas, sem nada almejar em troca a não ser a confiança, o respeito, o carinho e a amizade de tantos outros, que lhe seguiram o caminho e lhe imitaram o saber.

Lembremo-nos, pois, desta data de 3 de outubro, Dia Nacional da Agroecologia, daquilo que se fez no passado por Ana Primavesi e por todos os outros pioneiros, o que constitui forte estímulo às gerações atuais e futuras.


*Ambas as obras foram editadas e publicadas pela Editora Expressão Popular em um só volume, com o nome "A Biocenose do Solo na Produção Vegetal & Deficiências Minerais em Culturas".

**Adilson Dias Paschoal é professor e pesquisador da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo, com graduação em Engenharia Agronômica, doutorado em Zoologia, PhD pelo Ohio State University e em Ciências Agrárias pela USP.

***Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Thalita Pires