consciência negra

Mudar o mundo a sua volta para acabar com o racismo

Podemos fazer mais do que se tem feito para acabar com o racismo? Sim podemos ou 'Yes we can'

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
De recenseamento em recenseamento o Brasil passou a ser reconhecido como o País de maior população negra fora da África - Yasuyoshi Chiva / AFP

O que é que se pode fazer para mudar o mundo? Podemos fazer mais do que se faz? Fazemos menos do que se deve? Eis uma questão, uma narrativa, um problema ou uma reflexão. Será esta a principal questão filosófica do século 21? O que dizer dos pressupostos filosóficos de mudança social do século passado? Estão ultrapassados?

No atual contexto mundial nos defrontamos com dúvidas, novidades, medos, mortes e incertezas. É o que Achile Mbembe, filósofo camaronês, definiu como a era da necropolítica do capitalismo. Sua leitura intui reflexão e urgência na mudança para reequilibrar as condições humanitárias e a sustentabilidade do planeta.   

No século 20, quando surgiam tais emergências era o momento de revisitar os pressupostos teóricos de mudança social e  tentar implantá-las.

Há que se revisitar referenciais teóricos importantes do século passado. Os filósofos influenciadores daquele século anunciam  caminhos da mudança: reflexão, participação política, emancipação e os novos valores das relações entre os indivíduos. Frantz Fanon, psiquiatra e filósofo político da Martinica, para quem a radicalidade era enfrentar os desafios da vida com a reflexão. Karl Marx, economista, advogado e filósofo, para quem o principal fundamento e razão do ativismo não é uma ideia sobre a realidade. É a participação na política até que haja a emancipação. Não será tarefa principal revisitar aqueles pressupostos, apenas indicamos o emaranhado epistemológico exigido na reflexão. 

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No momento observaremos a esperança de mudança social nas ações denominadas antirracistas, aquelas protagonizadas por brancos ou negros e as ações de combate ao racismo protagonizadas pelo Movimento Negro, do que outras.

 A luta negra nas ruas

Inicialmente recordamos o momento em que os movimentos sociais inauguram o protagonismo democrático na sociedade civil para recompor o tecido sociocultural esgarçado na ditadura militar de 1964. Período em que negras e negros universitários ou não, das escolas privadas ou públicas, da capital ou interior, das periferias ou centro metropolitano, de outros estados se jogaram na luta de combate  ao racismo e constituíram a movimentação negra daquele período. Era preciso reestabelecer os laços cortados com os ativistas das gerações anteriores e dar continuidade a resistência negra: Vanda do Bar Rua, Dra. Iracema, Odacir Matos, Thereza Santos Correia Leite, Abdias do Nascimento, Oliveira Silveira dentre outros e outras  espalhadas por todo Brasil.

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O Movimento Negro fez muito nos quase últimos 50 anos. Legou importantes conquistas, principalmente as que fragilizaram o mito da democracia racial, a exemplo do quesito cor-raça, a resistência negra nas ruas, contestação  do apagamento da história de negros e negras, papel das mulheres negras na história e no ativismo e  a denúncia da violência policial. As reivindicações e denúncias eram para afirmar que o racismo existente corroía a qualidade de vida da população brasileira.

A movimentação nas ruas abriu caminhos para o fortalecimento da identidade negra. A aceitação, no campo institucional, do quesito cor-raça, um instrumento estatístico e avaliativo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), reivindicado para auferir quantos são os negros e negras na nação brasileira, dá uma  reviravolta no padrão indentitário nacional. A sociedade civil e a comunidade negra se apropriam do quesito cor-raça. Do ponto de vista da identidade, os grupos sociais seguiram orientação dos blocos afros para estampar a estética, o orgulho negro e a resistência cultural nas ruas. Outros se apegaram a movimentação “black” da sua cidade local. Cada grupo social ou organização negra, a seu modo, entra em ação e altera o padrão da identidade racial ou étnica brasileira. Nos últimos 50 anos o comportamento afirmativo da comunidade negra em relação à identidade mudou radicalmente. De recenseamento em recenseamento o Brasil passou a ser reconhecido como o País de maior população negra fora da África. Colaborações inestimáveis as gerações futuras de afrodescendentes, negros, pretos morenos e mestiços que aprendem a auto identificação e a denunciar o racismo na vida pessoal, na escola, no trabalho, no sindicato, na política partidária da vida institucional e em todos os cantos. 

A democracia racial aludida na Constituição Federal e na sociedade brasileira não era mais uma verdade absoluta. O mito da democracia racial foi sistematicamente denunciado nas ruas ao ponto de em 1988 alterarmos o preceito constitucional do racismo. De uma contravenção penal, o racismo passa a ser reconhecido e criminalizado. 

A intensa presença negra nas ruas construiu, física e teoricamente, o que hoje se denomina de movimento social negro. Colaborou com os centros de pesquisas universitários para categorizar o movimento negro e as pautas nacionais. E, nesse ritmo de questionamento, estudo e pesquisa, chegamos ao racismo estrutural, institucional, feminismo apropriado a realidade da mulher negra e indígena, ao gênero e termos congêneres. Em decorrência aumentou a importância da negritude, da consciência negra, da ancestralidade, da participação na luta de combate ao racismo e ao sexismo. Hoje o Movimento Negro fulgura ao lado dos demais movimentos, como: o feminista, dos povos indígenas, dos sem terra, dos LGBTQI+ que reivindicam cidadania plena. 

As mulheres negras autonomizam suas pautas amparadas na organização específica, nos estudos e vozes de Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Sonia Leite dentre outras Dandaras, Chicas, Carolinas de Jesus, Ivones Laras, as quilombolas rurais e as Yalorixás dos terreiros espalhadas em todo o Brasil. E de encontro a encontro, nacional e internacional, de marcha em  marcha destacam o papel da mulher negra no interior da comunidade, na sociedade  e nas mudanças sociais. Ávidas da perspectiva estadunidense do “empoderamento", da “representatividade” e da experiência e know how de Angela Davis no  ativismo dos Panteras  Negras, elas acreditam que a própria organização é um processo revolucionário e atuam duplamente  nas agendas do combate ao racismo e do sexismo.

Alguns setores do Movimento Negro na etapa atual de denúncia da violência policial enveredou para o questionamento  nacional: qual é o padrão de segurança  pública para a população negra capaz de reduzir o encarceramento da juventude? O debate vem ganhando força na sociedade civil desde o lançamento do Movimento Negro Unificado – MNU (1978), a publicação na década  de 1980 do  livro intitulado Genocídio do negro brasileiro, do ativista Abdias do Nascimento, as políticas  públicas em defesa da vida da juventude, qual é o papel das mulheres negras nas periferias e o debate da representatividade negra no Supremo Tribunal Federal (STF),  dialogam com a violência periférica.

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Correlação de forças favoráveis e contrárias ao racismo

Na correlação das forças em disputa entre as relações de raça, classe e gênero há vitórias e derrotas em todos os lados. Por exemplo, há quem defenda o pensamento conservador da inexistência do racismo e  atuam na manutenção do “status quo”. Repetem subliminarmente o slogan alienante:  “o  Brasil é um país que não tem racismo”. O Brasil deve apagar as marcas da escravidão e embranquecer a população a partir da mestiçagem física e miscigenação cultural. Os brancos, nos altos postos e escalões, aí chegaram por mérito e por isso  são valorizados e desejados. Os negros estão nos baixos escalões, são desvalorizados e não desejados por que não têm unidade política para conquistar o poder e as demandas por igualdade são  polêmicas na sociedade. 

Este pensamento reproduz um discurso ideológico e não tem correspondência na realidade.  A ideologia nos parece um equívoco na medida em que concebe o racismo apenas a partir da cor da pele ou  dos fenótipos  humanos  diferenciados. Os evidenciam para  hierarquizar e classificar  diferenças  como vantajosas,  valorizadas  e  belas e outras diferenças nem tanto.  

Considerar o caráter fenotípico do racismo de modo unilateral induz a compreensão equivocada do papel do racismo na sociedade brasileira, na medida em que negligencia outro aspecto perverso do racismo: a pobreza. O Unilateralismo está no fato da indignação contra o  racismo ser mais  evidenciada por fatores biológicos e  étnicos / raciais do que por fator da injustiça social. O racismo não entra na avaliação da pobreza brasileira e vice-versa. A visão de mundo liberal concebe a pobreza como uma questão social, porém não é causa da alta concentração de renda e de interesses materiais.   Estimula a sociedade a ser avessa a qualquer política distributiva e admite o assistencialismo caridoso individual.  

Na sociedade liberal, a pobreza é naturalizada e as soluções são empurradas para o campo da luta das classes, refratário ao diálogo profícuo. As lideranças preocupadas com este aspecto - Hamilton Cardoso, Lélia Gonzalez, Tereza Santos e outras lideranças nacionais -  enfrentaram solitariamente o debate da raça e classe e das mudanças sociais necessárias para acabar com o racismo.

No outro lado da correlação de forças e na perspectiva histórica da desconstrução do racismo no Brasil é interessante compreender sua dinâmica e a fase atual. No período inicial da República o racismo era do tipo dissimulado, deixou de sê-lo e escancarou. 

Nem todos os/as  brasileiros/as ou organizações têm coragem de encarar o racismo como uma coisa feia que está espalhada em  todos os cantos. Cada organização ou ONGs se apropriou de parte do conceito e da luta. Há fragmentação. Hoje diante o recrudescimento do racismo, comenta e se assusta com o crescimento. Se apresenta na forma individual, mas é instrumentalizado e dinamizado  por interesses e vantagens de classes e grupos sociais camuflados nos indivíduos. Não se compreende que ele entrou no jogo dos interesses das classes sociais e é complexo. Requer múltiplas considerações.

Os agentes da mudança e da conservação 

As pessoas e as organizações aprenderam a reconhecer e denunciar o racismo em sua versão parcial ou total. São tipificadas como ativistas sociais, militantes ou percebidas como protagonistas da luta do combate ao racismo, patriarcado e capitalismo. Aspectos valorizados nas redes sociais e na sociedade da informação independente da atuação orgânica na luta. 

Na correlação das forças em disputa nas relações de raça, classe e gênero, o pensamento conservador e contrário ao combate ao racismo aproveitam as contradições, dos equívocos e da morosidade em enfrentar os desafios para desmerecer  e desacreditar a luta na sua totalidade. Atualmente impulsionam uma reação ideológica virulenta: o cancelamento da última etapa da luta, a violência, e a substitui pela mercantilização e consumismo do ativismo. No interior da sociedade liberal rotulam o racismo  e o correspondente ativismo por mercadoria e os jogam na prateleira do mercado consumidor à disposição de quem souber vender ou comprá-lo.  

Entre os aliados da luta antirracista, o protagonismo se fragmenta por vaidade, egoísmo ou interesse no sucesso do seu campo de atuação. Os ativistas autênticos ou denominados “roots” ou  raízes passam a ser “persona non grata”, geralmente, são cancelados e deixam de receber atenção nas relações pessoais da sociedade liberal.  O êxito da atuação de combate ao racismo para desconstruí-lo é proporcional ao demérito na sociedade liberal. 

Desafios e novas estratégias 

Em resumo e parafraseando a cronologia do racismo afirmamos a frase: “A história do racismo brasileiro é a história da luta de raça, gênero e classe”. Nesta nova etapa da luta há novos desafios.

Como enfrentar o racismo estrutural na nova etapa? Como superar a violência policial, a pobreza e a vulnerabilidade da população negra?  Os  lapsos do SUS na saúde da população negra? A não implementação da Lei 10639/ 2003 e 11.645/2008 na educação? Como superar as idas e vindas da lei de cotas no ensino superior se a cada vez que renasce é reapresentada  como um “bonde”? O  feminicídio contra a mulher negra agoniza diante da cumplicidade masculina? O  Legislativo Federal aprova o Estatuto da Igualdade Racial e o corpo ministeriável não o respeita? A intolerância religiosa é a  única mediação possível nas periferias das cidades? O que fazer para viver bem, em paz e feliz?

Novos desafios pressupõem novas estratégias

A solução ou encaminhamento dos desafios nos instiga a reflexão principal: acabar com o racismo pressupõe primeiro, abrir novos caminhos que enseje mudar o mundo a sua volta, e, segundo, inserir no novo mundo relações de igualdade e liberdade da  realidade de negras e negros? A reflexão principal estimula outras. Podemos fazer mais do que se tem feito para acabar com o racismo? Sim podemos ou 'Yes we can'. 

Os que acreditam e participam da resistência nas ruas, desde a histórica semana da consciência negra sob a liderança de Oliveira Silveira (RS), até as passeatas do novembro negro espalhadas em todo território nacional, entram em comunhão e dão visibilidade à perspectiva de acabar com o racismo e os retro-alimentadores. Participe.

No Brasil, em 2024, às vésperas do novembro negro, relembraremos o cinquentenário do vinte de novembro ressignificado no “Dia da consciência negra”. A data originalmente surgiu como uma simbologia contrária ao assassinato de Zumbi e Dandara e a destruição bélica da resistência no Quilombo dos Palmares. A data foi insistentemente apresentada como dia nacional de luta.    

O sinal amarelo da justiça está piscando clamando emergência e preste atenção...  querem negar a importância dos protestos contra o racismo nas ruas e substituir a participação política nas passeatas e atos do 20 de novembro por aceitação do eventos midiáticos ou  consumo das mercadorias blacks. Os eventos ou assemelhados denominados por ações criativas e empreendedoras viralizam nas redes sociais e dão o tom festivo ao dia 20 de novembro para cancelar a resistência negra na  rua e na historia. Atribuem a vítima do racismo a responsabilidade unilateral de superar as mazelas. Inculcam a ideia da  competição liberal como única via aonde “cada um é estimulado lutar por si próprio com seu mérito e fé contra todos” . Valorizam protagonistas de plantão alegando inclusão social e logo descartam. Estendem a cortina de fumaça para esconder o verdadeiro inimigo e desviar do caminho inovador dos valores capaz de dinamizar a desconstrução do racismo e correlatos.

Axé, Alafia, Amém, Salamaleico, Paz e Bem Viver a toda população.

*Gevanilda Santos é graduada em História e mestre em Sociologia Política pela PUC-SP, professora universitária, pesquisadora das relações sóciorraciais e  ativista da Soweto Organização Negra. 

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo