A agricultura brasileira, marcada por sua potência produtiva e capacidade tecnológica, enfrenta um paradoxo: ao mesmo tempo em que abastece o mundo, carrega consigo sinais evidentes de alienação e destrutividade. Alienação, neste contexto, não é apenas o afastamento do agricultor em relação ao solo que cultiva ou à água que o sustenta, mas também o distanciamento profundo da vida como valor.
O campo passa a ser gerido como linha de montagem, em que o solo é reduzido a mero substrato, as plantas a máquinas de conversão de insumos, a biodiversidade a obstáculo, e o trabalhador a peça de engrenagem. Esse desenraizamento, fruto de uma lógica consumista e mecanizada, abre espaço para a destrutividade: erosão, contaminação, perda de biodiversidade, conflitos sociais e adoecimento coletivo.
A destrutividade, quando observada nas paisagens agrícolas, manifesta-se em solos que perdem sua estrutura e matéria orgânica, em encostas que se desfazem com a enxurrada, em rios que carregam a fertilidade perdida, em polinizadores desaparecendo e em comunidades humanas submetidas a pressões de mercado que ignoram seus vínculos com a terra.
É o resultado de um modelo que privilegia o imediato, que corrige depois em vez de prevenir antes, que mede o sucesso apenas por colheitas recordes sem contabilizar os custos invisíveis. Por trás desse processo estão causas estruturais: políticas de crédito e seguro que premiam volume e não conservação, uma extensão rural insuficiente, a descontinuidade de programas de pesquisa, a baixa literacia ecológica na formação técnica e a regulação tolerante com externalidades negativas.
No entanto, a humanidade pode não estar condenada a este caminho. Sempre existe a possibilidade da transformação, de escolher a vida em vez da destruição. Essa possibilidade nasce de uma ética biofílica que reconhece a interdependência de todos os elementos do agroecossistema.
No Brasil, esse horizonte se concretiza na figura do agricultor biofílico, aquele que se reconecta com o solo vivo, com a água que infiltra, com a biodiversidade que protege e com a comunidade que compartilha. É uma postura que desloca o eixo da produção: da exaustão para o cuidado, da dependência para a autonomia, da competição para a cooperação.
A transformação não se dá por declarações de intenções, mas por práticas enraizadas no cotidiano da fazenda. Ela começa quando se compreende que a fertilidade verdadeira não é produto de um saco de insumo, mas resultado da estrutura física, química e biológica construída no tempo; quando se entende que a água infiltrada é o seguro mais barato contra a instabilidade climática; quando se reconhece que a diversidade é a base funcional que equilibra pragas e garante resiliência.
A transição ganha corpo em eixos operacionais: semeadura direta de alta qualidade, cobertura permanente, manejo da água em nível, uso inteligente de bioinsumos, valorização da mão de obra e arborização das paisagens agrícolas.
Essa virada só se sustenta se apoiada em instrumentos coletivos: educação e extensão transformadoras que despertem a consciência crítica; políticas públicas estáveis que deem continuidade às experiências bem-sucedidas; mercados institucionais que valorizem alimentos produzidos com cuidado ecológico; crédito e seguros que premiem práticas conservacionistas; e uma cultura de monitoramento que traduza em números os ganhos de infiltração, cobertura, agregação do solo, diversidade e segurança do trabalho. A mudança exige também inovação frugal, com soluções de baixo custo e grande impacto, desde rolo-facas comunitários até viveiros coletivos de espécies nativas.
Se, em um primeiro momento, a transformação parece desafio desmedido, na prática ela se inicia com gestos simples: abrir uma trincheira para observar o perfil do solo, mapear pontos de enxurrada, proteger uma nascente, medir a infiltração com recursos acessíveis. Esses atos, quando somados, constroem a consciência de que a produtividade estável depende de paisagens funcionais e de um solo vivo.
No médio prazo, consolidam-se sistemas de plantio direto em nível, rotações diversificadas, corredores ecológicos e redes de cooperação entre propriedades. E, no longo prazo, emergem fazendas que elevam sua matéria orgânica, reduzem perdas de solo, fecham ciclos de nutrientes e devolvem serviços ecossistêmicos às bacias hidrográficas.
O futuro da agricultura brasileira depende dessa escolha entre destruição e vida. Alienação e destrutividade não são destino irrevogável, mas sintomas de um modelo que já mostra sinais de esgotamento. A possibilidade de transformação é real e pragmática: colocar a vida no centro do manejo, não por romantismo, mas porque é o que funciona melhor no tempo longo. Escolher a vida, neste caso, é mais do que preservar o ambiente: é garantir que a agricultura cumpra sua verdadeira vocação — alimentar, proteger e perpetuar a vida.
*Afonso Peche Filho é engenheiro agrônomo, doutor em ciências ambientais e pesquisador científico do Instituto Agronômico de Campinas (IAC).
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.