Opinião

Privatizações afetam a sociedade como um todo, especialmente as mulheres

Exercício de observar os reflexos perversos que têm as privatizações para a classe trabalhadora é desafio coletivo

Brasil de Fato | Belo Horizonte (MG) |
Privatizações e encarecimento dos serviços prejudicam mulheres que exercem o trabalho reprodutivo nas famílias - Caio Jardim

Para entendermos como as privatizações afetam a sociedade como um todo, especialmente as mulheres, é preciso compreendemos como opera o capitalismo e de que maneiras a acumulação capitalista aprofunda as desigualdades de classe, raça, etnia, gênero, sexo; sendo a privatização dos serviços públicos apenas um dos mecanismos para isso.

Em "O Capital", Karl Marx realiza uma análise da dinâmica histórica do capitalismo e destaca a força de trabalho como a principal fonte de valor. Marx concebe a força de trabalho como uma mercadoria única, dotada da capacidade intrínseca de criar valor. No entanto, o tempo de trabalho, fonte desse valor, frequentemente excede o necessário socialmente, resultando em uma produção excedente para o empregador, a chamada “mais-valia”. 

A apropriação dessa mais-valia, conforme argumentado por Marx, estabelece as condições para a acumulação e desenvolvimento do capitalismo. Surge, contudo, um questionamento não completamente esclarecido em "O Capital": se a força de trabalho produz valor, como essa força de trabalho é produzida?

As trabalhadoras e trabalhadores não se dirigem prontamente ao mercado para vender a única mercadoria que possuem, sua força de trabalho. E esse ponto é crucial: a produção e reprodução da força de trabalho ocorre nos lares, não nos mercados. Esse processo abrange não apenas aqueles que vendem sua força de trabalho, mas também inclui a educação sob a lógica disciplinar capitalista. Envolve, ainda, a reprodução biológica de novos trabalhadores, sem cair em uma suposta "biologização da reprodução social". 

A exploração da força de trabalho como mercadoria produz contradições a partir das pressões sofridas no exercício de tarefas em troca dos salários, desempenho de longas jornadas, condições precárias até baixos salários, enquanto o trabalho reprodutivo ameniza e revigora. Portanto, o trabalho doméstico não é uma simples junção de tarefas necessárias, mas funciona como restituição de bem-estar frente à exploração do mercado. 

Capitalismo patriarcal e racista

A reprodução social envolve famílias sob a responsabilidade das mulheres, e seu funcionamento passa pela oferta de bens e serviços de saúde e educação, além dos bens públicos essenciais, como a disponibilidade e tratamento de água. A partir do momento que esses serviços são privatizados, a qualidade e o acesso a eles ficam comprometidas. Da mesma forma, o tempo gasto pelas mulheres, responsabilizadas pela reprodução social, torna-se ainda maior e mais cansativo.

Essa maior carga de trabalho recai principalmente sobre as mulheres negras. Suas condições de vida são ameaçadas, tanto por falta de acesso a serviços quanto por ocuparem posições no mercado de trabalho majoritariamente ligadas à reprodução, como o trabalho doméstico ou empregos em serviços de saúde. 

Segundo os dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Brasil é o país com maior quantidade de trabalhadoras domésticas no mundo. São 6,1 milhões de empregos domésticos, dos quais, 92% são ocupados por mulheres. E essa ocupação segue sendo a opção para grande parte das mulheres pobres e com baixo nível de escolaridade. As mulheres negras representam 65% das mulheres empregadas domésticas no Brasil, ao passo que possuem menor índice de escolaridade e formalização no emprego que as mulheres brancas, segundo os dados do Instituto de Pesquisa e Estatística Aplicada (IPEA). 

Ou seja, o emprego doméstico no Brasil tem gênero, classe e raça bem definidos. 

Privatizações no mundo, no Brasil e em Minas Gerais – uma breve síntese

Enquanto no Brasil as privatizações têm sido a ordem das agendas econômicas, outros países têm feito um movimento contrário, promovendo a reestatização dos serviços públicos. 

Em Minas Gerais, a privatização da principal empresa pública de saneamento básico, a Copasa, foi proposta desde o primeiro governo de Romeu Zema (Novo) e é vista com muito interesse pelo setor privado. Segundo a revista Infomoney, em publicação realizada em 2023, trata-se de uma empresa grande interesse dos investidores, principalmente depois da aprovação do novo marco regulatório. Porém, segundo suas previsões, ainda deve levar algum tempo até que o governo consiga vender a empresa ao setor privado. Isso porque a Constituição mineira obriga a existência de um referendo popular sobre a privatização dessa empresa, além dos embates na Assembleia Legislativa que impedem a efetivação da venda. A publicação destaca como “exemplo de sucesso” a privatização da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo) que foi facilitada por manobras do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos).

A principal empresa mineira de serviço de distribuição de energia elétrica, a Cemig, também faz parte da agenda privatizadora do governo de Romeu Zema e enfrenta uma situação semelhante à da Copasa. A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 24/2023, enviada pelo governador à ALMG, busca permitir a privatização de empresas estatais sem a necessidade de referendo popular e com a aprovação de apenas metade dos parlamentares. A PEC propõe a exclusão dos parágrafos 15º e 17º do artigo 14 da Constituição do Estado de Minas Gerais. 

No entanto, o projeto de lei que aborda efetivamente a privatização da Cemig ainda não foi divulgado oficialmente, mesmo que haja uma grande circulação de propostas e articulações para isso, com diferentes modelos e nomes, mas todos com a mesma intenção: o lucro das empresas privadas.

A falta de energia elétrica nos lares, da mesma forma que a falta de acesso à água e tratamento de esgoto, é nitidamente prejudicial à realização do trabalho reprodutivo. Isso gera diretamente um aumento na carga de trabalho doméstico e de cuidados. A negação desse direito também cria obstáculos para a existência individual e coletiva, incluindo o acesso à educação, ao lazer, à vida social, às informações, impedindo, inclusive, a participação política das mulheres. 

Além disso, os trabalhadores do setor eletricitário, em sua grande maioria homens, passam a ter seus vínculos de trabalho cada vez mais precarizados nas empresas privatizadas, com a terceirização, a redução das garantias e direitos, e maiores índices de acidente de trabalho. Isso aumenta a pressão sobre a classe trabalhadora como um todo, que, por consequência, aumenta a pressão sobre as mulheres na sustentação da vida. Mais vulnerabilidade e tensões geram ainda mais violências.

Elementos para a defesa dos bens comuns

O exercício de observar e refletir os reflexos perversos que têm as privatizações para a classe trabalhadora como um todo, sobretudo em relação às mulheres, é um desafio coletivo. Além disso, é importante entender como funcionam os mecanismos de convencimento da população a favor das privatizações a partir do sucateamento dos serviços prestados.

Tendo como exemplo a Cemig, foi notório durante o governo Zema uma contínua terceirização dos serviços em postos locais da prestadora, seguido do fechamento do atendimento em pequenos municípios. A piora geral nos serviços é colocada como justificativa para a privatização, mesmo sendo uma empresa lucrativa. Por fim, temos como resultado das privatizações sempre algo em comum: o aumento das tarifas.

Durante nossa organização, as maneiras de permitir materialmente a participação das mulheres também deve ser bem observada. Trata-se de promover espaços em que existam cirandas educativas e cozinhas coletivas e em que as tarefas entendidas como individuais passem a ter um caráter coletivo. O sentido de coletivizar as atividades ligadas ao trabalho doméstico e de cuidados na sustentação da vida é fundamental para que o entendimento das necessidades humanas em sociedade guie as lutas para um sentido coletivo na preservação e construção dos bens comuns. A água, a energia, o solo, a educação, não são mercadorias e devem ser defendidos e disputados por nós. Mãos à obra!

* Mahara Jneesh é militante do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

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Fonte: BdF Minas Gerais

Edição: Leonardo Fernandes