A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) admitiu que todas as Terras Indígenas (TIs) “em fases anteriores à regularização” no Brasil estão com o processo impactado pelo marco temporal (Lei 14.701/23), em vigência desde setembro de 2023. Atualmente, são 304 territórios.
A posição do órgão, que é vinculado ao Ministério da Justiça, foi expressa em resposta a um pedido do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). Questionada sobre quais procedimentos de demarcação de terras foram afetados pela vigência da lei do marco temporal, a Funai declarou que “várias inovações procedimentais da Lei são de difícil cumprimento pela administração pública”.
Mesmo nos casos em que o marco temporal não exclui o direito indígena à regularização, o que tem ocorrido, informou o órgão do governo federal, “é um aumento da morosidade dos processos de demarcação de terras indígenas, com o aumento de etapas de trabalho que antes não existiam”.
O marco temporal é a tese ruralista segundo a qual só podem ser demarcadas terras ocupadas por povos originários até 5 de outubro de 1988, quando a Constituição foi promulgada. Em 21 de setembro de 2023, o STF considerou o marco temporal inconstitucional. Em afronta ao judiciário, naquele mesmo mês o Congresso Nacional aprovou a Lei 14.701/23, que o instituiu.
Desde então, o ministro Gilmar Mendes tem nas mãos a relatoria de ações opostas para definir a validade ou não do marco temporal. Em vez de respaldar decisão já tomada pela Corte, Mendes criou uma “câmara de conciliação” para rediscutir o tema. O grupo, do qual o movimento indígena se retirou em protesto, encerrou os trabalhos de forma pouco conclusiva no último 23 de junho. Não se sabe, ainda, quais os próximos passos que serão tomados pelo STF.
Enquanto isso, nesta segunda-feira (28) o Cimi lançou o Relatório Violências contra Povos Indígenas no Brasil com dados referentes a 2024, o primeiro ano do marco temporal em vigor. De acordo com o documento, a vigência da lei é o cerne da escalada da violência e da demora na demarcação de terras no país.
Lei pode “inviabilizar” GT da Funai
Uma das novas etapas para a demarcação impostas pela lei é a identificação prévia de todos os interessados na área. Este levantamento deve vir antes do próprio trabalho de campo realizado pelo Grupo de Trabalho (GT) da Funai, que é justamente o que delimita a área em questão. Trata-se de um dos pontos destacados pela Coordenação Geral de identificação e Delimitação da Funai como um obstáculo que torna o processo “ainda mais moroso do que já é”.
“Em muitos locais da região norte e nordeste, as informações fundiárias disponíveis no governo federal ainda são muito escassas, de modo que não é possível a identificação prévia de todos os interessados, mesmo que se tivesse um limite preliminar da terra indígena”, argumenta a Funai.
“Outro aspecto do dispositivo que merece atenção é o que permite a indicação de peritos auxiliares, podendo dar o entendimento de que estes profissionais possam acompanhar os trabalhos do grupo técnico designado para realizar os estudos multidisciplinares necessários à identificação e delimitação de terras indígenas”, problematiza o órgão federal indigenista.
A menção vaga à possibilidade de um “perito auxiliar” acompanhar os trabalhos abre brecha para interpretação de que esse profissional pode ser indicado por qualquer parte interessada na área. Um fazendeiro ou grileiro, por exemplo. Isso implicaria, diz a Funai, na “inviabilidade da realização do trabalho do GT”.
O Grupo de Trabalho é coordenado por um antropólogo, responsável por “garantir a melhor metodologia de diálogo intercultural com aquele povo indígena, assim como traduzir o que é dito pelos indígenas e o que é observado ao longo do trabalho de campo e da pesquisa documental para uma descrição sobre a história e o modo de vida daquele povo”. Assim, para observar, ouvir e escrever, é preciso que se estabeleça “uma relação de confiança com a comunidade com a qual se trabalha”, explicita a Funai.
“Esta dinâmica estaria extremamente prejudicada ao transformar o trabalho de campo do GT em uma espécie de ‘acareação’ ou ‘perícia judicial’”, alerta a Funai, lembrando que comumente trata-se de áreas de conflito, “de modo que o medo de retaliações pessoais poderá prejudicar extremamente a observação e o ouvir dos indígenas”.
Além disso, a lei abre a possibilidade de indenização de proprietários rurais pela terra nua. Até recentemente, indenizações eram calculadas levando em conta as chamadas melhorias feitas de boa-fé, como por exemplo o investimento feito em estrutura e construções dentro da área. A terra nua inclui o valor do próprio imóvel, segundo o Imposto Territorial Rural (ITR).
Segundo a Funai, isso “irá aumentar essa demanda de trabalho em grande escala, pela necessidade da análise de cadeias dominiais dos imóveis. Além disso, não está claro também qual será a fonte de recursos para pagar tais indenizações, pois atualmente o orçamento da Funai é insuficiente para o pagamento das benfeitorias e desse modo está muito aquém da demanda para indenização da terra nua”.
Por fim, o órgão federal responsável pela proteção dos povos originários no Brasil pontua, ainda, que atua com “falta de pessoal” e de “orçamento”.