Neste mês de julho, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completou 35 anos. Mas o Distrito Federal tem ido na contramão de efetivar políticas públicas para proteger crianças e adolescentes da capital federal. O DF tem registrado um cenário preocupante no que diz respeito à esse tipo de violência.
Dados recentes do 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2024) revelam um aumento expressivo no índice de denúncias, especialmente as de violência sexual e negligência, enquanto a execução orçamentária do Governo do Distrito Federal para a proteção desse público permanece irrisória.
Em 2024, as denúncias de violência contra crianças e adolescentes no DF atingiram 5.621 casos, representando um aumento de 40% em comparação com 2023. A maioria esmagadora dessas ocorrências (77%) acontece dentro de casa, e os agressores, em muitos casos, são membros da própria família, como pais, mães e padrastos.
A violência sexual contra menores também apresentou crescimento. Foram 477 denúncias em 2023 e um aumento de 10,9% em 2024, totalizando 528 casos registrados pelo Disque 100. Em 69% desses casos, o abusador era um familiar da vítima. A maioria das vítimas é do sexo feminino (aproximadamente 75%) e tem até 13 anos (cerca de 61%).
A negligência desponta como o tipo mais frequente de violação em 2024, liderando com 20,3% dos atendimentos dos conselhos tutelares, somando mais de 43 mil casos. Houve um crescimento alarmante de 140% no total de atendimentos em relação a 2023.
Dados também mostram que meninas, crianças menores de 12 anos, e negras são as mais afetadas pelas violências, evidenciando a interseccionalidade das vulnerabilidades.
Negligência orçamentária
Apesar do aumento preocupante da violência contra crianças e adolescentes no Distrito Federal, a execução do orçamento público destinado à promoção e defesa dos seus direitos continua muito aquém do necessário. Segundo o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em 2024, dos R$ 7,4 bilhões autorizados para políticas voltadas a esse público, mais de R$ 500 milhões não foram executados. Em 2023, o valor não executado ultrapassou R$ 1 bilhão.
No âmbito específico do Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente, a situação é ainda mais grave: somente 19,3% do orçamento autorizado foi aplicado em 2024, e apenas 4,5% em 2023. Um caso emblemático é o do único Centro de Atendimento Integrado a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual no DF, que teve apenas 2,3% dos R$ 276 mil previstos executados até julho de 2025.
Em artigo publicado no Brasil de Fato, a assessora política do Inesc, Thallita de Oliveira, critica duramente a postura do governo local: “O governo do Distrito Federal está longe de levar a sério a prioridade absoluta das crianças e adolescentes no financiamento público e no acesso às políticas previstas na Constituição Federal, principalmente quando se trata de meninas e meninos das periferias, em sua maioria negros”, escreveu.
Segundo Thallita, essa deficiência fica evidente em regiões como o Itapoã, onde mais de 33% da população tem até 18 anos e 70,3% se declara negra. Apesar disso, “a região não conta com um centro público de educação infantil, possui apenas uma escola de ensino médio, não dispõe de Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) e sofre com transporte público insuficiente”, denuncia Oliveira.
Para a presidenta da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança, Adolescente e Juventude da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Águas Claras, Andrea Lemos, o cenário do aumento da violência, aliado à falta de prioridade do governo local, é motivo de grande preocupação. “Essa disparidade alarmante revela uma desconexão grave entre a gravidade das violações e a efetividade do investimento público no DF”, afirma.
Além disso, a advogada aponta entraves como a burocracia excessiva, a ausência de inclusão clara no orçamento distrital e a falta de regulamentação específica pelo Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente do DF (CDCA), que poderia editar resoluções para normatizar a aplicação dos recursos, conforme as Resoluções 137 (parágrafo segundo) e 294 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). “Esses obstáculos precisam ser superados com urgência”, conclui.
Outras formas de violência
Para além das violências intrafamiliares e sexuais, outras formas de violação contra crianças e adolescentes no Distrito Federal também merecem atenção. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, em 2023 foram registrados 237 casos de abandono de incapaz no DF — um aumento de 29,5% em relação ao ano anterior. A taxa coloca o DF como a 7ª unidade da federação com maior incidência proporcional desses casos.
O abandono material teve crescimento ainda mais alarmante: de 266,7% em 2023 em comparação ao ano anterior. O DF também figura negativamente em outros indicadores: ocupa o 3º lugar nacional em taxa de exploração sexual por pornografia infantojuvenil e o 5º em casos de maus-tratos. A taxa de estupros contra crianças e adolescentes foi de 102 por mil habitantes da mesma faixa etária (0 a 17 anos).
Thallita de Oliveira, do Inesc, alerta ainda para a persistência do trabalho infantil e da população infantojuvenil em situação de rua no DF. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua/IBGE), em 2023 havia 18.422 crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil na capital. Já em 2025, ao menos 121 meninos e meninas viviam nas ruas do DF.
Estrutura insuficiente
A violência intrafamiliar e a negligência contra crianças e adolescentes são questões complexas que esbarram em desafios estruturais, tanto na responsabilização dos agressores quanto na garantia de proteção integral às vítimas. A presidenta da OAB-Águas Claras, Andrea Lemos, destaca a relevância de iniciativas como o Centro 18 de Maio e a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), que atuam com acolhimento e escuta especializada. No entanto, alerta que esses serviços são insuficientes diante da crescente demanda.
“A concentração dessas estruturas em poucas regiões administrativas — ou até mesmo em uma única unidade — impõe barreiras geográficas, dificultando o acesso de crianças e adolescentes que vivem em áreas periféricas. Isso perpetua o ciclo de violações”, afirma Lemos. Do ponto de vista do sistema de Justiça local, embora haja avanços importantes, a advogada enfatiza que a capacidade atual não dá conta da magnitude do problema. “A demanda por atendimento é gigantesca e supera a estrutura existente”, pontua.
Lemos defende a urgente ampliação do Centro 18 de Maio para outras regiões do Distrito Federal. Entre os principais entraves, ela aponta: o acesso limitado e a baixa capilaridade dos serviços, a morosidade do sistema judiciário, a falta de qualificação continuada dos profissionais da rede de proteção, a fragilidade na articulação interinstitucional e a ausência de acompanhamento psicossocial após a denúncia — o que compromete tanto a recuperação das vítimas quanto a superação dos traumas vividos.
Ao Brasil de Fato, a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP/DF) destacou que programas como o Segurança Integral, que envolvem a sociedade civil e diversos órgãos públicos, têm buscado “reduzir a criminalidade e a violência, aumentar a sensação de segurança e melhorar as condições sociais, promovendo os direitos humanos”.
Além disso, a SSP/DF ressalta que o programa de Prevenção Orientada à Violência Doméstica (Provid), desenvolvido pela Polícia Militar do DF, visa interromper o ciclo da violência doméstica por meio de ações preventivas. Conforme a nota, “o mais importante é que isso ocorra sem que as vítimas sejam revitimizadas. O tratamento diferenciado é garantido tanto a crianças e adolescentes quanto a outras vítimas ou testemunhas.”
Sociedade civil fragilizada
A integrante do Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes e organizadora da Campanha Nacional Faça Bonito, no DF, Karina Figueiredo, aponta para a fragilização da sociedade civil, o que dificulta o controle social e o enfrentamento das problemáticas.
“A sociedade civil está muito fragilizada aqui no DF, o próprio fórum dos direitos, o fórum DCA [Direitos da Criança e do Adolescente], não consegue mais se mobilizar, e isso acaba gerando uma dificuldade de contrapor, de questionar, de fazer um enfrentamento, o próprio controle social”, avalia. Segundo ela, a pressão social é fundamental para a garantia de direitos. “Sem uma sociedade civil fortalecida, que faça o enfrentamento, fica difícil”, afirma.
Andrea Lemos, da OAB-Águas Claras, também acredita que a falta de priorização de orçamento para o desenvolvimento de políticas públicas para crianças e adolescentes se deve a desarticulação dos movimentos sociais frente ao governo local. “A falta de projetos consistentes e a desarticulação na rede de proteção são consequências diretas dessa ineficiência orçamentária”, considera a advogada.
Caminhos para efetivar o ECA no DF
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completou 35 anos em julho, reafirmando a importância da proteção integral da infância e juventude no país. No entanto, a advogada Andrea Lemos destaca que, mesmo sendo a capital do Brasil, o Distrito Federal ainda falha em garantir a efetividade do ECA, sobretudo nas regiões mais vulneráveis.
Para ela, é preciso priorizar um orçamento eficaz, descentralizar políticas públicas, integrar a rede de proteção e valorizar os profissionais da linha de frente. Também defende o fortalecimento das famílias, o investimento em educação parental e sexual, o aprimoramento dos canais de denúncia e acolhimento, além de ações com recorte racial.
“Somente com um esforço coordenado e multifacetado, que envolva toda a sociedade e o Estado, será possível romper esse ciclo de violações e garantir que nossas crianças, especialmente as mais vulneráveis, possam crescer em segurança e ter seus direitos plenamente assegurados”, avalia Lemos.
Para isso, é necessário que “as políticas públicas sejam desenhadas com um recorte racial, reconhecendo as especificidades da violência que afeta crianças negras”, diz a advogada que conclui: “o Executivo, Legislativo e Judiciário precisam atuar em sintonia”.