A cultura negra tomou conta do Centro de Convenções Ulysses Guimarães, em Brasília (DF), com o primeiro dia da 5ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Conapir), nesta segunda-feira (15). A atividade de abertura contou com a participação do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que foi recebido pelo público com palavras de ordem, entre as quais, “sem anistia”.
Em seu discurso, Lula destacou a participação das pessoas negras nas políticas públicas realizadas pelo governo federal.
“É muito importante que a gente olhe a fotografia que nós ajudamos a construir nesse país. O Bolsa Família brasileiro tem 19,2 milhões de famílias beneficiadas. Desses, 73% são chefiadas por pessoas negras. O Pé-de-Meia beneficiou 4 milhões de estudantes em 2025, 49% deles são meninos e meninas negras. O Prouni [Programa Universidade para Todos], em 2024, teve 170 mil pessoas inscritas, 57% eram pessoas negras. O Fies [Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior] teve 44 mil pessoas inscritas em 2024, 59,8% eram pessoas negras. O Sisu [Sistema de Seleção Unificada] teve 264 mil vagas ofertadas, 24,54% das vagas reservadas para ações afirmativas. As bolsas do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], são 94 mil bolsas para instituições, 30,7% ocupada por pessoas negras. No meio ambiente, o Bolsa Verde teve 63 mil famílias beneficiadas, sendo 90,7% chefiadas por pessoas negras e 2% de famílias chefiadas por indígenas. Isso é apenas um pouco da fotografia que a gente conseguiu construir”, relatou o presidente.
Lula afirmou que as políticas inauguradas por seu governo “mudaram a cara” do Brasil. “Aos poucos, lugares que habitualmente a gente visitava e que você só encontrava a maioria de brancos, hoje você encontra um pouco da cara brasileira, a cara negra, a cara das pessoas que sentem orgulho, que não querem mais ser consideradas morenas, morenas jambo, querem ser negras, porque se reconhecem como negras e é motivo de orgulho assumir a negritude de cada um”, disse o presidente, em um discurso lido.
“É o dado mais extraordinário. Eu frequentei muito tempo a USP, em São Paulo, e a USP, para quem sabe, era uma universidade de pessoas brancas. E hoje, se você for na USP, são mais pessoas negras e muita gente da periferia frequentando aquela que é considerada a mais importante universidade desse país”, completou. Na sequência, qualificou o preconceito racial como “uma doença” e “um crime”.
“Racismo é crime e é também uma doença que precisa ser erradicada do nosso país. Só assim, quando todos os brasileiros e brasileiras tiverem as mesmas oportunidades, seremos uma verdadeira democracia. Nossa luta é para que ninguém sofra qualquer tipo de preconceito pela cor da pele, pela orientação sexual, pela fé que professa ou por qualquer outro motivo”, declarou Lula.
“Agradeço a cada um de vocês por estar aqui nesse debate cujo objetivo maior é ajudar o nosso governo a construir um país mais justo e melhor para todos nós. Avançamos muito em nossa caminhada, mas ainda temos um longo caminho a percorrer”, concluiu.
Visivelmente emocionada, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, deu as boas-vindas aos conferencistas e se dirigiu, na sequência, a Lula. “São 20 anos, presidente, 20 anos desde a primeira conferência e são sete anos esperando por essa. E foi pelas mãos do povo brasileiro que o senhor voltou o comando deste país para poder proporcionar momentos democráticos como esse”.
Sobre a realização da conferência, a ministra destacou a importância das etapas regionais da atividade. “Foram caravanas de norte a sul batendo na porta de todos os ministérios da Esplanada, fazendo política dentro e fora do gabinete e, principalmente, caminhando do lado do povo brasileiro. Graças a essa construção coletiva que nós não só reconstruímos essas políticas que haviam sido destruídas, como também avançamos nas conquistas e no legado de uma vida mais digna para o nosso povo, um legado de democracia, justiça racial e reparação”, afirmou.
Casa da Igualdade Racial
Após o discurso, a ministra assinou um acordo com a Caixa Econômica Federal para a sessão de um imóvel, no Rio de Janeiro, onde será construída a primeira Casa da Igualdade Racial. “Será um espaço de convívio comunitário e apoio especializado para a população negra em sua diversidade e para comunidades tradicionais, com vistas a promover a valorização da cultura afro-brasileira e o fortalecimento das relações sociais”, explicou.
Os municípios de Pelotas (RS), Itabira (MG), Contagem (MG), Salvador (BA) e Fortaleza (CE) também assinaram protocolos de intenções para a construção do equipamento público em suas cidades.
“A gente não queria fazer apenas um instrumento para as pessoas chegarem falando: ‘Ah, sofri racismo’ e ficar por isso mesmo. A construção da casa requer pensar acolhimento tanto psicológico, emocional, mas também justiça”, disse Franco, em coletiva de imprensa pós-evento.
A conferência nacional que ocorre em Brasília nesta semana é precedida de atividades municipais e estaduais, de onde surgiram propostas que serão discutidas nesses cinco dias. Ao final, os conferencistas devem elaborar um documento e propor ações e políticas públicas que contribuam para a superação das desigualdades, o enfrentamento ao racismo e o desenvolvimento sociopolítico de toda a sociedade.
O Ministério da Igualdade Racial (MIR) informou que 1.700 delegados foram credenciados para participar do evento, representantes da população negra, das comunidades quilombolas, povos e comunidades tradicionais de matriz africana e povos de terreiros, povos ciganos, indígenas e da população negra, LGBTQIA+, juventude e mulheres negras. Além deles, outras 200 pessoas participam como convidados, 50 como observadores e 45 expositores.
Protesto indígena
Enquanto a coordenadora do cerimonial fazia a apresentação da atividade, um grupo de indígenas realizou um protesto na plateia pela ausência de representação dos povos originários entre os convidados a comporem o palco.
Imediatamente, a ministra Anielle Franco autorizou um de seus assessores a convidar uma representante indígena para subir ao cenário, que o fez ao som dos chocalhos e da frase: “Pisa ligeiro, pisa ligeiro, quem não pode com a formiga não atiça o formigueiro”.
Incomodada, a ministra chegou a receber apoio da ministra do Meio Ambiente (MMA), Marina Silva, que estava ao seu lado.
Entre os participantes na conferência, havia um grupo de ciganos, que tampouco tiveram representação no palco da atividade de abertura.
PEC da Reparação
Julião Vieira, coordenador nacional da União de Negros e Negras (Unegro), conta que já no primeiro dia, a organização autogestionou uma atividade para defender o que ele considera o principal tema de debate na 5ª Conapir.
“Nós tivemos uma atividade autogestionada que é chamado Xerê de discussão e a Unegro promoveu uma atividade pela manhã sobre reparação e democracia”, disse o dirigente.
Para Vieira, os debates durante a conferência vão fortalecer a luta pela aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 27/2024, que propõe a criação do Fundo Nacional de Reparação Econômica e de Promoção da Igualdade Racial (FNREPIR).
“Nós estamos aprofundando o debate sobre a importância da PEC, da questão da reparação, da criação do fundo da reparação, e como que essa reparação tem que ser aplicada, do ponto de vista econômico. Então, para nós, inicia-se o processo da 5ª Conferência Nacional com um debate importante, que é o debate da reparação, e que nós acreditamos que vai se estender ao longo desses quatro dias”.
Quem também falou sobre a importância da garantia de orçamento para as políticas de promoção da igualdade racial foi a vice-presidente do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR), Marina Duarte.
“Precisamos defender o fundo da reparação. Demos um passo importante com a aprovação na CCJ [Comissão de Constituição e Justiça] da PEC 27, mas isso deve ter um encaminhamento dessa conferência. Precisamos estar lado a lado para que o fundo passe e a gente consiga esse avanço dentro da nossa pauta”, disse a conselheira. “Garantir orçamento, transversalidade radical, em todas as áreas, e enfrentar sem medo o racismo como pilar que sustenta a desigualdade nesse país. É por isso que o fundo é urgente”, destacou.
Pela proposta, a União deverá destinar R$ 20 bilhões em 20 anos para promover a inclusão social da população negra brasileira. O texto propõe ainda a inclusão de um novo capítulo na Constituição Federal, intitulado “Da Promoção da Igualdade Racial”, estabelecendo bases para políticas permanentes de combate às desigualdades raciais.