O Território em Fluxo, série documental do Brasil de Fato sobre a Cracolândia em São Paulo, chega ao Youtube nesta quarta-feira (28), em contexto em que o governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) e a prefeitura de Ricardo Nunes (MDB) avançam a passos largos na retirada da população pobre e negra do centro do capital paulista.
A Favela do Moinho, última remanescente da região, está em processo de remoção. E a Cracolândia vive novo capítulo de repressão policial e pulverização que culminou no esvaziamento do fluxo, onde usuários se concentravam na rua dos Protestantes.
Com o intuito de abordar a profundidade do que faz a Cracolândia existir, bem como a potência e os caminhos pensados pelas pessoas que ali estão, o documentário está dividido em cinco episódios de cerca de 12 minutos cada. Os temas dos vídeos são fluxo, segurança pública, cuidado, cultura e moradia.
Este último — o teto — é descrito por usuários, ativistas e especialistas como uma das principais necessidades, se não a primeira, de boa parte das pessoas que frequentam a Cracolândia.
Assista a séria completa
Ao explicar que redução de danos “é possibilidade de troca, de cuidado, de construir vínculo”, que “passa pelo profissional entender que o desejo é do outro e então, a partir do desejo do outro, que um cuidado singular é proposto”, Michel Marques, do Centro de Convivência É de Lei, destaca que lidar com uso abusivo de drogas não passa apenas pela saúde.
“Existe uma ilusão de que a saúde resolve o problema das drogas no mundo. E isso não é verdade. A gente sabe que essa é uma demanda intersetorial. A gente precisa realmente assumir que não é só a saúde, que é assistência, educação, direito humano, cultura, lazer, esporte, geração de trabalho, moradia”, argumenta Marques, no documentário.
Não adianta, pontua o redutor de danos, que a pessoa apenas se interne, volte, se interne, volte. “Não vai ter um segmento deste cuidado porque a pessoa não tem comida, não tem trabalho, não tem moradia, então vai sempre retornar nesse ciclo”, salienta Michel Marques.
Na contracorrente da guerra às drogas, é essa transversalidade que marca a atuação de uma série de coletivos ativistas na região, acompanhados pelo documentário durante nove meses de apuração, com e 30 entrevistas. Jurandir Emídio, músico e usuário, faz parte do Pagode na Lata e do projeto Teto, Trampo e Tratamento (TTT).
“Eu não moro mais na rua. Mal ou bem eu tenho meu cantinho, minha televisão, minhas coisinhas. Coisa que eu não tinha quando morava na rua. Antigamente era chuva, sol, o povo roubava minha roupa”, conta Jurandir, no Território em Fluxo.
“Depois de 25 anos, eu encontrei esse apoio”, relata o pandeirista, se referindo ao grupo de samba Pagode na Lata. “Uma válvula de escape, que juro por mim mesmo, até me arrepia. Ninguém deu apoio para mim que nem o Pagode na Lata me deu. Eu não parei de usar, sou um usuário, mas diferente do que eu era antes”, sorri, balançando a cabeça.
“Quando tem um lugar de porta aberta para cuidar de você, você consegue se organizar. É muito nítido: as pessoas engordando, usando bem menos drogas, porque ficam mais tempo no hotel, porque tem uma TV, porque tem um lugar para descansar. Então a importância da moradia é fundamental para o cuidado em liberdade. É, na verdade, o principal fator”, avalia Marquinho Maia, sociólogo e também integrante do Pagode na Lata.
Na série, Marquinho conta como foi trabalhar na coordenação de um dos hotéis do programa De Braços Abertos, da gestão municipal de Fernando Haddad (PT) e, em seguida, o impacto do fechamento destes lugares de moradia para a implantação do programa Redenção, quando João Doria (então PSDB) assumiu a prefeitura de São Paulo.
Atualmente as pensões e hotéis existentes no centro não são ligados a políticas públicas e têm sido sistematicamente interditadas por operações policiais ou incursões da subprefeitura da Sé. As pessoas e seus pertences são jogados na rua. No último 20 de maio, a unidade administrativa da prefeitura lacrou estabelecimentos localizados nos quarteirões onde a gestão Tarcísio pretende transferir a sede do governo do Estado.
O Território em Fluxo mostra, ainda, a história de Sueli Floriano. Nascida na zona leste de São Paulo, chegou à Cracolândia aos nove anos de idade. Viveu na rua, passou pelo sistema prisional, até que em 2012 engravidou. Mãe, resolveu se juntar à luta da Ocupação Mauá, organizada pelo Movimento de Moradia na Luta por Justiça (MMLJ), Associação Sem Teto do Centro (ASTC) e o Movimento de Moradia da Região Central (MMRC).
“Ter seu cantinho, sua caminha, sua comida, é tudo na vida”, define Sueli. Hoje ela vive com os filhos em um dos apartamentos do prédio que, neste território em disputa pela especulação imobiliária, teima em ser a morada de pessoas pobres no coração da capital paulista.