Por Ivan Moraes*
Pouca gente discorda (ao menos publicamente) que a atividade jornalística é um serviço essencial para a vida plena numa democracia. Embora seus formatos possam variar e os veículos pelos quais as notícias chegam até as pessoas tenham mudado. Apesar de o ofício de apurar, checar e distribuir informações esteja, ao mesmo tempo, ameaçado e impulsionado por novas ferramentas digitais. Ainda que as redações estejam cada vez menores e a profissão precarizada, parece não haver dúvidas: seguimos precisando de pessoas e organizações que tenham capacidade para descobrir o que é de interesse público e os mecanismos para poder fazer estes fatos chegarem às pessoas.
Na era da hiperconectividade e da multiplicação de conteúdos, conhecer os desafios enfrentados por um setor que insiste em se reinventar para permanecer vivo é, antes de mais nada, uma luta necessária e urgente. Todas essas conversas deram o tom do 20º Congresso Internacional da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), que aconteceu neste mês de julho, em São Paulo.
O evento, possivelmente o que mais reúne profissionais de imprensa na América Latina, contou com cerca de duas mil pessoas em mais de 100 atividades entre oficinas, debates e palestras em 13 trilhas temáticas, com destaque para cobertura climática e ambiental, segurança de jornalistas, sustentabilidade do setor e novas narrativas. Na pauta, a relação entre jornalismo e big techs, os limites da objetividade, a sustentabilidade das redações e os desafios para ‘driblar’ obstáculos técnicos e políticos.
Começando pelas boas notícias: com todo o perrengue, há o que comemorar sobre as últimas décadas de jornalismo no Brasil. A começar pela diversidade de representações e de pontos de vista que atuam no ecossistema da informação. Há cada vez mais novos corpos e identidades, não apenas presentes, mas protagonistas. O acesso equipamentos e tecnologias também fez com que o fazer jornalístico fosse cada vez mais possível para mais profissionais. Informações que podiam demorar semanas ou meses para serem sistematizadas já podem, com o uso de aplicativos, estar à mão em poucos minutos ou segundos.
Há vinte anos, nascia o YouTube. Consolidadas empresas de mídia migravam para o ambiente virtual, onde ainda “engatinhavam” os blogs, que buscavam disputar a atenção de pessoas com mais autonomia para escolher seus conteúdos — ainda antes das redes sociais e de seus algoritmos. Ainda não eram tão comuns instrumentos como R, Python ou Pandas para o que chamamos hoje de “jornalismo de dados”. Nas redações, telefones celulares com câmera começam a aparecer na mão de todos os repórteres. O que se ouvia falar de jornalismo independente e popular resistia bravamente nas rádios comunitárias, em publicações quase sempre patrocinadas por sindicatos ou movimentos sociais. O Brasil de Fato, em formato impresso, por exemplo, nasceu em 2003, justamente durante o 1º Fórum Social Mundial.
De lá pra cá, alguns desafios permanecem quase inalterados, como a questão da sustentabilidade do setor. As grandes empresas jornalísticas perderam o monopólio da relevância, mas o rio do tradicional recurso publicitário (do mercado e do governo) segue desaguando nos mesmos mares. De acordo com o Cenp-Meios, mais de 42% dos gastos com publicidade (privada e pública) no Brasil vão apenas para empresas de TV, sendo que mais de 36% para os canais abertos.
Enquanto isso, o chamado “jornalismo independente” tenta existir a partir de estratégias diversas — desde o “crowdfunding” até editais da filantropia internacional. Há também quem encaixe sua iniciativa como “cultura” e “entretenimento” para acessar políticas públicas como fundos setoriais e a Lei Rouanet.
Segue incipiente a imprescindível criação de fundos públicos que garantam a existência de um ecossistema de informação diverso e sustentável, com a garantia de que produzirão jornalismo dentro de normas e critérios previstos nos códigos de ética da profissão e baseados no direito à comunicação.
Mesmo no campo progressista, a ideia muitas vezes é lida como “complexa” ou “delicada”. Há quem tema a possibilidade de uso político deste recurso diante de nossa frágil democracia. “Delicado”, pensei com meus botões, enquanto perguntava ao ChatGPT quanto as instituições públicas brasileiras executaram discricionariamente — ou seja, sem nenhum critério obrigatório ou governança pública — com propaganda no ano passado.
Só o federal e suas estatais gastaram mais de R$ 3,5 bilhões. Somando-se estados e municípios, é provável que o custo total da publicidade oficial tenha superado os R$ 10 bilhões só em 2024, numa estimativa baseada em fontes como SIGA Brasil (sistema de consultoria de orçamento público), Tribunal de Contas de União (TCU) e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Não sei o que há de “delicado” em garantir que um bom pedaço desse montante possa ser disponibilizado para fomentar o jornalismo diverso e responsável, com transparência e controle social.
Quem dera, porém, que o único desafio da mídia independente fosse dinheiro. Se o avanço da tecnologia tem sido celebrado por facilitar o “fazer jornalístico”, o mesmo não dá para dizer sobre a distribuição desses conteúdos. No mesmo Congresso da Abraji, a organização AzMina, que atua para dar visibilidade a temas ligados a direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, falou das dificuldades impostas pelos mecanismos nada transparentes de plataformas que têm reduzido a relevância sobre diversos temas sem que o público saiba seus “comos” ou “porquês”.
Alguns exemplos são fáceis de entender. Se há alguns anos você fizesse uma busca no Google por algum assunto, veria, no topo da página, os principais links de sites com o conteúdo que você deseja. Hoje, antes das indicações, você terá um resumo feito pela Gemini, ferramenta de inteligência artificial que torna as coisas mais “fáceis” para pessoas usuárias e cada vez mais difíceis para as pessoas e organizações responsáveis pelas informações originais utilizadas pelo robô.
Há vinte anos, nos digladiávamos em um cenário em que o fluxo de informação era hegemonizado por um punhado de homens brasileiros, brancos, cis, hétero, ricos e sudestinos. Hoje, o controle está nas mãos de uma quantidade semelhante de indivíduos de identidade semelhante, mas com alguns agravantes: são estrangeiros, vivem no norte global e estão alinhados com a extrema direita universal.
Alguns estudos têm alertado para o crescimento do protagonismo das plataformas de rede social no acesso a conteúdos informativos, como o Social Media Metrics as Predictors of Publishers’ Website Traffic, produzido pelo Multidisciplinary Digital Publishing Institute (MDPI), e o Digital News Report 2025, do Instituto Reuters, em parceria com a Universidade de Oxford. Essas mesmas duas organizações lançaram, no início deste ano, o documento Journalism and Technology Trends and Predictions 2025.
Tendo como fontes 326 líderes digitais de 51 países, incluindo o Brasil, o estudo traz um achado curioso. Apenas 41% dos editores, CEOs e diretores participantes disseram estar confiantes nas perspectivas do jornalismo como um todo, embora 56% estejam confiantes no futuro dos próprios negócios. Ou seja: ainda que a realidade seja difícil, que muitas estrelas do jornalismo estejam preferindo carreiras solo e que as plataformas incidam negativamente na distribuição de notícias, essas pessoas acreditam que conseguirão superar esses obstáculos de forma individual. Difícil.
Na mesa Além dos algoritmos: caminhos para reduzir a dependência de big techs no jornalismo, Paula Miraglia, do think tank Momentum, defende um “acordo coletivo” construído a partir da união de empresas e grupos de jornalismo diante das corporações digitais. Pois não há acordo coletivo maior que uma regulação que traga regras e obrigações às plataformas, como a de garantir o fluxo de conteúdos jornalísticos e mesmo o seu financiamento a partir da criação de fundos públicos patrocinados pelas big techs.
Uma regulação que garanta a liberdade de expressão aliada à necessária responsabilização por conteúdos criminosos e notícias falsas; que atenda às necessidades de fomento ao jornalismo livre, independente e comprometido com a verdade, assim como às iniciativas públicas (não estatais); e que assegure direitos às pessoas usuárias. Certamente, nada disso resolverá todos os problemas do jornalismo. Mas pode ser um bom começo.
*Ivan Moraes é jornalista e integrante do DiraCom