O suposto ataque a uma lancha divulgado pela Casa Branca foi o único resultado de 21 dias de operação militar estadunidense no sul do Caribe. Os EUA criaram uma expectativa em torno do deslocamento de 4.200 militares em 7 navios para a região, mas divulgaram um vídeo cuja veracidade foi questionada pelo governo venezuelano.
O chefe do programa de mestrado de História Militar da Universidade Militar Bolivariana de Venezuela, Henry Navas Nieves, entende que a construção narrativa pelo governo dos EUA foi “mal feita” e que o objetivo dos EUA é justificar uma escalada da tensão na região.
“Há uma construção de um fato questionável feito para justificar essa escalada dentro da Venezuela. O governo dos EUA começou há algumas semanas nesse conjunto de elementos para criminalizar o governo venezuelano. Mas agora eles somam o Trem de Aragua. Então estamos vendo uma enorme construção de um falso dispositivo que, nesse caso, foi muito mal feito” disse ao Brasil de Fato.
Com a desculpa de combater o tráfico de drogas na região, os Estados Unidos ameaçaram realizar ataques diretos contra a Venezuela com o envio de navios militares para o sul do Caribe. Mesmo sem anunciar uma operação específica no país, a Casa Branca vinculou a ação à Venezuela e disse que o governo de Nicolás Maduro chefia o tráfico na região.
O vídeo divulgado nesta semana foi acompanhado por declarações do governo estadunidense afirmando que 11 pessoas morreram no ataque, que a lancha vinha da Venezuela e carregava “muita droga”. A resposta veio pelo ministro das Comunicações venezuelano, Freddy Ñáñez. Ele afirmou que o vídeo foi feito com Inteligência Artificial e que não há provas do ataque contra a embarcação venezuelana.
Também sem demonstrar qualquer comprovação, Trump vinculou o carregamento com o grupo criminoso venezuelano Trem de Aragua.
Guerra psicológica
A temperatura morna da operação deixa alguns sinais claros da Casa Branca na gestão da política interna e externa. O primeiro deles é a guerra psicológica que o país tenta promover na Venezuela. A rivalidade com o governo Maduro já tinha se expressado no primeiro mandato com o aumento das sanções contra Caracas, mas agora a pressão aumentou e Washington tem estimulado uma série de ameaças militares.
Primeiro aumentou a recompensa pela captura de Maduro para US$ 50 milhões. Depois, anunciou o deslocamento dos navios militares e, por último, disse que iria com “força total” contra a Venezuela.
Ao Brasil de Fato, analistas afirmam que tudo isso busca aumentar a pressão sobre o país latino e gerar ansiedade e medo na população. Por enquanto, esse tem sido o único resultado conquistado pelos estadunidenses. O governo chavista tentou passar tranquilidade nos discursos oficiais nos primeiros dias, mas, com o aumento da tensão, o próprio presidente fez um discurso para falar sobre as ameaças.
Maduro chegou a dizer que há 1.200 misseis “apontados para a cabeça dos venezuelanos” e que um avanço das tropas estadunidenses elevaria a tensão para um “conflito armado”. Isso reverberou ao longo da semana e acendeu o sinal de alerta para a população. Ainda que o ceticismo sobre um intercurso militar estadunidense predomine, muitos venezuelanos já começaram a questionar os limites dos EUA nessa operação.
Militares ouvidos pelo Brasil de Fato entendem que a movimentação não só acendeu a luz vermelha nas Forças Armadas venezuelanas, mas também teve que fazer com que o comando militar preparasse uma série de iniciativas na defesa territorial. A leitura de setores do militarismo é de que o vídeo divulgado foi um passo “ruim” dos EUA por provocar uma “agressão simulada”.
Esse setor entende que, mesmo com essa ameaça para a região, Trump ainda tentou manter a linha de que não está desrespeitando a soberania de nenhum país por reforçar que o barco foi abatido em águas internacionais. A reportagem ouviu dos militares que é “muito difícil” calcular os passos seguintes dos EUA, mas que há um plano de defesa “bem consolidado”.
A guerra psicológica foi promovida pelos EUA em diferentes frentes. Nieves entende que um dos principais responsáveis por inflar a tensão em torno de um conflito militar foram as agências de notícias internacionais, que divulgaram informações “difusas” de fontes da Casa Branca.
“É importante destacar a participação de grandes meios de comunicação internacional, que agora tem a Reuters como ponta de lança para inflar algumas situações. Eles deram diversas datas para a chega dos navios que não se cumpriram. O governo venezuelano respondeu de maneira apropriada quando sinalizou que Trump fica em uma situação complicada”, afirmou.
Ele faz referência a uma disputa interna no governo dos EUA que está sendo explorada pelo governo venezuelano. Maduro fez questão de separar Trump do secretário de Estado, Marco Rubio. A estratégia de Caracas é mostrar que há um diálogo com a Casa Branca, mas que um setor do governo estadunidense tenta prejudicar a comunicação entre os países.
Diálogo aberto
O governo venezuelano entende que há dois canais de comunicação bem estabelecidos. Um é com o diplomata John McNamara, que é um dos interlocutores estadunidenses com o chavismo. Ele foi responsável por negociar a troca dos venezuelanos presos em El Salvador por 10 estadunidenses que estavam detidos na Venezuela por trabalharem em “planos terroristas”.
O outro meio seria com o enviado especial Richard Grenell. Ele esteve em Caracas em fevereiro para tratar com Maduro sobre o envio de deportados venezuelanos que deixariam os EUA na política de deportações em massa.
Segundo o presidente venezuelano, esses dois canais permanecem abertos e quem tem tentado tensionar a relação com os venezuelanos é Marco Rubio. Maduro disse que a ideia de Rubio é atacar a Venezuela e “sujar as mãos de Trump de sangue”.
Para o cientista político William Serafino, da Universidade Central da Venezuela, há uma divisão interna clara entre uma ala mais pragmática que topa negociar com a Venezuela e é liderada por Grenell. Outro setor extremista seria encabeçado por Rubio, que quer atender aos interesses da extrema direita latino-americana que vive em Miami e que compõe o núcleo duro do eleitorado do secretário de Estado. Ele foi eleito como senador por quatro mandatos.
“O vídeo deixa claro aquilo que apontamos dentro dessa disputa interna nos EUA. A ideia é satisfazer os grupos mais extremistas dentro do Partido Republicano, que pressionam pelo uso da força contra a Venezuela. Falta entender até onde Trump vai ceder para esse grupo”, disse ao Brasil de Fato.
O argumento do chavismo é de que Rubio vence essa disputa interna, mas que o efeito disso ainda é limitado.
Para o advogado e especialista em economia política Juan Carlos Valdez, a tática usada por esse grupo é ampliar a pressão contra o governo Maduro e ameaçar um ataque militar que ainda não está no horizonte dos EUA.
“Os EUA estão inicialmente aplicando uma tática de intimidação, usando falsos positivos e outras ações como parte de uma operação psicológica massiva. Eles buscam desmoralizar e amedrontar os venezuelanos. Como já aconteceu antes, os efeitos desejados não estão se materializando; pelo contrário, estão alcançando uma reunificação do povo venezuelano em torno da defesa do país como um todo”, afirmou ao Brasil de Fato.
A unificação dos venezuelanos foi estimulada pelo próprio governo. Maduro convocou um alistamento em massa para a Milícia Nacional Bolivariana e disse que o resultado foi exitoso. O número de voluntários saltou de 4,5 milhões para 8,2 milhões no que é considerada uma Força Armada popular.
Ajuda de fora
Outra resposta do governo venezuelano vem do apoio externo. Se o discurso internamente era de manter a calma, para outros países, a Venezuela adotou a linha de denunciar as ameaças desde o princípio. O respaldo mais contundente veio da Colômbia. O governo de Gustavo Petro tem reforçado a ameaça que a presença desses navios representa para toda a região.
O governo brasileiro também vê o movimento dos EUA com preocupação. Para os dois vizinhos, ataques diretos contra a Venezuela representariam um “desastre” em diferentes aspectos. Primeiro pelo aumento exponencial de migrantes. Segundo o Ministério das Relações Exteriores da Colômbia, cerca de 2,8 milhões de venezuelanos viviam no país no ano passado. Já o Censo de 2024 do Brasil indicava que 272 mil venezuelanos estavam em território brasileiro.
A tendência é que esse número aumente muito em caso de conflito armado no país caribenho. Outras questões indicadas pelo governo dos dois países seriam problemas comerciais e turistico, já que uma parcela significativa do espaço aéreo e marítimo estaria interditado na região.
A Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América (Alba Movimentos) tem sido um dos principais articuladores de um apoio de movimentos populares à Venezuela. Na leitura da organização, a política de Trump tem como fim derrubar o governo castrista em Cuba, mas, para isso, precisa acabar com o principal ponto de apoio da ilha.
“O vídeo tem a função de promover uma guerra psicológica. Existem diferentes tipos de ataque contra a Venezuela e esse é um capítulo mais nessa guerra com diferentes frentes. Nesse governo Trump, que só está no começo, o objetivo final na América Latina é derrotar Cuba. Mas para derrotar Cuba é preciso derrotar a Venezuela. Porque a Venezuela é hoje o principal ponto de apoio dos cubanos”, disse o secretário-geral da Alba-Movimentos, Giovani del Prete.