O contexto da atual crise climática colocou a transição energética no centro do debate, sendo frequentemente apresentada como solução para a descarbonização. Na América Latina, contudo, esse processo apresenta contornos complexos e controversos, levantando questionamentos sobre soberania, justiça social e os próprios modelos de desenvolvimento.
A situação atual da transição energética (TE) na região foi tema de debate nesta segunda-feira (2), no painel “América Latina em disputa: os desafios da transição energética”. O evento teve como palestrantes os professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Leonardo Granato e Sofia Isabel Vizcarra Castillo, e a diretora nacional do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) Iara Reis. A atividade, realizada no auditório do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e Região (SindBancários), integrou a programação da Semana do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul.
“A partir de 2040, a janela de oportunidade fechou-se e as mudanças climáticas tornaram-se incontroláveis. Entre 2050 e 2080, assistimos gradualmente ao desaparecimento das florestas devoradas por incêndios cada vez mais monstruosos. Ao mesmo tempo, os rios secaram e a água potável tornou-se cada vez mais escassa”, diz trecho de um texto distópico lido pelo doutor em economia política internacional Leonardo Granato.

O professor abriu sua apresentação com uma parte do texto “23 de dezembro de 2084”, escrito por Michael Löwy e publicado na revista Terra Redonda. Para Granato o relato, feito por um jovem nascido em 2002 e refugiado na Groenlândia após o colapso climático, reflete a urgência da emergência ecológica atual.
Embora a transição energética seja apresentada como um processo de descarbonização e uso de fontes renováveis, para Granato ela tem servido principalmente à adaptação do sistema capitalista às exigências da própria crise. “É uma solução tecnocrática, apresentada como neutra, sem participação social. Trata-se de um projeto despolitizado, afastado de uma participação democrática”, afirmou.
O professor ressaltou que, longe de substituir as fontes fósseis, a atual transição energética as adiciona às novas matrizes. “Nunca houve, historicamente, uma verdadeira transição energética. Lenha, carvão e petróleo continuam sendo usados”, disse, citando o historiador francês Jean-Baptiste Fressoz. “O modelo atual promove uma adição de fontes energéticas para alimentar a lógica de destruição criativa do capitalismo que demanda cada vez mais energia.”
Do ponto de vista técnico lembrou que as tecnologias chamadas “limpas” também dependem de energia fóssil. “Os aparelhos para geração de energia renovável só podem ser produzidos com o calor de fontes fósseis.”
O discurso oficial
Na visão do governo federal tornou-se imperativo realizar alterações profundas na matriz energética global, nacional e regional, para substituir fontes baseadas em combustíveis fósseis, como petróleo e carvão, por alternativas mais sustentáveis e de baixo carbono, como solar, eólica, biomassa e outras tecnologias limpas. A afirmação consta no relatório “Brasil, Líder Mundial na Transição Energética”, do Ministério de Minas e Energia (MME).
“Pela primeira vez, o Brasil dispõe de uma Política Nacional de Transição Energética (PNTE), estabelecida em agosto de 2023, contendo diretrizes que norteiam a estratégia energética do país para o enfrentamento das mudanças climáticas”, expõe o material.
O documento também afirma que a TE pode contribuir para a redução das emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) e permitirá ao país cumprir os compromissos internacionais, como o Acordo de Paris. O relatório projeta benefícios econômicos, estimando investimentos de R$ 2 trilhões em 10 anos, a geração de 3 milhões de empregos qualificados e o fortalecimento da indústria nacional por meio do adensamento de cadeias produtivas.

A geopolítica da transição
Ao analisar o contexto mundial, o professor Granato observou que a transição energética é marcada pela disputa entre Estados Unidos e China, que buscam liderança não apenas em tecnologias verdes, mas também em digitalização e semicondutores. “Isso convive com o vigor das fontes fósseis”, disse, citando relatório da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) que projeta petróleo e gás ainda representando mais de 50% da matriz energética mundial em 2050.
Ele também mencionou o impacto das corridas armamentistas, que impulsionam o consumo de combustíveis fósseis. “Os setores militares estão entre os maiores emissores de gases de efeito estufa.”
No caso da América Latina, o professor pontuou que, mesmo sem representar 8% das emissões globais de GEE, os países da região sofrem pressão para a extração de recursos energéticos e superexploração da mão de obra. “Há uma perspectiva tecnocrática, corporativa e neocolonial por trás dessa transição”, criticou. “Mais uma vez, somos incluídos como zonas de sacrifício dentro do sistema global.”
Energia, dados e exclusão
Granato chamou atenção para o consumo crescente de eletricidade e água por centros de dados, inteligência artificial e processamento de linguagem complexa. “Tudo isso consome recursos. E quem vai arcar com isso?”, questionou.
Para ele, falta debate sobre o carbono que ainda será emitido. “O que faremos com ele? Essa pergunta sequer está sendo feita.” Além disso, criticou a ausência de transferência tecnológica para países periféricos. “O que temos é treinamento para instalação de equipamentos importados. Isso gera drenagem de divisas, somada ao peso da dívida externa e à austeridade fiscal.”
Granato concluiu sua fala trazendo duas manchetes. A primeira, da Folha de S. Paulo: “Pela primeira vez, o mundo precisa da América Latina”. A segunda, de Ana Toni, secretária nacional de Mudança do Clima: “A América Latina é parte da solução climática”. O professor fez um alerta: “Sofremos com uma crise da qual participamos pouco, e estamos sendo convocados a abrir nossos recursos em nome de uma solução que pode reforçar a desigualdade global.”

A transição como disputa política
A professora Sofia Isabel Vizcarra Castillo, doutora em sociologia, defendeu a centralidade do Estado no processo de transição energética. “Não se pode pensar uma transição energética sem o Estado. É muito difícil. (..) Transição energética não se faz sem confiança nas instituições.”
Ela observou que, apesar de o Brasil ter uma matriz elétrica relativamente limpa, baseada em hidrelétricas, isso também representa vulnerabilidade num cenário de mudanças climáticas. “Estamos dependendo de algo que depende do clima, que está mudando.”
Castillo destacou que a transição não se resume à troca de fontes energéticas. “A energia estrutura a forma como construímos a sociedade. A transição envolve mudanças de comportamento, de demanda e da forma como ocupamos os territórios.”
Ela diferenciou duas abordagens em disputa: a transição energética corporativa e a popular, apontando os impactos sociais de projetos tidos como sustentáveis. “Movimentos atingidos por barragens alertam que energias renováveis nem sempre são limpas do ponto de vista social.”
Segundo a professora, a energia deve ser entendida como um sistema sociotécnico. “Estamos falando de um modelo de desenvolvimento, de uma relação com a natureza e com o território.” Ela criticou soluções simplistas, como o incentivo ao carro elétrico em detrimento do transporte público. “Quando é carro elétrico, é inovação. Quando é transporte público de qualidade, é gasto. Não se discute isso como investimento climático.”
Hidrogênio verde e disputas locais
Desde 1975, o Brasil se debruça sobre o desenvolvimento do hidrogênio, com programas como o Programa Brasileiro de Sistemas de Células a Combustível (ProCaC) e o Programa Nacional de Hidrogênio (ProH2). O Plano Nacional de Energia 2050, por exemplo, aponta o hidrogênio como uma tecnologia disruptiva para a descarbonização. Em 2021, foi criado o Programa Nacional de Hidrogênio (PNH2).
Nesta segunda-feira (2), o governo do Rio Grande do Sul lançou um edital de R$ 102,4 milhões para atrair indústrias ligadas à cadeia do hidrogênio verde (H2V). De acordo com o governador, a estratégia foi pavimentada em cinco pilares: recursos naturais, ambiente de negócios, infraestrutura, capital humano e inovação. Segundo o Executivo estadual o planejamento para a descarbonização está alinhado ao Plano Rio Grande. Em 2024, o Ceará também lançou o Complexo Portuário do Pecém, voltado à produção de H2V.
O governador Eduardo Leite (PSD) afirmou que o RS está na vanguarda da economia verde: “Este investimento representa mais do que desenvolvimento tecnológico. É um passo decisivo para garantir um futuro de baixo carbono, com emprego, renda e oportunidades para todos. O fortalecimento das iniciativas que preveem a descarbonização e os incentivos às atividades de baixo carbono sempre estiveram no escopo do governo”.
Castillo, no entanto, lembrou que o hidrogênio não é uma fonte primária, mas uma forma de armazenar energia gerada por outras fontes – que podem ser fósseis ou renováveis. A adoção em larga escala, segundo ela, exigirá profundas mudanças na infraestrutura e aumento na extração de minérios. “Quais são os planos para essa conversão? Quem vai investir?”
A professora também criticou a condução do plano estadual de transição energética, terceirizado a uma consultoria com pouca participação social. “Precisamos discutir se isso representa de fato uma democracia energética.”
Ela alertou ainda para os impactos ambientais da digitalização. “Data centers consomem água e minérios estratégicos. E a certo ponto, no contexto, por exemplo, o capitalismo se aproveita de territórios que têm sido devastados pela crise climática.” Nesse sentido trouxe como referência o que está sendo feito em Eldorado do Sul (“cidade de data centers”, maior complexo de infraestrutura digital da América Latina, deverá ser erguida pela empresa Scala).

De acordo com reportagem do Repórter Brasil, o investimento inicial é de R$ 3 bilhões, podendo chegar a um total de R$ 500 bilhões, segundo dados divulgados pelo governo do estado. “Vamos reerguer uma economia devastada pela crise climática com uma atividade que tem sérios impactos ambientais, e onde a conta não está necessariamente pronta?”, questionou Castilho.
Para a professora, a transição energética envolve disputas entre um modelo corporativo, liderado pelo mercado e por grandes investimentos em infraestrutura verde, como os anunciados pelo governo do RS sobre hidrogênio verde, e um modelo popular, que questiona fontes, escalas e modos de vida relacionados ao uso da energia.
Em sua avaliação uma transição justa precisa incluir letramento energético, geração de empregos e recolocação profissional. “Como vamos participar das decisões se não entendemos o tema? A crise climática é também uma crise política.”
Ela concluiu defendendo uma agenda energética latino-americana baseada na solidariedade regional: “O Brasil não precisa começar do zero. O Chile, o Uruguai e outros países já acumulam experiências importantes”.
MAM denuncia retrocessos e convoca resistência
Encerrando o painel, a diretora nacional do MAM Iara Reis destacou a urgência de aproximar o debate científico das comunidades atingidas pela mineração. “Até quando vamos continuar falando só entre nós? A ciência precisa alcançar o povo.”
Segundo ela, a transição energética atual é, na verdade, uma transação que mantém a lógica colonial. “Continuamos extraindo lítio para carros elétricos, sem mudar o modelo de consumo nem enfrentar as estruturas de poder. Seguimos sendo colônia.”
Reis também denunciou a falta de transparência na Compensação Financeira pela Exploração Mineral (Cfem). “As próprias mineradoras informam quanto produzem e quanto devem pagar. Em Candiota os pesquisadores sequer conseguiram acessar os dados. A sociedade ainda subsidia o saque.”
A diretora alertou para o projeto de mineração de titânio em São José do Norte que ameaça a Lagoa dos Patos. “O autolicenciamento das empresas é muito preocupante. Já estão instalando placas de proibição por toda parte, sem diálogo com a população.”
Finalizando sua fala, a coordenadora convocou movimentos, universidades e comunidades a resistirem. “Precisamos de uma transição feminista, antirracista e anticapitalista. Que a América Latina desperte para a força que tem.” Ela também convidou para o primeiro Encontro Estadual do MAM no RS, de 19 a 22 de junho, no Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul (Cpers), em preparação para o encontro nacional em Fortaleza.
