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Prints e gravação revelam que funerárias da cidade de São Paulo mentem para enlutados para aumentar lucro

Agências tentam vender serviços opcionais como se fossem obrigatórios; sistema foi privatizado em março de 2023

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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“É ano eleitoral e o prefeito não quer expor o desastre que foi a privatização do serviço funerário em São Paulo", lamenta Celso Giannazi (PSOL), vereador da oposição ao prefeito Ricardo Nunes (MDB) - Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Empresas que administram os cemitérios municipais da cidade de São Paulo vêm utilizando práticas abusivas para aumentar o valor pago por famílias enlutadas para enterrar seus parentes. As equipes responsáveis por encaminhar velórios e enterros tentam, por meio de ameaças, empurrar serviços desnecessários.

O Brasil de Fato teve acesso a imagens de conversas de vendedores de agências funerárias da cidade que administram o serviço desde março de 2023. Elas revelam as táticas para aumentar o lucro das concessionárias, enganando clientes sobre leis e taxas inexistentes.

Em mensagem encaminhada para um grupo de vendas da Velar SP, por exemplo, um supervisor de agências afirma para a sua equipe que em "todos os casos de gratuidade, ou casos que a família não adquirir a tanatopraxia", é "obrigatório...incluir a higienização". "O item já está disponível no sistema! O valor é R$ 400", finaliza.


 

Tanatopraxia é um procedimento que envolve higienização, necromaquiagem e aplicação de produtos químicos para a conservação do corpo. Ela é recomendada – mas não obrigatória – em situações específicas, como em casos de morte violenta ou quando o velório acontece em mais de 72 horas após a morte. A higienização é um serviço mais simples e consiste na limpeza do corpo.

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Na prática, a ordem do supervisor de agências da Velar é para que os vendedores da empresa, quando atenderem pessoas pobres que buscam usufruir da gratuidade do serviço funerário ou um pacote menos custoso, consigam vender um dos dois serviços como obrigatórios.

Um trabalhador do serviço funerário, que falou com o Brasil de Fato sob anonimato e que será chamado apenas de João Silva, explica o método pregado pelo supervisor de agências da Velar. "Eles vão forçar a venda mesmo, existem metas e ninguém quer ser demitido. A ordem é empurrar a venda de higienização e tanatopraxia de todas as formas, dizendo que é obrigatório. Se a família não quiser comprar, os vendedores dirão que o velório será feito com o caixão fechado, porque é lei."

Em nota, a Velar, que administra os cemitérios da Freguesia do Ó, Itaquera, Penha, São Luiz, São Pedro e Crematório Vila Alpina, afirmou que abrirá uma "apuração interna para apurar a troca de mensagem" de seu supervisor de agências.

"Em todos os funerais contratados junto à Concessionária, sejam gratuitos ou pagos, os corpos passam por processo de limpeza e tamponamento, sem qualquer custo adicional. Serviços de higienização e tanatopraxia são complementares e de contratação não obrigatória, cabendo a opção à família. São indicados em casos nos quais o período entre o óbito e o funeral, ou as condições do corpo, recomendam", disse a Velar.

Em outro grupo de conversa por aplicativo da equipe de vendas da Consolare, outra empresa para quem a Prefeitura de São Paulo entregou a administração do serviço funerário, uma supervisora enviou uma mensagem motivacional à sua equipe com uma ordem direta: "Time, ATENÇÃO! Comitê de crise. Não podemos fazer nota menor que: R$ 4.500. Estamos com o ticket muito abaixo do normal." 

Ela finaliza lembrando a equipe da comissão recebida pelos vendedores. "Lembrando que com notas maiores, vcs tb recebem mais."

Para o vereador Celso Giannazi (PSOL), autor de um pedido de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a privatização dos cemitérios em São Paulo, que está parado na Câmara Municipal, os paulistanos "estão sofrendo para enterrar um parente."

"Se eu estou vendendo um carro, é normal que haja esse tipo de incentivo, que um gerente de vendas coloque metas. Se eu estou vendendo um sapato, isso pode acontecer. Mas não podemos agir assim na hora da morte, quando a pessoa está fragilizada. O serviço funerário deve ser uma política pública, o munícipe não é um cliente, é um contribuinte e deve ser respeitado assim. É um total absurdo o que estamos vendo", lamentou o vereador, que tentará fazer com que a CPI seja instalada em 2024.

É lei?

Com um gravador escondido, a reportagem do Brasil de Fato foi até o cemitério Quarta Parada, onde há uma agência da Consolare. O repórter se apresentou como um munícipe com parente próximo da morte e sem condições de pagar por um serviço funerário caro.

Durante o atendimento, uma vendedora informou que a compra do serviço de tanatopraxia, que ela apresentava como uma "limpeza do corpo" e custaria R$ 1.500, seria obrigatório por força de uma lei municipal.

De acordo ainda com a vendedora da Consolare, a não contratação do serviço implicaria em um velório com o caixão fechado, sem que a família pudesse ver o rosto ou o corpo do parente. Acompanhe o diálogo:

Reportagem: Eu preciso realmente pagar a higienização…
Vendedora da Consolare: Se quiser aberto (o caixão), sim.
Reportagem: É (obrigado) por lei?
Vendedora da Consolare: Isso, por conta da vigilância sanitária.
Reportagem: R$ 3.266 é o valor mínimo que eu vou conseguir?
Vendedora da Consolare: Com caixão aberto, é. Isso no cemitério da Vila Formosa.
Reportagem: E R$ 1.500 com o caixão fechado, é isso?
Vendedora da Consolare: Caixão lacrado, sem a preparação (tanatopraxia), a gente tira do hospital e leva direto para o cemitério da Vila Formosa.

A Consolare, que além do Quarta Parada, administra os cemitérios Consolação, Santana, Tremembé, Vila Formosa I e II e Vila Mariana, enviou uma nota ao Brasil de Fato reconhecendo que a tanatopraxia não é exigida por lei, como fez crer sua funcionária.

"Com relação à tanatopraxia, esse serviço não é obrigatório, mas é recomendado em situações em que o velório ocorre após um dia do falecimento, para melhor conservação do corpo. A Consolare reafirma seu compromisso em oferecer um atendimento humanizado, respeitoso e de qualidade às pessoas enlutadas", explicou a empresa.

A Prefeitura de São Paulo confirmou que "o serviço não é obrigatório, mas opcional dependendo da condição do corpo e do motivo do falecimento."

Ainda de acordo com a Prefeitura, "a Agência Reguladora de Serviços Públicos do Município de São Paulo (SP Regula) vai averiguar a denúncia feita pela reportagem e reforça que não compactua com os fatos narrados. A fiscalização dos serviços e atendimentos é feita periodicamente pelos fiscais e assessores da pasta nos 22 cemitérios públicos e agências das concessionárias da cidade."

"São cifrões"

Celso Giannazi lamentou que a administração dos cemitérios tenha sido entregue à iniciativa privada e confirmou que insistirá para que a comissão parlamentar para investigar o processo de privatização e os abusos das agências seja instalada ainda no primeiro semestre de 2024.

"É ano eleitoral e o prefeito não quer expor o desastre que foi a privatização do serviço funerário em São Paulo, mas vamos tentar fazer com que a CPI funcione. Com os poderes da CPI, vemos poder investigar melhor e tenho certeza que crimes maiores vão aparecer. A Câmara não pode se omitir, estamos diante de uma máfia", encerrou o vereador.

Em março de 2023, os 22 cemitérios públicos da cidade, além do crematório da Vila Alpina, na zona leste, foram repassados à administração de quatro empresas: Velar, Consolare, Grupo Cortel e Maya. A concessão vai durar 25 anos.

João Silva, trabalhador do serviço funerário, critica o serviço funerário de São Paulo após a privatização. "Antes, eram munícipes que estavam em luto e precisavam ser acolhidos. Agora, eles são cifrões, que entram em uma empresa que quer lucrar a qualquer custo. Eles tem metas e comissões. Quando eu trabalhava na Prefeitura, se uma pessoa entrasse e pedisse o serviço social ou um caixão de R$ 10 mil, não mudava nada para mim. Isso não mudava meu salário."

Edição: Thalita Pires