Entrevista

'Envio de policiais ao Haiti não foi decisão do Quênia, foi de um presidente reacionário', afirma liderança popular do país

Para Gacheke Gachihi, presidente Willian Ruto 'não é muito diferente de Bolsonaro' e foi cooptado pelos EUA

Brasil de Fato | Joanesburgo (África do Sul) |
Gacheke Gachihi, líder do Centro de Justiça Social de Mathare, de Nairóbi, no Quênia - Pedro Stropasolas

A Suprema Corte do Quênia barrou temporariamente o envio de forças de segurança ao Haiti. A missão internacional tinha sido aprovada pelas Nações Unidas no início do mês. A decisão da Suprema Corte, prorrogada no último dia 24, veio após pressão dos movimentos populares e de uma ação movida pelo líder da oposição Ekuro Aukot, que argumentou que o envio de forças policiais é inconstitucional.

Para entender mais esse assunto, o Brasil de Fato conversou com Gacheke Gachihi, líder do Centro de Justiça Social de Mathare, um movimento popular localizado na área urbana de Nairobi, capital do Quênia, e que articula outros movimentos populares no país. A organização faz campanhas de direitos humanos, justiça social, direito à água, e também compõe a luta pela transformação democrática no país africano.

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Movimentos populares haitianos se posicionam há meses contra uma nova intervenção militar no país. O posicionamento é motivado pela avaliação negativa sobre o legado da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), que foi chefiada pelo Brasil entre 2005 e 2017 e contribuiu para o enfraquecimento do Estado hatiano e a dependência econômica externa.

Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato: O que está acontecendo no Quênia? O que pode nos contar sobre a missão militar arquitetada pelo presidente William Ruto no Haiti?

Gacheke Gachihi: É uma situação horrível em que o Quênia se encontra. Um novo regime tomou o poder no país há quase um ano. O presidente é um reacionário. Foi eleito pelas igrejas evangélicas, pela direita cristã e fundamentalista. Ele é um neoliberal. Esse presidente, William Ruto, não é muito diferente do Bolsonaro. Eles vêm da mesma linha política e histórica. E foi cooptado pelo imperialismo dos EUA para trabalhar para eles.

O Quênia tem seu histórico com as forças imperialistas. Nairobi é como um quintal do imperialismo. Viemos de uma colônia britânica, temos muita influência militar estadunidense no Quênia.

Então a postura do presidente de enviar mil policiais quenianos ao Haiti não foi uma decisão do Quênia, foi uma decisão de um presidente reacionário, e ele foi claro quando foi à reunião da ONU, a Assembleia Geral. Ele afirmou que mandaria mil soldados ao Haiti como resposta ao que estava ocorrendo lá. Mas o problema do Haiti é um problema dos EUA, que levou violência armada ao Haiti. É uma crise do imperialismo o que levou violência ao Haiti.

O Haiti e a América Latina têm um vínculo muito poderoso por conta da Revolução do Haiti que inspirou Simón Bolívar. Então nos sentimos muito mal como quenianos e africanos por ter um presidente reacionário que tomou essa decisão.

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Na nossa Constituição, o presidente não tem mandato para mandar o Exército ou a polícia a outro país sem a aprovação do Parlamento. E essa decisão não passou pelo Parlamento. Além disso, um partido com que temos aliança, que trabalha conosco e se organiza em torno disso, e camaradas dos movimentos de direitos humanos foram à Justiça e conseguiram uma ordem para parar o envio de policiais ao Haiti se não houver aprovação do Parlamento, seguindo o que diz a Constituição. A decisão do presidente é inconstitucional. Não tem respaldo na lei queniana.

É uma iniciativa populista desse presidente, e ele defendeu isso em Nova York, na Assembleia Geral da ONU. Houve também um protesto e uma petição no Quênia que afirmou que era uma decisão equivocada, que o presidente William Ruto está agindo como um fantoche dos EUA.

E muitas pessoas estão felizes em ver haitianos protestando nos EUA e condenando as ações do presidente do Quênia, William Ruto, que é um fantoche das forças imperialistas. E a decisão que tomou não é uma decisão nossa.

Gacheke, são em torno de mil policiais ao todo?

Sim, mil. E acontece o seguinte. Quando há uma crise do imperialismo, eles usam países de terceiro mundo para limpar a bagunça deles. Somos contra isso. Então estamos fazendo um protesto, uma campanha e uma petição contra essa decisão, que já foi repudiada pela nossa Justiça e pelo Parlamento.

Por que essa missão é tão interessante para os EUA? O que você pode dizer sobre essa relação entre EUA e Quênia?

O Quênia é um Estado-cliente dos EUA. Então querem usar o Quênia e já usaram outros países para criar maquinário e combater como no Iraque ou na Líbia. É a mesma coisa. Agora perguntam diretamente se podemos enviar nossa polícia para realizar essa tarefa no Haiti. Sempre fazem isso da mesma forma. São apêndices do imperialismo: a militarização, o fascismo. E o problema do Haiti é uma criação estadunidense. Agora estão vindo até nós.

O Quênia é só mais um dos países onde eles se envolvem no treinamento militar da polícia para realizar execuções ilegais. Isso também acontece no Brasil, há muitos assassinatos de pessoas pobres pela polícia. O mesmo ocorre no Quênia, são execuções ilegais. A polícia é treinada por Israel e pelos EUA. Por que são treinados assim? Para que estejam ligados e possam ser enviados, porque foram treinados por eles. Não é diferente do que os EUA fazem na Colômbia.

É a mesma cartilha que usa a violência de Estado para tentar resolver problemas políticos criados por eles. Porque o problema do Haiti é uma criação estadunidense. E não é uma questão que necessite uma solução militar.

O problema do Haiti precisa de soluções políticas. Mas justamente porque os EUA não querem sair do Haiti e solucionar o problema político de construção de instituições democráticas, da economia e do país, eles resolvem criar um conflito militar, um conflito policial no Haiti. E assim continuar criando sectarismo e violência.

É o mesmo que vêm fazendo há muitos anos na América Latina, na Colômbia, na Guatemala, em El Salvador. É a mesma coisa. O roteiro é o mesmo. É o que estão fazendo.

Os movimentos populares vêm protestando contra essa medida e vem tendo papel central para barrar o envio das tropas. Qual a relação entre o governo e os movimentos no Quênia?

O Centro de Justiça Social de Mathare lidera os movimentos sociais no Quênia, porque estamos localizados na periferia, na favela, em assentamentos informais. Estamos documentando casos de execuções ilegais há sete anos.

Então o governo não está feliz porque nós fazemos petições, protestos e marchas, e também escrevemos cartas para a comunidade internacional dizendo que a decisão deste governo não é diferente do que fazem com o nosso povo. E nossa polícia é a pior possível porque é violenta, é uma ferramenta de opressão.

E, como disse, ela também foi treinada pelos EUA e Israel para fazer policiamento e execuções ilegais. Então não gostam de nós porque documentamos violações aos direitos humanos. Mas ainda contamos com o apoio popular e essa decisão foi repudiada por muitas pessoas. Na internet, muitas pessoas escreveram que foi uma decisão equivocada.

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Além disso, haverá o nosso protesto e nossa campanha contra a decisão. O Estado queniano nunca esteve do nosso lado. Está sempre minando o nosso trabalho e, mesmo agora, preparou uma carta dizendo que deveríamos parar de defender os direitos humanos e de documentar essas violações.

Então a questão do Haiti foi alvo de críticas no Quênia por muitos movimentos sociais, forças políticas e partidos. É uma aliança poderosa que se opõe a essa decisão. E as coisas não vão continuar assim.

O que podemos dizer é que é importante ter uma petição unificada em solidariedade entre o Haiti, o MST, os movimentos sociais quenianos, para fazer uma campanha internacional que denuncie não só essa decisão, mas também o modo como os EUA usam países de terceiro mundo como o Quênia para treinar e criar maquinário para desestabilizar outros países.

Para concluir, acha que o presidente queniano falhará nessa missão?

Não será bem-sucedida. Em primeiro lugar, foi repudiada internacional e nacionalmente. As instituições democráticas do Quênia já interromperam o envio de policiais para o Haiti. Haverá resistência à missão tanto na esfera local quanto internacional. E o que posso pedir é que os movimentos sociais façam uma campanha internacional contra isso, tanto na Assembleia da ONU, quanto na África, África Oriental, e em nosso país.

Precisamos que os movimentos da América Latina estejam conscientes de que os EUA vêm usando a polícia e o Exército para gerar violência, assassinar ativistas e cometer execuções ilegais.

Precisamos que os movimentos se unam com os da África para repudiar essa missão, porque a mesma tática e estratégia que os EUA já usaram na América Latina está agora sendo usada na África, a começar por essa missão do Haiti.

Quanto mais movimentos na América Latina entenderem o papel do Exército e da polícia dos EUA na desarticulação dos próprios movimentos e das forças democráticas e na derrubada de governos na região. São exemplos idênticos, a cartilha é a mesma na Guatemala, El Salvador, Brasil, Colômbia. Tudo igual. Então precisamos caminhar juntos.
 

Edição: Nicolau Soares