Nas últimas duas décadas, vivemos um deslocamento profundo nas bases simbólicas que sustentam o debate político e a formação do imaginário social. Se antes a esquerda ocupava de forma quase exclusiva o lugar da contestação – denunciando injustiças, autoritarismos e estruturas de dominação –, hoje vemos a extrema direita capturar esse lugar simbólico, apresentando-se como a nova força “antissistema”.
Com um discurso corrosivo e radical, ainda que operando a partir do centro das elites econômicas e midiáticas, ela se posiciona como voz da ruptura. Essa inversão histórica empurrou a esquerda para o campo da defesa da institucionalidade, especialmente após vivenciar tentativas concretas de ruptura democrática, como vimos no Brasil.
Essa virada não se dá de forma isolada. Ela é alimentada por uma construção estética potente, com raízes profundas na cultura pop e nas linguagens das redes, que geraram um fascínio antissistema, aprofundando ainda mais a vertiginosa desconfiança no poder do Estado e nas instituições públicas. Desconfiança essa, semeada e cultivada por décadas de discurso neoliberal.
Se o sistema antes representava eminentemente a compreensão dos setores financeiros, o sentimento antissistema passou a operar para a corrosão do Estado. Filmes como V de Vingança e Coringa ajudam a consolidar uma sensibilidade coletiva onde o desejo por justiça aparece vinculado à ideia de quebrar tudo – destruir o sistema, incendiar as instituições, desestabilizar o status quo. No Brasil, Tropa de Elite 2 cumpriu papel semelhante, ao retratar um sistema onde a corrupção se tornou regra e a violência uma resposta aceitável.
Essas produções não apenas refletem o espírito do tempo, mas também alimentam subjetividades. Foram parte de um caldo cultural onde a linguagem da insubordinação foi capturada e reconfigurada – terreno fértil para que a extrema direita operasse com inteligência brutal sobre o imaginário popular. Dominando as redes sociais, os memes, os vídeos curtos, esses grupos transformaram frustrações reais – como a economia, com a política, com a vida – em matéria-prima para uma radicalidade tóxica e despolitizada.
A esquerda, por sua vez, ficou muitas vezes encurralada entre o necessário dever de defender a democracia e a dificuldade de reacender um desejo coletivo por transformação.
A raiz do problema é simbólica e estrutural. Quando se perde a narrativa da rebeldia, perde-se também a conexão com parte importante da sociedade, especialmente com quem se sente traído ou esquecido pelas promessas do sistema. Perde-se uma geração de jovens, seduzida por essa nova configuração da rebeldia, agora monopolizada pela retórica autoritária.
O desafio, então, é reconectar a ideia de justiça com imaginação política, com o sonho de futuro, com o gesto de invenção coletiva. É ocupar novamente o campo do novo, do corajoso, do imprevisível – não pela via da destruição, mas pela força da criação.
Vivemos um tempo de disputas profundas entre estéticas, tecnologias e modelos de mundo. A política se tornou uma batalha também simbólica, onde algoritmos moldam desejos e a cultura opera como campo de guerra. A chave talvez esteja em não recuar – ou ao menos empatar, como fazia Chico Mendes ao resistir e conseguir fazer as reservas extrativistas no Acre.
Precisamos atrapalhar o avanço do extermínio do que é comum e retomar as bases do sentimento antissistema, moldado, historicamente, pela defesa dos direitos sociais diante do avanço do sistema financeiro, hoje ultraneoliberal.
Mas para isso, não basta vencer no argumento racional ou na institucionalidade. É preciso inspirar. E a inspiração vem da arte, da cultura, da linguagem que pulsa nos territórios e nas redes, que brinca com o possível e convoca o impossível.
Fazer do afeto uma arma política, da colaboração uma estratégia radical, da cultura uma ferramenta de disputa real. Retomar o campo da imaginação social da insurgência é tarefa urgente, não apenas para resistir, mas para reacender, reinventar e reocupar a esperança como horizonte político.
Hoje, estamos de frente para uma fresta que se abre pela ambição descontrolada da extrema direita com o centro do Congresso Nacional e pelo acerto do governo ao propor a taxação dos bilionários, dos bancos e das casas de aposta, que vai aliviar o peso sobre os ombros de quem sustenta o país. É um gesto raro de reparação.
É mais do que uma medida técnica — é uma possibilidade simbólica de reconfigurar o campo da justiça. Mas essa fresta não se consolidará sozinha. Ela precisa ser defendida com palavras que toquem o povo. Precisa sair dos gabinetes e das análises e ganhar o chão das ruas, das conversas de mercado, do ônibus lotado, da fila do posto de saúde.
Para que não se perca, essa oportunidade precisa ser contada com afeto e coragem. Porque, no fundo, mais do que uma disputa de leis, trata-se de uma disputa de sentidos: quem paga a conta do Brasil? E quem deve ser chamado a reconstruí-lo? Talvez seja justamente aí, ao lado do povo trabalhador, que a imaginação política progressista reencontre sua voz. E transforme, de novo, a rebeldia em projeto de futuro.
João Paulo Mehl é coordenador do Comitê de Cultura do Paraná.
Lenina Guevara é coordenadora regional no Distrito Federal da diretoria de Fomento e Difusão Regional da Funarte
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato – DF.