ARGENTINA

Eleições na Argentina: Milei promete cortar relações com o Brasil, se eleito, e afirma que governos devem se ausentar de questões comerciais

Manifesto alerta para perigos das propostas do candidato ultraliberal, como dolarização e redução dos gastos públicos

Brasil de Fato | Botucatu (SP) |
Milei em campanha com sua candidata a vice, Victoria Villarruel: propostas que podem prejudicar ainda mais a vida dos argentinos, segundo economistas - Luis ROBAYO / AFP - 6/11/2023

No dia em que 108 economistas, acadêmicos, intelectuais e políticos do mundo inteiro divulgaram um manifesto alertando para os perigos do programa de governo de Javier Milei, o candidato ultraliberal à presidência da Argentina deu nova demonstração de como leva às últimas consequências sua visão de mundo. Prometeu romper relações diplomáticas com o Brasil e afirmou que o comércio exterior deve se desenvolver apenas entre empresários.

O candidato pela coalizão A Liberdade Avança, que no próximo dia 19 enfrenta nas urnas o peronista Sergio Massa (União pela Pátria), explicou que, num eventual governo estritamente liberal, os cidadãos poderiam escolher com quem comercializar, sem a intervenção do Estado. “Eles poderão fazer transações comerciais com quem desejarem”, disse em entrevista ao jornalista peruano Jaime Bayly na quarta-feira (8).

“A partir da minha posição como chefe de Estado, meus aliados são os Estados Unidos, Israel e o mundo livre”, afirmou. Em outras ocasiões, já havia ameaçado tirar a Argentina do Mercosul e cortar relações com a China.

Mas Milei sabe que Brasil e China são os maiores parceiros comerciais da Argentina, e portanto as relações com esses países são importantes para a economia argentina, o emprego, a renda e o consumo dos cidadãos. Deve saber também que todos os países, mesmo os mais livres, não permitem a entrada de mercadorias ou serviços que não estejam respaldados pelos Estados onde são produzidos, conforme a imprensa argentina frisou ao repercutir suas declarações.

O candidato, em outro ponto da entrevista, reiterou seu conceito de “livre concorrência”. “Comigo, terão que competir. Terão que ganhar o pão com o suor do rosto. Terão que servir ao próximo com bens de melhor qualidade ao melhor preço, ou irão à falência. Isso é capitalismo. É disso que se trata”.

Milei também afirmou que não pretende manter qualquer diálogo com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a quem considera “comunista” e “corrupto”.

Propostas “prejudiciais”

No mesmo dia, foi divulgado um documento que adverte que as propostas do ultraliberal, como a dolarização da economia e a redução drástica dos gastos públicos, são “potencialmente muito prejudiciais” para a economia da Argentina e seus habitantes.

“Dadas as frequentes crises financeiras na Argentina e os recorrentes surtos de alta inflação, é compreensível que exista um desejo arraigado de estabilidade econômica. No entanto, embora as soluções aparentemente simples possam parecer atraentes, é provável que causem mais estragos a curto prazo, ao mesmo tempo em que reduzem o espaço para políticas a longo prazo”, diz o texto.

Entre os signatários, estão economistas com longa experiência internacional e nomes ligados ao estudo da pobreza e da desigualdade, como Jayati Ghosh e Robert Pollin, professores da Universidade de Massachusetts Amherst; Branko Milanovic, professor da Universidade de Nova York e ex-economista-chefe do Banco Mundial; o intelectual Thomas Piketty, professor da Escola de Economia de Paris; José Antonio Ocampo, que foi secretário executivo da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) e ministro da Colômbia em três ocasiões.

Num trecho que parece responder ao que Milei disse na entrevista, o manifesto afirma que a proposta de reduzir o papel do Estado criaria “mais desigualdade socioeconômica” num país que necessita de “políticas matizadas e multifacetadas que reconheçam as necessidades dos diferentes grupos sociais”. “Uma redução significativa dos gastos públicos aumentaria os já altos níveis de pobreza e desigualdade e poderia provocar um aumento significativo das tensões e conflitos sociais”, prossegue o documento.

Os signatários acham que Milei ignora as complexidades das economias modernas, as lições das crises históricas e defende políticas que “abrem a porta para o agravamento de desigualdades já graves”. Além da redução drástica dos gastos públicos, o documento questiona outra proposta do candidato: a substituição da moeda nacional pelo dólar.

Os signatários reconhecem que a dolarização da economia “pode parecer tentadora” quando “o valor das economias e a capacidade de consumo são afetados por uma inflação galopante”. Mas advertem que a falta atual de reservas de moeda estrangeira faria com que a taxa de conversão inicial do peso para o dólar fosse tão alta que geraria mais inflação, o que resultaria em diminuição dos salários reais e faria com que a carga do ajuste recaísse sobre os trabalhadores.

Sobre a Lei de Convertibilidade dos anos 1990, que estabeleceu uma equivalência fixa entre o peso argentino e o dólar americano, os signatários a consideram uma “proto-dolarização” que criou uma “breve ilusão de estabilidade”, mas afetou negativamente a economia real. “Gerou desemprego e perdas de renda real para os trabalhadores e, finalmente, levou a uma crise ainda maior em 2001”.

Radicais neutros, pero no mucho

Milei enfrenta resistências também em sua base de apoio em potencial. A UCR (União Cívica Radical) — partido da candidata conservadora derrotada Patricia Bullrich, que declarou apoio pessoal a Milei — se declarou formalmente neutra no segundo turno. Mas alguns líderes partidários manifestam preferências.

O governador de Jujuy, Gerardo Morales, alertou que, se Javier Milei vencer e acabar com a coparticipação, conforme prometeu, sua província não conseguirá pagar os salários de janeiro até abril. O deputado Martín Tetaz pediu que ele fique calado e não faça declarações que prejudiquem Milei. O governador eleito de Mendoza, Alfredo Cornejo, mantém silêncio, mas também está apoiando o candidato ultraliberal ao lado de Bullrich e do ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019).

“Se Milei ganhar, não seremos capazes de pagar os salários dos funcionários públicos em janeiro, fevereiro, março e abril, pelo menos”, advertiu Morales. Segundo ele, o candidato propõe a revogação da Lei de Coparticipação, que garante aos governadores do norte um auxílio financeiro do governo federal para compensar a queda na arrecadação tributária de impostos. “Todas as províncias terão muitos problemas”, sublinhou.

Pessoas ligadas a Morales negam que haja qualquer tipo de diálogo ou tratativa com Sergio Massa, como Macri tem insinuado desde que a aliança Juntos pela Mudança (de Bullrich) se rompeu, logo após o primeiro turno. 

Na campanha de Milei, um grupo de deputados eleitos e dirigentes tem criticado a aliança com Macri e Bullrich. Temem uma “colonização” do macrismo sobre a coalizão de extrema direita e dizem até que foi cortado o vínculo com o candidato e a irmã Karina Milei, estrategista de sua campanha.

Com informações do El País e Página 12.

Edição: Leandro Melito