ATL 20 anos

Educação escolar, agência de saúde do SUS e 'bem viver' são prioridades debatidas no terceiro dia do ATL

'Cada povo diz o que é e como é ter saúde mental e como é ter seu bem viver', destacou antropóloga social Nita Tuxá

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
A criação da Agência Brasileira de Apoio à Gestão do Sistema Único de Saúde (AGSUS) foi um dos temas de debate da tenda principal do ATL. - Foto: Isaka Hunikui/Coiab

Nesta quarta-feira (25), o terceiro dia do Acampamento Terra Livre, as atividades em plenária foram dedicadas ao debate de educação, saúde e gestão ambiental com protagonismo indígena.

Lideranças de diferentes povos ressaltaram a importância da luta coletiva e voltada para atender especificidades nessas áreas com apoio do poder público, mas denunciando tendências burocráticas e controladoras que podem retificar a violência do processo colonial.

No debate "Construindo Caminhos para uma Educação Escolar Indígena Efetiva: Desafios e Perspectivas", Rosilene Tuxá, representante do Fórum Nacional de Educação Escolar Indígena, ressaltou que uma das principais reivindicações dos povos indígenas é a criação de uma Secretaria dedicada à Educação Escolar Indígena dentro do Ministério da Educação.

“Essa conquista seria fundamental para coordenar políticas públicas destinadas aos povos indígenas, com sistema próprio, composto por equipes formadas por indígenas e especialistas, garantindo recursos financeiros específicos para sua implementação e funcionamento, além de valorização profissional e formação contínua dos envolvidos”, explicou.

De acordo com a professora Rita Gomes, do povo Potiguara no Ceará, a luta pela educação indígena se dá muito articulada com a luta pelos territórios. “Antigamente quem assumia nossas salas de aula não éramos nós, indígenas, eram os ‘brancos’. Nós lutamos para retomar a gestão escolar para que ela de fato tivesse a nossa cara e para que de fato fosse do nosso jeito indígena. Hoje grande parte do nosso aparato escolar é exercido por nós mesmos. Tivemos cursos de formação de professores e avançamos na política afirmativa para que possamos entrar nas universidades e dar retorno para nossos povos. Mas só isso não resolve o problema, pois muitos desses professores têm contratos temporários”.

Ela também acrescenta que apesar dos avanços, há ainda um problema grave em termos de estrutura. “Muitas dessas escolas não possuem um prédio próprio para funcionar, estão em condições precárias. Temos aproximadamente três mil escolas e cerca de 30% delas funcionam em locais improvisados. Temos um grande número de estudantes indígenas que se deslocam de suas aldeias para estudar fora. O que queremos é que cada estudante tenha a oportunidade de estudar na sua própria comunidade, o que é importantíssimo para a sustentabilidade de nossos territórios. Quando um aluno sai de sua comunidade não é somente ele, mas as famílias muitas vezes também são obrigadas a se deslocarem e acaba gerando um esvaziamento dos territórios”, observou.

Outros problemas relacionados à falta de reconhecimento das escolas indígenas, dos saberes tradicionais, material didático específico, participação social na elaboração de planos pedagógicos e orçamento foram apontados no debate. “Outro elemento central é que nós precisamos saber qual é o valor orçamentário destinado à educação escolar indígena. Precisamos saber quanto e onde está sendo investido”, destacou a professora Daniela Kaingang, do Rio Grande do Sul.

 

A professora Elenira Apurinã, do estado do Acre, ressalta que, para além de todas as dificuldades, existe também uma defasagem com relação à educação especial. “Dentro das aldeias Pupỹkary e Apurinã, há crianças, jovens e adultos com diversas deficiências, como surdez, deficiência física e intelectual. Nós temos mais de 200 indígenas com necessidades especiais. Apesar dos progressos e conquistas legislativas relacionadas à escola indígena, o suporte ao aluno indígena com deficiência é muito precário e os professores não recebem treinamento específico para atendê-las”.

Reivindicações na saúde

A situação da Saúde Indígena foi o tema principal abordado na Plenária "AGSUS: Entendendo os riscos para que não haja retrocessos", que tratou sobre a necessidade de um regularização da Agência Brasileira de Apoio à Gestão do Sistema Único de Saúde (AgSUS) para atender demandas específicas dos povos indígenas, além da valorização de Agentes Indígenas de Saúde (AIS) e Agentes Indígenas de Saneamento (AISAN).

A AgSUS é uma instituição na estrutura organizacional do Sistema Único de Saúde (SUS), criada para apoiar a execução de políticas formuladas pelo Ministério da Saúde, especialmente em regiões vulneráveis com vazios assistenciais na Atenção Primária e Saúde Indígena.

“Nós não somos contra a AGSUS, nós temos cuidado e ponderação quando há mudanças. A gente precisa discutir”, afirmou Luiz Penha Tukano, Conselheiro Nacional de Saúde e gerente de Projetos da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). “É por isso que recomendamos para a AGSUS, juntamente com a Sesai, que faça o que eles não fizeram quando criaram a lei: que é dialogar com os povos indígenas. Infelizmente, foi uma lei criada sem o nosso consentimento”, acrescentou. O mestre em Saúde Pública alertou ainda sobre as doenças que aumentam com o avanço do garimpo.

De acordo com o diretor da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), Weibe Tapeba, as condições sanitárias dos indígenas e dos órgãos destinados a esse cuidado estavam caóticas e em processo de destruição nos últimos anos, em particular no governo Bolsonaro.

“Por exemplo, além do corte de mais de 59% do orçamento nessa área, existia uma nota que impedia o atendimento a populações indígenas fora de área homologadas. O estado brasileiro tem déficit muito grande com territórios indígenas, mais de 50% das TIs não estão homologadas”, informou.

Sobre a situação do povo Yanomami, Tapeba destacou: “Era um projeto de genocídio em curso, sim! A maior terra indígena no Brasil foi invadida por mais de 20 mil garimpeiros. O que tirou a auto suficiência e capacidade produtiva do povo Yanomami é fruto disso, com alta quantidade de mercúrio nos rios”.

Bem Viver

Além da saúde física e relacionada a fatores ambientais, houve também um grande debate sobre saúde mental e como isso se relacionado ao conceito de “Bem Viver”, que significa uma filosofia e prática fundamentais para os povos indígenas, derivadas de uma visão ancestral que enfatiza a complementaridade, harmonia e reciprocidade entre os seres humanos, a natureza e todos os seres vivos. Isso contrasta com a ideia capitalista de competição pelo sucesso material e pelo consumo como medida de uma vida melhor.

A psicóloga e antropóloga social Nita Tuxá explica que “saúde mental para os nossos territórios tem suas variações em cada povo. De acordo com sua cultura, sua organização social e forma de vida, inclusive seus cantos e danças e relação com elementos de natureza. Significa estabelecer uma relação de conexão com esse sistema sagrado de acordo com o próprio território. Então cada povo diz o que é e como é ter saúde mental e como é ter seu Bem Viver”.


Plenária tratou sobre “Saúde mental e bem-viver dos povos indígenas” / Foto: Divulgação/Apib

Ela também coloca como isso afeta comunidades que são obrigadas a se deslocarem por fatores ambientais. “Ouço de muitos indígenas que o problema é que estamos transitando em dois mundos. Um mundo não-indígena e o mundo não-branco. Isso é verdade e estar transitando nesses dois mundos nos afeta provocando o adoecimentos de cunho social e psicológico”.

A assistente social, Osana Kaingang, de Santa Catarina, falou sobre o adoecimento dos povos indígenas. “Estamos comprometidos mentalmente pelos fatores que degradam nossos territórios e comunidades, afetando nossa possibilidade de Bem Viver. Estamos com nossos territórios totalmente comprometidos pela disseminação de venenos, contaminação de rios, desmatamento, garimpo, deslocamento. Isso está trazendo vários problemas para nossas comunidades indígenas, problemas com álcool, drogas, suicídios, homicídios. Violências também contra as mulheres, as crianças, idosos, lideranças indígenas”.

Apesar das adversidades, Osana ressaltou a importância da luta como forma de conquistar saúde e autonomia. “Um exemplo de Bem Viver, é a nossa experiência e interação aqui no acampamento. Estamos aqui num momento que traz toda essa culturalidade, diversidade e vejo nossas sabedorias de diferentes povos se complementando com rituais, debates, artesanatos. No meu território desenvolvemos um projeto com as medicinas tradicionais indígenas. Fizemos um diagnóstico de registrar práticas existentes, mapear todos esses sábios que temos na nossa terra como forma de nossos profissionais passarem pra frente. Proponho levar isso para outras comunidades para difundir nosso conhecimento coletivo em prol de nossa união".

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Fonte: BdF Distrito Federal

Edição: Márcia Silva