Coluna

PEC da limitação de poderes do STF e a democracia em risco: qual é o verdadeiro debate?

Imagem de perfil do Colunistaesd
O presidente do STF, Luís Roberto Barroso (à esquerda); e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (à direita), durante celebração dos 35 anos da Constituição Federal. - Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
O ponto central do debate é político, não jurídico

“A lição sabemos de cor
Só nos resta aprender”
(Beto Guedes)


No aniversário de 35 anos da Constituição Federal escrevi um artigo em que chamei atenção para a possibilidade de escalonamento da crise entre os poderes. Passado apenas um mês e meio, o Senado Federal aprovou na última quarta-feira (22) a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 8, de 2021, que limita decisões monocráticas no Supremo Tribunal Federal (STF). 

:: Para juristas, aprovação de PEC que limita ações do STF reforça disputa entre poderes ::

Existe divergência entre juristas sobre o mérito do texto, que segue agora para a Câmara dos Deputados, inclusive sobre a competência do Congresso para legislar sobre matéria regimental do STF. Mas essa, entendo, não é a questão principal. O ponto central do debate é político, não jurídico.

O processo ocorrido ao longo dos quatro anos em que Jair Bolsonaro esteve à frente da Presidência da República – instituindo um governo altamente militarizado, autoritário, com características claramente neofascistas, promovendo uma polarização política e social sem qualquer respeito pela institucionalidade, uma guerra cultural de valores, deturpando o conceito de liberdade de expressão, atacando os direitos fundamentais de grupos vulneráveis, incitando seus apoiadores contra os poderes constitucionais –  teve o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral -- responsável pela realização das eleições – como alvos privilegiados.

A tentativa de golpe ocorrida no dia 08 de janeiro de 2023 por bolsonaristas radicalizados inconformados com a derrota eleitoral, que invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes da República com o objetivo de provocar uma intervenção militar não teve sucesso. A democracia constitucional brasileira sobreviveu aos ataques, inclusive com a recomposição da rede de organizações e movimentos da sociedade civil, fortemente abalada desde o golpe de 2016 contra a presidenta Dilma Rousseff. 

Nessa conjuntura, o papel do Supremo Tribunal Federal foi central, assumindo uma postura de responsabilidade na promoção de defesa da democracia de forma combativa e militante, com uso das ferramentas institucionais e dentro do marco dos direitos fundamentais.

Também foi no contexto dos crescentes ataques à democracia brasileira após a eleição de Jair Bolsonaro que o Congresso Nacional aprovou em 2021 a Lei 14.197 (Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito), que revogou a antiga Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170, de 1983), inserindo na parte especial do Código Penal diversos tipos penais voltados à defesa do Estado Democrático de Direito e à defesa das instituições democráticas.

O país se encontrava diante da ausência de diálogo racional. A mobilização das regras penais e eleitorais voltadas a cercear ações antidemocráticas pelas autoridades com prerrogativas para tanto era essencial. A natureza defensiva da Constituição de 1988 não deixa espaço para que se conteste a legitimidade de criminalização de condutas antidemocráticas, com a necessária restrição de direitos.

A volta a uma certa “normalidade democrática” com a busca de responsabilização, condenação e punição dos responsáveis pelo 8 de janeiro e um novo governo de diálogo e respeito aos demais poderes não ocorre, contudo, sem tensões. E a atual cizânia entre o Senado Federal e o Supremo Tribunal Federal são provas de que há muito a se ajustar.

:: Congresso x STF: comissão do Senado aprova PEC que limita decisões monocráticas da Corte ::

O Poder Judiciário não é imune a críticas. Muitas decisões do STF na história das últimas décadas do país foram omissões e erros, e conduzem a um debate necessário sobre correções, lembrando que foi uma liminar de um ministro do STF que cassou a decisão da presidenta Dilma de nomeação do presidente Lula à Casa Civil em 2016. Uma decisão arbitrária e que certamente mudou o curso da história política do país. Além das idas e vindas sobre a prisão em segunda instância, que criou uma grande instabilidade e ebulição naquele momento histórico. 

A aprovação da PEC 8, de 2021, no entanto, não é eco desse amadurecimento. É, na verdade, uma busca de prova de força, em que o Poder Legislativo, insatisfeito com decisões do Tribunal sobre temas que considera de sua esfera, como o marco temporal para demarcação de Terras Indígenas e a limitação da implementação do piso nacional da enfermagem, por exemplo, manda recados de que pode tomar medidas que afetem as competências da Corte. 

O momento não poderia ser pior.

A democracia brasileira busca se fortalecer após os anos de ataques e a tentativa de golpe contra as instituições. Nesse contexto, o conflito entre Senado e Supremo Tribunal Federal, que culminou com a aprovação da PEC 8/2021, somente interessa àqueles que atacam a Corte pelo que tem de mais positivo: a proatividade com que exerceu sua função de guardião da Constituição Federal de 1988, na defesa das instituições do Estado Democrático de Direito. Não à toa todos os bolsonaristas comemoraram a aprovação da medida. Não à toa, aproveitando-se da morte na prisão de um empresário que participou dos atos golpistas, Jair Bolsonaro e seus asseclas convocam manifestação para o próximo domingo (26) em São Paulo.

Até mesmo os “bem-intencionados” com o texto da PEC deram o famoso “tiro no pé”, que pode acirrar ânimos, inflar as contendas e comprometer nossa ainda frágil estabilidade democrática, que exige cautela, paciência e aprendizado.

Trata-se, afinal, não da defesa do STF, mas da democracia. E pra isso cada passo importa. Aprender a lição que já sabemos, como disse o poeta.

* Tânia Maria de Oliveira é advogada, historiadora e pesquisadora. É membra do Grupo Candango de Criminologia da UnB (GCcrim/UnB) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Compõe a equipe do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos do Governo Federal.

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. 

Edição: Geisa Marques