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'Um governo bom não basta para manter as forças progressistas no poder', afirma Eduardo Moreira

Ao 'BdF Entrevista', economista alerta para necessidade de buscar caminhos para renovação do Congresso no futuro

Ouça o áudio:

Eduardo Moreira (à direita na imagem) foi entrevistado pelo jornalista José Eduardo Bernardes - Reprodução
Tem condições do Brasil voltar a ter volume de crédito, e um crédito saudável

O primeiro ano do novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) trouxe, até aqui, bons números na economia. O Produto Interno Bruto (PIB) pode crescer perto de 3%, bem acima das expectativas anteriores. O país voltou a rondar o grupo das dez maiores economias do mundo. Mas, para o economista Eduardo Moreira, fundador do Instituto Conhecimento Liberta, o bom cenário econômico pode não ser suficiente para manter as forças progressistas no poder.

Convidado do Brasil de Fato Entrevista, Moreira defende que um bom governo não representará, necessariamente, mudanças na próxima composição do Congresso Nacional. Mais que isso, é preciso estar atento para não cair na armadilha da acomodação.

"A gente tem que ter cuidado com um governo que seja simplesmente um governo bom, porque qualquer governo depois do governo do Jair Bolsonaro (PL) que tenha minimamente o cuidado de fazer as coisas apontando para uma direção certa vai parecer um governo bom", resumiu.

Ao comentar as iniciativas do governo, ele defendeu o fortalecimento dos movimentos populares e destacou o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), como um dos integrantes do primeiro escalão "que mais tem ousado e tentado enfrentar estruturas que são muito difíceis de combater", mas também fez críticas incisivas, como à taxação dos super ricos, considerada uma vitória pelo governo.

"Existem dois papéis: o meu papel de alertar para coisas, que eu acho que são feitas, que beneficiam muito mais a Faria Lima do que a pauta realmente necessária para mudar o país. Eu acho que tem coisas que são feitas que são longe de serem as ideais, mas o meu papel de apontar, de criticar, de alertar, é um papel diferente do cara que tem que executar", disse.

Confira abaixo a entrevista na íntegra.

Brasil de Fato: O Brasil conseguiu até o momento ampliar as expectativas do PIB tanto para este ano quanto para o ano de 2024. Não era isso que estava no cenário inicial, quando o Lula assumiu a presidência. Tinha muita coisa para ser feita, não é? Quais foram os acertos que propiciaram esse cenário mais positivo para o governo logo de cara, logo no primeiro ano?

Eduardo Moreira: Boa pergunta. Antes do Lula começar o mandato dele, depois dele ser eleito, eu falava que a gente teria um resultado, neste ano e no ano que vem, muito melhor do que as pessoas estavam esperando. As pessoas estavam esperando 0,5%, 1%, eu falava "não, esse resultado deve vir em torno de 2,5%, 3%", que por acaso está muito próximo do que estão esperando, para este ano e para o próximo.

Mas eu falava assim: "a gente tem que tomar cuidado com esse 2,5%, 3%". É claro que é bom. A gente tem que ter cuidado com um governo que seja simplesmente um governo bom, porque qualquer governo depois do governo do Jair Bolsonaro que tenha minimamente o cuidado de fazer as coisas apontando para uma direção certa vai parecer um governo bom.

A gente tem um efeito base na matemática. O que é o efeito base? É o seguinte: se uma coisa cair de dez para dois, ela caiu 80%, só que você passa a comparar com uma base que é muito mais baixa. Se ela sobe de dois para quatro ela subiu 100%. Mas ela subiu 100%, a manchete é "subiu 100%, não sei o quê", mas não está 20% acima de antes. Pensa: a primeira manchete do jornal é "caiu 80%". A segunda, "subiu 100%". Então tá 20% acima? Não! Está 60% abaixo, ainda. Estou explicando isso por que quando você compara uma coisa com algo que era muito ruim, você pode ficar seduzido por estar tomando a direção certa e se acomodar.

O Brasil voltou a ali estar "beliscando" as dez principais economias do mundo, isso muito também porque o ranking do FMI [Fundo Monetário Internacional] considera o PIB em dólar, e o Brasil conseguiu uma apreciação do real em relação ao dólar porque fez, novamente, políticas na direção correta. Trouxe credibilidade, voltou a trazer interesse de investimentos de fora pro país, ordenou a bagunça, deu essa organizada inicial que já faz muita diferença, porque a gente vem do caos de Bolsonaro. Qual é o perigo disso pra mim? Um governo bom não basta, primeiro, para manter a esquerda ou as forças progressistas no poder e nem para ampliar.

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Estou falando uma coisa que é até ousada. Se a gente fizer um governo bom, eu acho que a gente não consegue nem ampliar por exemplo a nossa presença no parlamento, porque vai ficar, talvez, aquela sensação de "pô, tá vendo? Não vamos mexer muito não, porque se mexer é perigoso, pode voltar o Bolsonaro. Então vamos seguir aqui com [Arthur] Lira (PP-AL), vamos seguir aqui com o [ministro das Comunicações] Juscelino Filho (UB-MA), com o [ministro dos Esportes André] Fufuca (PP-MA), vamos seguir com o União Brasil, vamos seguir com o PSD, é o que dá para fazer". Eu tenho viajado para aprender a conhecer essa realidade. Quanto tu pisa onde o bicho está pegando, [vê que] precisa mudar muito. A gente precisa de mudança de paradigma.

A esquerda nunca teve uma maioria absoluta no Congresso; o Lula deixou o governo, segunda gestão, com mais de 80% de aprovação…

Oitenta e sete por cento! Eu sei que eu estou em um lugar onde, por exemplo, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) tem muita importância. Pergunta para o pessoal do MST se está legal crescer 2,5% sem distribuir terra. Se está legal crescer 2,5% se esse crescimento vem só de latifúndio; se esse crescimento vem chancelando, legalizando as ilegalidades cometidas pelos grileiros; se esse crescimento de 2,5% está legal, se ele significa aumentar o número de bilionários no Brasil e as capitais ainda estarem cheias de pessoas ou caídas no chão, porque estão desempregadas, perderam a batalha para as drogas, ou morrendo de fome fazendo fila. Então a "ajeitada" faz parte, mas a gente tem que lutar pelo próximo passo, e o próximo passo é uma mudança paradigmática, porque eu acho que a gente não tem "plano B".

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O risco, para mim, é que esse crescimento legal abra a porta para essa sensação de que não dá para mudar, que o máximo que dá é "ah, o Bolsa Família, a gente vai dar uma melhoradinha" agora tem um programa que… O cara fala assim, "então é isso? Eu estou destinado a ser um cara que não é reconhecido, não posso ser treinado, não posso ser aperfeiçoado, não posso ter um emprego, não posso desenvolver uma carreira musical, não posso ser poeta… Eu estou aqui para sobreviver".

E o governo também pode cair no risco de uma acomodação?

Total! E o problema é que essa acomodação não limpa esse sentimento de indignação, de revolta. A gente sabe que isso é uma bomba relógio, e que quando vai chegando perto da eleição os grupos da extrema-direita sabem alimentar essa bomba relógio. Os grupos da extrema direita sabem onde o calo aperta e sabem apertar o calo para gerar aquele buzz, aquele sentimento de fazer viralizar as notícias que são piores, e a coisa sai do controle fácil.

Então eu acho que a gente tem que voltar a dar aquela esperança verdadeira, e a esperança verdadeira só nasce quando parece que as coisas vão mudar, e não quando parece que as coisas "deram uma acalmada". Acalmar é importante quando você vem do caos, mas o acalmar tem que ser só um estágio para trazer de volta a esperança de que as coisas vão mudar de verdade, estruturalmente.

É essa minha luta hoje em dia: cobrar as mudanças estruturais, que eu tenho visto que é a luta do MST também, que, é claro, é apoio ao governo. Mas é uma cobrança pela mudança estrutural, que é a única mudança que a gente acha que pode fazer a gente crescer, em termos de participação política, em termos de tamanho político, etc.

Entre as questões que foram apontadas no início da gestão, que pareciam ser pedras no caminho, está a expansão do crédito. Alguns economistas falavam que isso era um grande problema para o país crescer novamente. Se a gente for relembrar, essa foi a grande agenda dos primeiros governos do Lula: o consumo das famílias. Há espaço para isso na economia?

Uma grande diferença do terceiro mandato do Lula em relação ao primeiro e segundo mandato é o Banco Central autônomo. A autonomia do Banco Central, que na verdade é quase que uma independência do Banco Central. Então como é que você vai fazer o mercado de crédito voltar a "bombar" com uma taxa de juro real que é a maior do planeta? Como é que você vai fazer o mercado de crédito voltar a "bombar" se estava dando a semana passada a notícia: tem banco no Brasil que cobra 987% de taxa de juro ao ano? É impagável!

Esse governo fez um programa maravilhoso, que é o Desenrola. É maravilhoso e merece os nossos aplausos, pela coragem, pela iniciativa. É um programa super inovador, e que muita gente dizia que não seria possível, mas se a gente não tiver esse direcionamento… O crédito não acontece simplesmente por vontade. As pessoas não emprestam dinheiro e não investem dinheiro simplesmente porque você fez um discursinho bonito. Elas emprestam dinheiro quando a taxa de juros, por incrível que pareça, é menor estruturalmente. Quando ela é menor estruturalmente, eles sabem que eles podem emprestar volume, porque as pessoas têm condição de pagar de volta.

O lucro desse ou daquele banco pode ser até maior com uma taxa de juro altíssima, mas nunca vai ter volume de crédito. Quais os países do mundo que têm maior volume de crédito? Os que têm as taxas de juros mais baixas, não são os que têm a taxa de juros mais alta. A gente tinha que estar praticando uma taxa de juro muito mais baixa do que a gente pratica hoje, e a gente estaria similar ao que o mundo faz. Não estaria fazendo nada absurdo, "os caras de esquerda, comunistas", não! Estaria fazendo o que o mundo faz. O absurdo é o que a gente faz, que nenhum outro país do mundo faz, em termos de taxa de juro real.

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E a gente, é claro, teria que complementar isso com programas de governo, aí você bota os bancos estatais para poder cumprir o papel que eles têm que cumprir, você faz programas como o Desenrola, você faz campanhas, também, educando a população a saber tomar o crédito sem cair nas armadilhas dos bancos… É todo um processo.

Não tenho uma cartada mágica, o negócio. Mas tem condições do Brasil voltar a ter volume de crédito, e um crédito saudável, para que as pessoas possam montar seus negócios, ter os equipamentos necessários para poder crescer, como empresa e individualmente, tem. Que tem capacidade, tem. Mas tem que ter essa organização e depende também de coisas que é o Banco Central que faz.

Como você tem visto o desempenho do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, à frente da pasta? Ele tem tido uma boa articulação com o Congresso, tem tido uma boa aceitação do dito "mercado", e também, obviamente, tem liderado o governo Lula, apesar de alguns atritos recentes.

O cargo de ministro da Fazenda é um dos cargos mais difíceis que você pode ter, principalmente pegando o país nas condições que o Fernando Haddad pegou. É muito difícil, e as mudanças que o Haddad tem que fazer, boa parte delas precisam de aprovação no Congresso.

Eu estou falando isso porque existem dois papéis: o meu papel de alertar para coisas, que eu acho que são feitas, que beneficiam muito mais a Faria Lima do que a pauta realmente necessária para mudar o país. Eu acho que tem coisas que são feitas que são longe de serem as ideais, mas o meu papel de apontar, de criticar, de alertar, é um papel diferente do cara que tem que executar.

Por incrível que pareça, um dos ministros do governo Lula que mais tem ousado e tentado enfrentar estruturas que são muito difíceis de combater, como por exemplo o Carf, mudar o voto de qualidade do Carf, fazer essa questão do Desenrola, de chegar e dar essa forçada de barra para os bancos terem que renegociar a dívida das pessoas físicas e também das pessoas jurídicas, você chegar e tentar de alguma maneira mudar a estrutura tributária. Uma das pessoas que mais tem ousado é o Haddad.

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Então olha que curioso, e uma coisa pode parecer meio estranha. Eu acho que o Haddad é o cara que tem, talvez, as intenções mais próximas daquilo que leva a uma mudança de paradigma, mas ele está conseguindo aprovar coisas que, no final das contas, várias delas atendem aos interesses da Faria Lima. O arcabouço fiscal: o modelo que eu imaginaria, que eu defenderia seria um modelo muito mais ousado do que a gente fez. O que ele fez com o arcabouço fiscal? Ele obrigou o governo a ter que entregar um superávit num prazo extremamente curto. A pergunta é: por quê? Porque 2024? Porque não 27? Porque não 29?

É claro, você tem que ter previsibilidade, você tem que ter um caminho para seguir, mas o ponto que eu quero ir é além: quando você promete isso, já criou a expectativa. E aí, criou expectativa, tem que entregar. E aí, para entregar, tem que ter mais receita e menos despesa. Como é que faz menos despesa com um país que quer crescer? Tem que fazer mais receita. Quando faz mais receita, você tem que mexer, por exemplo, na tributação. Aí para pegar de verdade, você tem que pegar os caras que têm muito dinheiro.

O cara que tem muito dinheiro, que foi o que obrigou o arcabouço fiscal, ele chega agora por exemplo e fala o seguinte: "eu sei um lugar onde você pode arranjar dinheiro esse ano". O quê? "Pega os fundos exclusivos que a gente tem, que a gente tá acumulando ali 15% de imposto devido há décadas, e faz o seguinte: dá um desconto pra gente, de 15 para 8, se a gente pagar no ano que vem, que a gente zera nosso estoque todo, gera o imposto todo em cima do nosso estoque e aí você consegue o dinheiro que você precisa para poder entregar essa meta de superávit, essa meta fiscal que você se propôs". Não tem mais de onde sair, aí tem que fazer. Na prática, o que o governo fez? Deu quase 50% de desconto do imposto que era devido pelas pessoas mais ricas deste país.

Você tá falando da taxação dos super ricos?

Que não é uma taxação de super ricos! É um desconto no imposto dos super ricos. A parte do fundo exclusivo. A offshore é uma taxação que não tinha mesmo, é um avanço. Começou a cobrar, a variação cambial não vai ser cobrada, não é desse jeito, mas é muito melhor do que o que era antes. Palmas para o governo, avançou pra caramba, como ninguém tinha avançado nas últimas décadas na questão das offshores. É o que a gente imaginava, como ideal, que a gente queria? Não, mas o ideal é o que a gente luta e o possível é o que a gente faz.

Agora, no caso dos fundos exclusivos no Brasil, a Faria Lima – e eu, eu conheço a turma da Faria Lima, eu estou falando com conhecimento de causa e conhecimento das pessoas. As pessoas estão celebrando. Foguete, palmas, festa, champanhe. O que foi aprovado foi um desconto. Ele já devia! No fundo deles, tinha patrimônio bruto e patrimônio líquido. O patrimônio líquido já mostrava um valor que estava ali previsto: 15% de imposto sobre o lucro que ele teve ao longo dos anos todos. E o que o governo fez para poder adiantar esse dinheiro, que ele precisa desse dinheiro para o arcabouço fiscal, é dar um desconto de metade desse imposto que era devido, ou quase metade, 46%. Eu acho isso um absurdo monstruoso.

No todo desse projeto, ele passa muito mais com uma pauta moral, de sensação de justiça, ou de fato, a gente vai ter uma arrecadação melhor para esse período?

O que vai acontecer é o seguinte: você sabe quando a loja está precisando de dinheiro, por capital de giro, e ela tem recebíveis para daqui a um mês, daqui a seis meses, daqui a um ano daqui, a dois anos, daqui a três anos. Ela vai vendendo em parcelas e ela tem recebível por um monte de coisa. Eu posso chegar e falar assim: "tudo que eu tenho para receber daqui seis meses, um ano, dois anos, eu vou no banco, vou descontar tudo e adiantar tudo para hoje". Vai parecer como como se minha situação tivesse melhorado para caramba, mas eu tô vendendo o resultado futuro para ter hoje.

As pessoas não se lembram, mas quando todo mundo tinha fundo de investimento e não tinha come-cotas, teve um dia que mudou a lei e falou assim "a partir de tal prazo vai ter come-cotas". Então o nosso fundo passou a ser cobrado. Ninguém teve desconto nenhum. Ele simplesmente passou a ser cobrado quando mudou a regra. E só não mudou para os ricos. Tinha que falar o seguinte: "agora mudou também para os ricos".

Então agora, em vez de pagar só quando você resgatar, que nem todo mundo passou a fazer lá atrás, você também vai pagar de seis em seis meses. Com a gente foi assim, por que para o cara vai ser diferente?! Além do cara ter todo o poder do mundo, que é o que eles têm, me dá uma razão lógica para ser diferente. Uma razão moral. Não tem!

Eduardo, mudando um pouquinho de assunto. Já pudemos conversar algumas vezes, em diversas situações, e você sempre demonstrava a importância da comunicação na disputa de narrativas. Agora você criou o ICL, um canal no YouTube, com conteúdo diário e a participação de grandes nomes, tem um monte de gente legal. Como tem sido o resultado, o que você tem avaliado desse projeto de comunicação?

A gente está muito feliz com com o Instituto Conhecimento Liberta. Ele é um ecossistema de informação. Ele surge com cursos, meio que uma universidade de tudo para todos. A ideia é uma academia de tudo para todos, que vai até virar universidade agora. Mas ele surge há três anos com essa ideia de cursos, como os cursos de PUC, Unicamp, FGV, etc. Sem ser aqueles cursos de internet curtinho: curso de 15 horas, de 20 horas. Cursos profissionalizantes, cursos de idiomas, as pessoas pagando um valor muito pequeno e as que não podem pagar, recebendo de graça bolsas para poder estudar.

A gente faz isso, o negócio dá muito certo. Começa com 14 cursos, hoje, a gente tem 240 cursos no ICL, alguns dos maiores professores do mundo. Então a gente tem o [Noam] Chomsky, tem a Nancy Fraser… No Brasil a gente tem Marilena Chauí, tem Gisele Cittadino, tem o [Leonardo] Boff, tem Frei Betto, tem um monte de gente incrível.

E aí quando começa a sobrar algum caixa nisso a gente fala: "vamos dar mais um passo nessa disputa pela informação que chega até as pessoas. Vamos começar a fazer jornalismo". E aí a gente montou, um ano e meio atrás, o jornalismo do ICL. E aí vieram nomes ao longo desse ano e meio: Chico Pinheiro, Xico Sá, Cristina Serra, Heloísa Villela, William de Lucca, Cesar Callejón, Roberta Garcia, Chico Alves, Gabriela Varella. Veio um monte de gente super preparada. Com certeza eu estou esquecendo, tem um monte de gente no negócio. Mas enfim, pessoas super conhecidas do grande público e pessoas que comungam muito dessa visão progressista e humanista de mundo.

O negócio começa a dar muito certo. Não é todo dia, porque a gente disputa com a Jovem Pan do outro lado, mas a gente, vários dias, é líder de audiência no Brasil na internet, de notíciário. Então a gente bate Band, bate CNNCNN a gente bate somando a internet com TV deles, de manhã. A gente bate Record, bate SBT, bate todos esses na internet, no YouTube mais Facebook.

Lançamos a segunda edição, lançamos um programa de entrevistas, lançamos um programa de mercado e investimentos com visão progressista, o único que eu conheço no Brasil, mas não conheço em nenhum outro lugar, também. Hoje a gente tem quase oito horas de programação diária e agora estamos dando o próximo passo. Vamos agora fazer documentários, vamos fazer ficção, vamos fazer séries. A ideia é essa: a gente disputar essa história de mundo que chega até as pessoas, seja através dos cursos, seja através do noticiário, seja através dos outros programas que a gente tem.

No ICL você tem atuado também como comentarista, acompanhado as movimentações do país, principalmente as políticas, um pouco mais de perto. A gente já sabia que a gente teria um congresso conservador, duro de enfrentar. Mas como você tem visto essa queda de braço entre o governo e o Centrão?

Isso se chama política, né? Agora, eu acho um erro tremendo, e não tenho o menor problema com quem se irrita quando eu falo isso, eu acho um erro tremendo a gente começar agora a ter essa essa "bengala", esse apoio de qualquer coisa falar o seguinte: "Ah, mas olha esse Congresso, também com esse Congresso não dá para aprovar coisa diferente. Ah, mas também sem apoio político…" Irmão, não tem essa!

Primeiro que tem um monte de coisa que dá para fazer sem o Congresso. "O que por exemplo?" Você já percebeu o quanto Bolsonaro fez cair de dinheiro nos movimentos que apoiavam as ideias malucas dele?! Movimentos de atiradores, de CAC, a imprensa fascista, os grileiros… Como é que chegou tanto dinheiro nessas pessoas?!

Você canaliza os recursos. Tem um orçamento do governo, não tem que passar pelo Congresso. O que o cara comprou pra escola, o movimento que vai ser apoiado… Não é tudo tem que passar pelo Congresso.

Eu acho que esse governo tinha que fazer desaguar bilhões em movimentos que já estão organizados, que estão no campo, que estão nas cidades, que têm essas ideias progressistas, mas não têm verba, não têm recurso. Então tinha que abastecer. Só que qual o grande problema da política? Quando você começa a abastecer de recursos vários movimentos organizados, você descentraliza poder. Você divide o poder. E na política ninguém gosta de dividir poder.

Quando você me pergunta "o que você acha que o Governo deveria fazer?", eu acho que o governo deveria derramar um monte de recursos, os possíveis, nos movimentos que apontam para esse lado de mudança, para esse lado de pautas progressistas, e aí confiar nessa descentralização. Apostar nessa descentralização de poder.

Tira o Congresso do jogo?

Você nunca tira o Congresso do jogo, porque as mudanças ultra estruturais, você precisa de mudanças na Constituição e etc. Mas à medida que você vai fortalecendo isso, cria apoio popular, cria base, cria barulho, cria organização e aí isso muda o Congresso lá na frente.

A pergunta que eu te faço é o seguinte: sem derramar dinheiro nesses movimentos, sem esses movimentos poderem se fortalecer e crescer, sem propor nenhuma mudança grande, porque você acha que o próximo parlamento vai ser melhor para a gente do que esse? Me dá um bom motivo. Se a gente não criticar nada, o que vai me levar a crer? Milagre?!

E parte das emendas do Congresso têm sido mantidas para as mesmas pessoas que fortalecem seus currais eleitorais, e vão se eleger novamente.

Não tem mistério. O jogo é simples! É difícil, mas é simples.

Uma última para a gente terminar o programa, que infelizmente é muito curto. Tinha muitas outras coisas para a gente falar. Você foi responsável por pelo menos dar o pontapé inicial de acesso a crédito para diversas cooperativas do MST. É um negócio importante para o fomento da alimentação saudável, da agroecologia, mas também uma reafirmação de políticas valorosas para o campo. De onde veio essa ideia?

A ideia veio de uma conversa que eu estava tendo com o João Pedro Stédile, com o João Paulo Rodrigues, se não me engano, o Neuri [Domingos Rossetto] acho que estava também na conversa [todos dirigentes nacionais do MST]. E aí eles falaram: "tem uma cooperativa no Sul, o Bolsonaro cortou tudo que é linha para agricultura familiar, para as cooperativas, etc, e tava quase terminando ali a conclusão de uma agroindústria, e se ajudar, dezenas de milhares de famílias que moram ali na grande Porto Alegre, e são várias famílias atendidas pela agroindústria, ali em termos de oferta de emprego, então a gente precisa levantar esse dinheiro com algum banco".

Aí eu falei, "não vamos levantar com banco não. Vamos fazer uma operação com as pessoas que apoiam MST, em vez de investir dinheiro no Itaú, em vez de investir dinheiro no Bradesco, em vez de investir dinheiro na Vale, em vez de investir dinheiro nessas empresas que a gente reclama, mas nosso dinheiro tá investido lá, quem financia eles são somos nós! Vamos investir dinheiro que a gente acredita! E eu ponho dinheiro meu nessa história para mostrar para as pessoas que eu acredito nisso".

Levei a ideia para o João Paulo Pacífico, da Gaia, porque é isso precisava ser estruturado. Ele estruturou tudo, fez um trabalho brilhante, ele e a Gaia, com advogados, com um monte de gente, e levantamos ali uma operação de captação de recursos via um CRA, Certificado de Recebíveis do Agronegócio. Foi uma primeira operação pequena, de R$ 1,5 milhão, mostramos que deu certo e fizemos a segunda, de R$ 17 milhões. E é uma operação que beneficiou 12 mil famílias no campo.

Eu duvido que você mostre uma operação que já foi feita no Brasil até hoje com valor tão pequeno, em termos de país, R$ 17 milhões para uma operação no mercado financeiro, é pouco. Com valor tão pequeno que ajudou tanta gente, que atendeu tanta gente. É histórico. No Brasil isso nunca aconteceu antes. Isso aconteceu, claro, por causa do esforço de todo mundo: do João Paulo Pacífico do meu também, mas porque existe um MST. Existe uma estrutura organizada.

É por isso que eu digo: se o governo reforçasse todas essas estruturas, tudo depois fica mais fácil. Já tem a base, já tem estrutura toda, tem capilaridade.

Edição: Nicolau Soares