No estado do Rio de Janeiro, 139 mulheres foram agredidas por dia em 2025. Os dados da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro (SES-RJ) mostram uma leve redução em relação aos 148 casos diários de 2024. E as mais de 304 mil medidas protetivas concedidas demonstram um avanço inegável, fruto da ampliação do acesso à Justiça. Apesar dos avanços em leis e políticas públicas, a realidade nos mostra que estamos em meio a uma crise silenciosa, exposta por contradições históricas e sistêmicas que se recusam a desaparecer.
A violência contra a mulher não é um fenômeno natural ou recente. Para contextualizar essas permanências históricas, a socióloga Heleieth Saffioti, referência nos estudos de gênero no Brasil, lembra que, já no período escravista, a mulher escravizada tinha uma função produtiva e sexual. Africanas e indígenas foram submetidas a relações forçadas, uma prática que se naturalizou no Brasil e lançou as bases do que hoje chamamos de “cultura do estupro”. Esse traço histórico de controle sobre os corpos e a sexualidade feminina permanece como um dos elementos estruturantes da violência contra mulher.
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Nesse contexto, o Agosto Lilás, mês dedicado ao enfrentamento da violência contra a mulher, assume um papel fundamental na defesa e na ampliação de políticas públicas que combatam as violências de gênero. A Lei Maria da Penha tem quase 19 anos. É internacionalmente reconhecida e tem papel fundamental nesse enfrentamento, mas ainda tem limites como a falta de aplicação igualitária – sobretudo para mulheres negras, rurais e LGBTQIA+.
Em fevereiro de 2025, o STF decidiu que a lei vale também para relacionamentos entre mulheres, incluindo casais homoafetivos e pessoas trans. Uma conquista jurídica, mas ainda distante da realidade cotidiana de muitas. Ao olhar para as zonas rurais, existe um sério problema de subnotificação de casos, em parte porque os boletins de ocorrência muitas vezes não registram origem rural, o que dificulta as ações de políticas públicas direcionadas a essas mulheres. É preciso fazer com que a lei chegue com força em territórios negados às políticas – e tem que valer para todas as famílias.
Com o tema “Não deixe chegar ao fim da linha. Ligue 180”, o Agosto Lilás desse ano reforçou a importância da Lei Maria da Penha como instrumento de proteção e transformação de vidas e a importância da denúncia como passo fundamental nesse processo. No ano passado, os atendimentos através deste canal cresceram, chegando a mais de 750 mil registros. É um avanço, mas precisamos transformar acesso em proteção concreta.
A violência de gênero não é apenas física. Neste ano, o Agosto Lilás reforçou a luta contra violências psicológica, política, institucional, patrimonial, digital e outras.
Afinal, o feminicídio não é um evento isolado, é a falência da proteção estatal e da nossa cultura patriarcal.
Estamos diante de uma contradição perigosa: na medida em que elegemos representantes ou que o debate feminista avança na sociedade, intensifica-se a onda de violência sexista, a violência política de gênero e a criminalização das mulheres, somada à exploração e à invisibilidade do trabalho feminino. Apesar dos avanços do movimento feminista nas últimas décadas, os índices de violência física, sexual e psicológica seguem alarmantes.
Como mulheres que constroem uma vida política a partir dos movimentos sociais de base, levamos para o campo institucional o acúmulo de conhecimentos sobre os caminhos do combate à violência, da prevenção, do enfrentamento, da assistência e da garantia de direitos.
No exercício do nosso compromisso, reafirmamos que é papel dos mandatos – municipal e estadual – construir políticas eficazes de prevenção e enfrentamento da violência contra a mulher, bem como cobrar do Estado a garantia de direitos. No âmbito estadual, já apresentamos projeto de lei para ampliar as unidades móveis de acolhimento em áreas rurais e periferias. No município, seguimos igualmente comprometidas em fortalecer políticas de prevenção, como a educação antissexista nas escolas, programas de acolhimento e suporte às vítimas, além de iniciativas que garantam autonomia financeira às mulheres, rompendo o ciclo de dependência que aprisiona tantas.
O combate à violência contra a mulher é um desafio que diz respeito a toda a sociedade, pois seus impactos se refletem na vida, na economia e na própria estrutura social do país. Por isso, a luta das mulheres é também a luta por um país soberano, já que historicamente são elas que sustentam a vida e a economia. Defender nossos bens comuns, nossos territórios e nossos direitos sexuais e reprodutivos é essencial para garantir que mulheres de todas as idades, raças e classes possam viver livres da violência, com dignidade e autonomia.
A violência contra a mulher não é o mundo que a gente quer. E essa é uma luta que não se encerra ao final de agosto.
*Marina do MST é deputada estadual do Rio de Janeiro (PT).
**Maíra do MST é vereadora do Rio de Janeiro (PT).
***Este é um artigo de opinião e não representa necessariamente a linha editorial do Brasil do Fato.