“Sinto fortemente que isso é um insulto à própria vida”. É assim que Hayao Miyazaki, animador, cineasta, roteirista e escritor, além de diretor e autor das principais obras do Studio Ghibli, descreveu a Inteligência Artificial (IA). A fala poderia ter sido feita na semana passada, mas, na verdade, ele fez a análise há 9 anos, em entrevista a uma rede de TV japonesa.
Mesmo mantendo o seu sentimento de aversão ao uso de IA, a obra de Miyazaki não foi poupada. Na última semana, após atualização do ChatGPT, o GPT-4, foi permitido que usuários usem texto, voz e “visão”, ou seja, capturas de tela, fotos, documentos ou gráficos, para a ferramenta reproduzir desenhos.
O estilo do artista foi reproduzido milhões de vezes – se não bilhões, uma vez que não há o número exato para qual a ferramenta foi usada com este fim – online por usuários por meio do gerador de imagens.

“Eu não consigo assistir a essa coisa e achá-la interessante. Quem cria essas coisas não têm ideia do que significa dor. Eu estou completamente enojado. Se você realmente quer fazer coisas assustadoras, pode ir em frente e fazer. Eu nunca desejaria incorporar essa tecnologia no meu trabalho”, completou Miyazaki na entrevista de quase uma década atrás.
A constatação não impediu que o diretor de filmes como A Viagem de Chihiro e Vidas ao Vento fosse, ele próprio, “ghiblizado” pela trend. Outro exemplo da contradição foi o uso do estilo por instituições como a Casa Branca, as forças israelenses e até mesmo a Polícia Militar de São Paulo, que possuem posições opostas à de Miyazaki. Enquanto essas promovem políticas anti-imigratórias, bélicas e de violência armada, o diretor defende amplamente pautas ambientais, antiguerra e antiarmamentistas em suas produções.



Imagens fabricadas por IA divulgadas nas redes sociais da Casa Branca, das Forças Armadas de Israel e da Polícia Militar de São Paulo – Reprodução
Esse mesmo tipo de apropriação aconteceu com Paula Villar, ao publicar uma charge criticando o CEO da OpenAI, Sam Altman. Na obra, ela fez um paralelo sobre o consumo anual de bilhões de litros de água por equipamentos gigantescos que mantêm as IAs e como esses data centers “bebem” da coleta de dados dos usuários de forma irrestrita e não regulamentada.
Os processadores da empresa são usados 24 horas por dia. Segundo uma pesquisa das universidades de Colorado Riverside e Texas Arlington, divulgada no final de março, a cada 20 a 50 perguntas, o ChatGPT pode consumir até 500 ml de água, quantidade que também é equivalente a cada imagem gerada.
Segundo o próprio OpenAI, em apenas 1 hora em que a nova ferramenta foi liberada, 1 milhão de novos usuários adentraram a plataforma e 3 milhões de imagens foram criadas em um dia. A pesquisa ainda aponta que, até 2027, o uso da IA deve consumir entre 4,2 e 6,6 bilhões de metros cúbicos de captação de água.
Ao fazer essa crítica, em contrapartida, a chargista acabou sendo alvo de apoiadores de IA para reprodução de estilos artísticos. De forma anônima, uma pessoa que utilizou o ChatGPT para reproduzir o estilo de Villar, se apropriando, inclusive, a forma de assinatura da artista, como se ela se posicionasse a favor do CEO.

“Quem não está habituado, pode facilmente confundir com uma arte minha pelas características. E, o pior de tudo, é que usaram a minha arroba @artevillar”, relatou ao Brasil de Fato. “Isso é muito grave, porque uma pessoa pode achar que fiz isso e eu nunca fiz, nunca faria uma coisa dessa. É um crime isso”, completou.
Por medo de retaliações, como aconteceu com Miyazaki e Villar, outra artista, que preferiu não se identificar, também apontou que, apesar de ser disseminada como tal, o uso de IA não é uma saída viável para a democratização da arte.
“A arte sempre foi democrática. É possível criar usando papel, caneta, tinta, argila, câmeras ou até mesmo lixo, mofo e materiais totalmente impensáveis enquanto artísticos. O que não é democrático é o acesso a ela, e não será a IA que irá possibilitar isto”, explicou.
Precarização dos trabalhadores artísticos digitais
Diante da necessidade de se organizarem por demandas trabalhistas da classe artística digital – que reúne ilustradores, fotógrafos, quadrinistas, modeladores 3D, entre outros –, trabalhadores e trabalhadoras da área criaram o movimento União Democrática dos Artistas Digitais (Unidad) em 2024, quando as IAs já davam não só sinais, mas resultados concretos da precarização da categoria.
Em outubro do ano passado, o TikTok, controlado pela chinesa Byte Dance, demitiu 500 funcionários devido a uma reestruturação interna nas operações de IA. Na prática, trabalhadores que moderavam os conteúdos da plataforma de vídeo foram trocados pelo uso da ferramenta, tornando, segundo a empresa, o processo mais “automatizado e eficiente”.
Há poucos dias, o magnata Bill Gates, dono da gigante Microsoft, afirmou que, em 10 anos, “os humanos não serão mais necessários para a maioria das coisas”, graças à IA. Em sua fala, ele considerou que isso causará um grande impacto no mercado de trabalho, principalmente em empregos de teor intelectual, que poderão ser substituídos por sistemas autônomos.
Em posicionamento enviado ao Brasil de Fato, a Unidad apontou como esses trabalhadores, além de precarizados, são usados pelas grandes empresas de tecnologia, conhecidas como big techs, para o treinamento das IAs. Ou seja, esse tipo de gerador de imagem, que se baseia na produção compartilhada online, é treinado aos custos da classe artística digital sem consentimento.
“É um contrassenso: nossa força de trabalho é utilizada pela tecnologia sem o nosso consentimento e sem a nossa remuneração, e, por outro lado, não recebemos qualquer tipo de contrapartida ou compensação do Poder Público pela perda massificada de oportunidades de mercado”, afirmou um representante do movimento.
Uso ético das IAs e regulamentação das big techs
No Brasil, ainda não existe regulamentação de IAs ou de big techs. O mais próximo disso é o projeto de lei (PL) 2.338/2023, em tramitação na Câmara dos Deputados, que prevê estipular o marco regulatório da ferramenta.
O texto prevê que, durante o treinamento de sistemas de IA, as big techs deverão informar quais conteúdos protegidos por direitos autorais foram utilizados, além de estipularem o direito dos autores de vetar o uso de suas obras por esses sistemas.
Apesar de representar um avanço, o projeto não contempla a garantia dos direitos trabalhistas da categoria afetada por essa ferramenta, segundo a Unidad. Isso porque, como destaca o movimento, durante a tramitação do projeto no Senado, trechos que previam essa proteção foram deliberadamente retirados por emendas parlamentares.
Porém, ainda existe a possibilidade de que essa proteção seja contemplada no projeto, caso parlamentares proponham emendas que prevejam direitos trabalhistas à categoria, que o movimento destaca como “de longe, a mais atacada pelo uso indevido da nova tecnologia”.
A deputada federal Erika Hilton (Psol-SP) compartilha da perspectiva. Na última semana, a parlamentar decidiu participar de outra forma da trend. Em meio às redes sociais inundadas com imagens geradas artificialmente no estilo Ghibli, ela publicou uma arte feita pelo Cartunista das Cavernas e escreveu na legenda que “em tempos de IA” é necessário valorizar o trabalho de “artistas reais”.
Em nota enviada ao Brasil de Fato, ela afirmou que “IAs não geram arte. O que as empresas de IA estão fazendo é uma mineração massiva e ilegal de dados, informações, imagens e fotografias da internet inteira sem o consentimento ou autorização de nenhum dos autores originais”.
Segundo Hilton, é preciso “uma legislação robusta e com mecanismos de fiscalização, aplicação e punição fortes. E não apenas sobre o uso, mas sobre como, e com que material, essas IAs são produzidas e treinadas”.
Por isso, ela avalia que o projeto que tramita na Câmara “é um excelente começo”, mas afirma que a ideia de “autorregulamentação” proposta pelo texto não dá certo, visto que esse procedimento, previsto em relação às redes sociais, resultou em um cenário em que “as punições previstas às big techs são brandas e os mecanismos de fiscalização e aplicação podem ser insuficientes”.
A Unidad reitera essa apropriação das grandes empresas de tecnologia, e que, além de tudo, os próprios usuários sofrem com a coleta de dados massiva. “O que temos hoje são plataformas de redes sociais ‘impondo’ o consentimento automático a todos os seus usuários, o que significa que, por padrão, as preferências dentro do aplicativo já vêm configuradas para o usuário manifestar sem ter ciência.”