EDUCAÇÃO

Conheça o projeto de reforço escolar que roda Brasília em uma kombi e funciona a partir de doações

Inaugurada em 2020, a Escola do Cerrado se reinventou para se tornar itinerante quando a Ocupação do CCBB foi desmontada

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

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Escola sob rodas leva educação e cultura para crianças e jovens das periferias do Distrito Federal. - Alex Mirkhan

Uma escola inteira que se move sobre quatro rodas e que se transforma num portal para vários universos. É mais ou menos assim que 40 crianças e adolescentes enxergam a kombi reformada e pintada de laranja que se tornou “o motor” da Escola do Cerrado, um projeto de reforço educacional em Brasília, mantido por doações de pessoas físicas e pelo comprometimento de dezenas de voluntários.

A “escolinha”, como era chamada no início, existe desde 2020 e foi pensada como uma alternativa de acompanhamento educacional para o público mirim de uma ocupação de famílias sem teto, estabelecida em um terreno ocioso da capital federal. Assim como todas as crianças do país, nesse período, eles também foram impedidos de frequentar a escola por causa das restrições à pandemia da covid-19 e estavam sujeitos a perderem todos os conteúdos enviados pela internet, a qual não tinham acesso.

Em fevereiro de 2022, o governo do Distrito Federal promoveu a reintegração de posse do terreno contíguo ao CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil), fechou a escolinha que funcionava em um casebre improvisado de madeira e dispersou as famílias para bairros distantes. Então, os voluntários não viram outra opção para manter o vínculo que não ir ao encontro dos alunos. Por algum tempo, os encontros obedeceriam em um rodízio de localidades, com o deslocamento de voluntários a bairros afastados entre si, como Riacho Fundo 2, Sobradinho e Valparaíso-GO.


“Nos deslocar para as cidades satélites sem o mínimo de estrutura era muito desgastante, porque não tínhamos cadeira,  mesa, recursos pedagógicos para oferecer alguma qualidade. Foi quando estávamos nesse caos que sonhei com a escola numa kombi”, relata a pedagoga Mariza Morgado, uma das fundadoras e coordenadora da Escola do Cerrado, que acrescenta: “as pessoas no começo não sabiam como iríamos fazer isso, falavam ‘não temos dinheiro sequer para o lanche, como fazer acontecer?’ E eu respondia: ‘a gente vai fazer acontecer, quando nos comprometemos com algo as coisas acontecem’”.

Os caminhos se abriram após a ideia chegar ao portal Razões Para Acreditar, que ajudou a organizar uma campanha de arrecadação na internet. Em poucos meses, a meta foi alcançada e o valor foi o suficiente para comprar o automóvel e adaptá-lo para abrigar uma pequena biblioteca, brinquedos e uma cozinha na parte traseira. Cadeiras, mesas, lonas, materiais escolares e até um banheiro portátil e privativo também foram adquiridos para a área externa à kombi, onde as aulas realmente acontecem.

Atualmente, os encontros são aos sábados em uma praça da Vila Planalto, localizada a apenas 3 quilômetros da Esplanada dos Ministérios. Fora alguns alunos que vivem neste bairro de classe média baixa embora central, os demais são buscados e depois levados para casa em uma van do projeto, que também conduz o pessoal para passeios a museus, bibliotecas e outros locais públicos, mas que fazem parte de uma Brasília até então desconhecida.

“No decorrer desse tempo, nós fomos notando algumas lacunas nessas crianças que não eram só a matriz curricular escolar, lacunas emocionais e de acessos culturais. Apesar de estarem dentro do centro de Brasília, eles tinham pouco conhecimento sobre o que é Brasília, o que é um museu, nós temos vários, o que é o cinema, um lazer de qualidade”, comenta Mariza.

Programação é dividida entre curricular e “socioemocional”

O equilíbrio de conteúdos programáticos e atividades lúdicas, de aulas tradicionais com lousa e giz e brincadeiras ou jogos coletivos, formam o ecossistema da Escola do Cerrado. Em um fim de semana, a grade curricular foca principalmente em português, matemática, raciocínio lógico e inglês. No seguinte, o foco são as dificuldades emocionais e sociais, com temas trazidos por grupos convidados, e também as expressões artísticas, esportivas e de comunicação. 

Mariza conta que há uma preocupação em individualizar a interação com os alunos, trabalhando as limitações de forma específica e respeitando o ritmo de cada um. “O educador elabora atividades de forma mais ativa possível para que desenvolvamos cada ponto que na escola regular faz com que ele trave as outras matérias curriculares. Muitas vezes, eles apresentavam dificuldades imensas em atividades simples, mas porque a base não foi trabalhada”, relata a professora.

Sob os mesmos princípios, mas a partir de uma perspectiva positiva, notou-se com o tempo potenciais enormes de algumas crianças e jovens em realizar atividades manuais e artísticas, que só estavam de um empurrãozinho para desabrochar. “Precisávamos estimular para eles entenderem que são muito mais do que uma nota de prova no fim do ano. Para que eles entendam quem são enquanto seres humanos, possam ter o livre arbítrio de escolher o caminho deles sem precisar estar num estigma de um caminho só, que são subempregos, caminhos marginalizados”, reforça.

Para tentar ao máximo tirar proveito dos encontros, dezenas de estudantes, pedagogos e professores de diversas áreas atuam como voluntários. Eles próprios vêm de origens e trajetórias distintas, e muitos deles ainda são estudantes ou recém-formados na Universidade de Brasília, que fica perto do terreno da antiga ocupação. 

O jornalista Ifraim de Freitas Souza, de 26 anos, se mudou para Goiânia há poucos meses, mas segue participando como voluntário. Além do apoio nas atividades, também utiliza as ferramentas que aprendeu e que agora se tornaram seu “ganha-pão”, no caso câmeras, microfones e um drone, para fazer registros do projeto. Segundo ele, a melhor parte é ensinar e ganhar amor em troca, acompanhando o crescimento e a evolução das sementes plantadas.

“Essa curiosidade com a câmera é a melhor parte. Qualquer coisa é ‘tio, me ensina, deixa eu ver, deixa eu tentar também’. Não é só educar gramática, português, química, é poder ensinar o que eles têm de melhor como pessoa, ou alguma habilidade com câmera. Quem sabe eles mesmo vão um dia fazer os conteúdos pra cá? Quem sabe eles mesmo um dia estarão ensinando os mais novos que virão?”, projeta. 

Por outro lado, a experiência também envolve forte carga emocional e exige dos educadores muito jogo de cintura para lidar com situações complexas, trazidas da vivência em casa e nas ruas pelos alunos. Muitas das famílias contempladas pelo programa estão ou já estiveram em situação de vulnerabilidade, e não conseguem oferecer todo amparo necessário para os filhos. 

“Às vezes, o que eles trazem da família é muito pesado. E aí as informações que os familiares têm impactam no que a gente faz. Provavelmente a forma de se expressar muito agressiva, que um familiar entende de uma forma e a criança entende de outra, e chega na gente de outra. A gente tem que manejar muito bem para conseguir entender, porque não é por maldade, mas uma relação mais intensa”, descreve o historiador e estudante de Ciências Sociais Gustavo dos Santos, de 22 anos, que atua há dois anos no projeto.

No sábado que a reportagem do Brasil de Fato esteve presente, após algumas atividades lúdicas e um lanche inicial, os alunos foram convidados a debater sobre drogas, um tema que quase sempre atravessa as suas realidades. Após formar uma grande roda, o assunto foi puxado por duas participantes do Coletivo Bateu, pela redução de danos e riscos sobre drogas, uma equipe multidisciplinar criada há 4 anos na UnB. 
  
Priscila Santos, orientadora do coletivo, falou sobre o que são drogas, os usos, abusos e redução de danos com crianças e adolescentes. Segundo ela, a experiência foi positiva e foi além de conhecimentos restritos à TV, internet ou igrejas, que costumam oferecer um viés “moralista, preconceituoso e proibicionista”.

“Sabemos que a realidade dessas crianças e adolescentes é outra, muitas vezes tem casos na família ou já conhecem, já viram alguém com problemas com relação ao uso de substâncias. Mas eles não sabem nomear isso, não sabem o que é, acham que é o fim do mundo a pessoa usar uma substância. Tem muitos tabus, então acho que a nossa maior dificuldade hoje foi chamar a atenção deles, cativar eles para falar sobre isso e de uma forma mais lúdica, mais divertida, mais leve”, relata Priscila.

Ajude a financiar a Escola do Cerrado

Se as sementes plantadas nesses 4 anos da escolinha já começaram a germinar, há uma demanda para que a escola se expanda e alcance cada vez mais gente. Porém, as limitações financeiras tornam o projeto distante, simplesmente porque já está difícil garantir a estrutura atual. 

Mariza estima que os custos mensais para manter cada aluno, incluindo refeições, materiais e transporte é de cerca de R$ 100. Atualmente, no entanto, apenas 1 ⁄ 5 desse valor tem sido arrecadado em doações. Para fechar a conta, ela tem colocado dinheiro do próprio bolso.

“Nós acabamos de ter CNPJ, ainda não viramos uma Oscip [Organização da Sociedade Civil de Interesse Público], não conseguimos fazer emendas parlamentares, acessar editais. Então, hoje, a Escola do Cerrado sobrevive de doações de pessoas físicas. Inclusive nós estamos precisando muito de doações para que o nosso almoço continue acontecendo e para que sigamos comprando materiais de qualidade para as crianças”, afirma. 

Esse projeto bonito já faz a diferença na vida de muita gente em Brasília, e pode fazer ainda mais com a sua ajuda. Acesse o site da vaquinha virtual e contribua como puder. Afinal, a educação transforma o mundo e é um direito de todos!

Edição: Rodrigo Durão Coelho