Desde o início do seu primeiro mandato, o governador Romeu Zema (Novo) busca insistentemente privatizar as empresas públicas de Minas Gerais que atuam em setores estratégicos para o desenvolvimento do estado, como a Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa) e a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig). Uma das argumentações do Executivo é de que as estatais são ineficientes e precisam de “modernização”.
Porém, especialistas e trabalhadores denunciam que, na realidade, as companhias, que são reconhecidas nacionalmente e internacionalmente por sua importância, vêm sofrendo boicotes do governo, que piora propositalmente a qualidade do serviço prestado como forma de convencer a população da necessidade da privatização.
Você conhece a importância dessas empresas?
Tanto a gestão da energia elétrica quanto a distribuição de água e saneamento básico são setores fundamentais do nosso cotidiano, impactando em toda a dinâmica das cidades. Por isso, o acesso a esses serviços precisa ser encarado como um direito público, avalia Jefferson Silva, secretário-geral do Sindicato Intermunicipal dos Trabalhadores na Indústria Energética de Minas Gerais (Sindieletro-MG).
“A energia elétrica está presente praticamente em tudo na nossa vida. A produção da roupa que usamos precisa de energia, o alimento não chega em nossa mesa se não tiver energia elétrica, escolas, hospitais e até a segurança pública ficam extremamente vulneráveis sem a energia elétrica, e assim por diante”, explica.
:: Leia também: Cemig e Copasa: conheça a origem das estatais mineiras que Zema quer privatizar ::
Além disso, esses serviços têm relação direta com a sobrevivência humana e soberania. O caráter público da Cemig e da Copasa também é o que garante que as empresas atuem no planejamento de longo prazo do desenvolvimento do estado e da geração de empregos de qualidade, ajudando no combate às desigualdades.
“Políticas sociais advindas das estatais são fundamentais para o povo mineiro, principalmente para o mais pobre. Um exemplo são os sucessivos refinanciamentos de dívidas referente à conta de luz de hospitais filantrópicos, como é o caso da Santa Casa de Belo Horizonte”, pontua Jefferson Silva.
A Copasa, por exemplo, atua com a política de “subsídio cruzado”, que, na prática, significa utilizar o recurso dos municípios que geram lucro para investir nas regiões que não geram, que frequentemente são cidades pequenas e com grandes áreas rurais. Empresas privadas geralmente priorizam atuar apenas nos territórios que geram rendimento. É o que explica Eduardo Pereira, presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgotos do Estado de Minas Gerais (Sindágua-MG).
Zema piora propositalmente a qualidade do serviço
“A maior importância da Copasa é levar saneamento de qualidade a todos os lugares, independente de sua situação socioeconômica, com a prática do subsídio cruzado, que consiste em investir parte do lucro das grandes concessões em cidades que dão prejuízo. Isso contribui para reduzir as desigualdades do nosso estado”, afirma.
As duas companhias também são fundamentais no processo de transição energética justa, uma vez que, na gestão dos recursos naturais, diferente de empresas privadas, que visam prioritariamente o lucro, as estatais têm condição de pensar prioritariamente nos interesses coletivos, garantindo, por exemplo, a proteção ao meio ambiente.
Em números
A Cemig tem 73 anos de história, sendo a maior estatal de Minas Gerais e a maior empresa integrada do setor elétrico brasileiro. Ela atua em 774 dos 853 municípios mineiros e fornece serviços comerciais e de urgência e emergência — restabelecimento de energia; atendimento junto ao corpo de bombeiro e defesa civil, em casos de desastre ambiental e outros acidentes que envolvam a rede elétrica, etc —. Atualmente, a companhia tem mais de 9 milhões de consumidores.
Já a Copasa atende 637 municípios mineiros com concessão de água e 330 com concessão de esgoto. A empresa está presente em 75% do território do estado e atende a uma população de 11,8 milhões de pessoas, pouco mais da metade do contingente populacional de Minas. Isso demonstra que a maior parte das cidades onde a estatal atua são pequenas e deficitárias, indicando o seu compromisso social.
Apenas no ano passado, a Copasa teve lucro de R$ 1,3 bilhões e a Cemig de mais de R$ 7 bilhões.
O que acontece quando a luz e a água são privatizadas?
Experiências de privatização de serviços de energia, água e saneamento indicam que, após a entrega do setor para a iniciativa privada, a qualidade piora e as tarifas aumentam.
“O planejamento a longo prazo é desestruturado e substituído por um de curto prazo, que visa aumento da lucratividade, gerando uma série de consequências negativas para a população”, aponta Jefferson Silva.
Como exemplo, o secretário-geral do Sindieletro-MG cita a primeira empresa do setor elétrico a ser privatizada no Brasil, em 1995, a Espírito Santo Centrais Elétricas (Escelsa). De acordo com um estudo do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o reajuste acumulado na tarifa de energia elétrica do estado entre 1995 e 2015 chegou a 752%, o que representa mais que o dobro do reajuste da inflação, que foi de 342%.
“No Amapá, em 2020, cerca de 90% da população ficou sem energia elétrica por 22 dias consecutivos, por escolha da gestão privada da empresa distribuidora de energia elétrica. As causas do apagão estão relacionadas à falta de investimento em manutenção de transformadores reservas, que são acionados quando o transformador principal para de funcionar”, continua exemplificando.
Outro caso é o da privatização da Eletrobrás que, em 2023, fez com que 25 estados brasileiros sofressem com um dos maiores apagões da história do setor elétrico brasileiro, em dimensão territorial. Ocasionado por uma instabilidade no sistema, o problema tomou essa proporção porque os trabalhadores que deveriam corrigi-lo tinham sido demitidos após a venda da estatal.
Inúmeros exemplos podem ser citados também no setor de água e esgoto. Na cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais, onde existe uma concessão com uma empresa privada, a tarifa subiu tanto que o município teve que garantir um subsídio de 53% para cada cliente.
“Experiências no mundo inteiro mostram que privatização em saneamento básico é um risco, pois o privado só tem compromisso com o lucro. Como o que vem acontecendo com a privatização do saneamento em Manaus e, recentemente, no Rio de Janeiro. Não precisamos repetir o erro de Paris, que privatizou o saneamento e teve que reestatizar em 2008 o serviço, devido ao clamor popular”, explica Eduardo Pereira.
E o restante do mundo?
Paris não é exceção. O relatório Reconquistar os serviços públicos: como estão as cidades e os cidadãos a reverter as privatizações, construído pelo European Federation of Public Service Unions (EPSU) e a Transnational Institute (TNI), aponta diversos exemplos de retomada de áreas estratégicas para a gestão pública ao redor do mundo, como o que ocorreu nas cidades de Oslo, na Noruega; Deli, na Índia; Grenoble, na França; Hamburgo, na Alemanha; Nottingham, Leeds e Bristol, no Reino Unido; entre outras.
Os principais motivos levantados para a reversão das privatizações estão justamente ligados ao sucateamento dos serviços, ao aumento da tarifa e à necessidade de mudanças para a transição energética.
Para Jefferson Silva, um bom exemplo de reestatização é o caso da Électricité de France (EDF), maior empresa de energia elétrica da França.
“Com propósito de planejamento, objetivando a realização da transição energética no país, o governo francês comprou as ações dos acionistas privados e desfez a parceria com os antigos sócios para reestatizar a maior companhia de energia elétrica do país, entendendo que a transição na matriz energética só é possível com controle estatal”, destaca.
Para Eduardo Pereira, ao invés de tentar vender empresas estratégicas, o governo de Minas deveria mirar a reestatização das companhias que já foram privatizadas.
“Se o governo Zema fosse sério, estaria discutindo a reestatização total das companhias. Infelizmente, não é o que está acontecendo. No momento, ele tenta dar um golpe no povo, retirando da Constituição de Minas o direito de manifestar sobre o futuro das nossas estatais”, protesta.