O Brasil, autor do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e da Constituição Cidadã – admirada mundialmente por seus princípios de igualdade e liberdade –, paradoxalmente, ainda enfrenta o desafio de deixar de gerar disciminação e desigualdade, incluindo aquelas que afetam nossas crianças e adolescentes. E assim demonstra que apesar de uma legislação robusta, vivemos uma crise de efetividade.
Antes de 1988, as crianças estavam sob o “código de menores”, que as tratava como propriedade, não como indivíduos. Apesar de revogada, a coisificação da criança e do adolescente persiste quando falhamos em reconhecê-los enquanto sujeitos de direitos integrais. E para isso não há estatuto ou lei que, por si só, regule o que acontece com as crianças e adolescentes as vinte e quatro horas de cada dia.
:: Quer receber notícias do Brasil de Fato RJ no seu WhatsApp? ::
A proteção integral da criança em si já é um desafio complexo que exige a corresponsabilidade de todos (governo, famílias e sociedade), e hoje, em que já se é possível estar em todos os lugares com milhões de pessoas sem sair de dentro de casa, temos de nos apoiar ainda mais na filosofia africana de que é preciso uma aldeia. E essa aldeia, em um país com Constituição e legislação, é também a rede de políticas públicas. E aí chegamos em outra parte desse desafio, que não é a de apenas alterar uma cultura, mas também o de competir com os interesses econômicos de negócios que se baseiam não na tecnologia mas no mercado da influência.
Proteger crianças e adolescentes nas ruas e nas redes custa um mercado que gigantes não querem perder e o dinheiro que ninguém julga prioritário investir. A resistência das big techs à regulamentação das redes sociais, por exemplo, decorre do cálculo de que é mais barato fazer lobby do que proteger. É uma desonestidade intelectual e institucional ignorar que o investimento na proteção da primeira infância tem um retorno econômico comprovado – como demonstrou o Nobel James Heckman.
E não se engane, quando falamos de redes sociais, a vulnerabilidade transcende a classe social, raça ou território. Mesmo crianças de famílias abastadas podem estar vulneráveis à falta de vigilância e assistência digital adequada. Nenhuma criança tem maturidade neurológica para ter acesso irrestrito a redes sociais. O que chamamos de “brain rot” (cérebro apodrecido) é o resultado do acesso desenfreado a conteúdos hiperestimulantes e vazios de conhecimento. Isso afeta a plasticidade do cérebro e o seu desenvolvimento como um todo.
Digitalizar o processo de aprendizado é fundamental para o progresso, mas a inclusão digital não significa direito a um celular sem limites. Pelo contrário, exige a garantia de um acesso protegido. A proibição de celulares em escolas no Rio de Janeiro e outros estados é um avanço significativo, mas no ambiente privado, precisamos de um processo educativo e de fortalecimento das famílias, sem sobrecarregá-las individualmente. É uma corresponsabilidade que deve ser do poder público e da sociedade sobre oferecer suporte, especialmente para famílias vulneráveis que usam o celular até mesmo como “rede de apoio” para conseguir desenvolver outras atividades essenciais.
A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), vinculada ao Ministério da Justiça, deve atuar para remover publicações indevidas com base nos direitos estabelecidos no ECA. As big techs devem se responsabilizar por monitorar e retirar conteúdos relacionados a racismo, exploração sexual infantil, incitação ao suicídio e ataques ao Estado Democrático de Direito. Isso não é censura; é garantir cidadania e proteção para todos.
Em um mundo onde a manipulação de imagens e narrativas é constante, e ataques nas redes acontecem em todos os lugares à todo tempo, não podemos nos furtar ao debate e à ação. A proteção da criança na era digital exige um pacto coletivo, informação segura e a priorização da vida sobre o poder econômico. A aldeia deve ser também digital. Isso é o que a proteção integral exige.
*Thais Ferreira é vereadora do Rio de Janeiro (Psol-RJ).
*Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.