Os Estados Unidos tentaram pressionar e criar um clima de tensão na Venezuela ao anunciar o envio de três navios militares para o sul do Caribe. A movimentação estadunidense foi lida como uma ameaça e um “ataque psicológico” ao país sul-americano, com investidas da Casa Branca e declaração de que o presidente dos EUA, Donald Trump, usará “toda a força” contra o governo de Nicolás Maduro.
No entanto, o clima de pânico não se concretizou na Venezuela durante a semana, e o alerta criado em outros países em torno do envio dos navios militares também reduziu.
Para o cientista político William Serafino, da Universidade Central da Venezuela, o país norte-americano tem como objetivo principal nessa movimentação a demonstração de força em um continente considerado chave para Washington pelo predomínio histórico na região. Segundo ele, a Venezuela entra nessa disputa por ser o principal articulador com russos e chineses na América do Sul.
“O objetivo é enviar uma mensagem de autoridade, principalmente à China, potência que vem minando a influência dos EUA na região. Por isso, a manobra visa a Venezuela: ela é um ator fundador da multipolaridade em ascensão, muito próxima da China. E tem sido o motor político de todos os processos de integração que, mesmo hoje enfraquecidos, oferecem um horizonte soberano e independente na esfera de dominação geopolítica dos EUA”, avalia.
A justificativa de Washington para o envio das embarcações é o combate ao narcotráfico na América Latina, especialmente grupos que levam drogas aos EUA. A análise é de que reavivar a narrativa do “narcoterrorismo” e da “luta contra os cartéis” é uma maneira rápida de demarcar essa hegemonia na região.
Há, no entanto, um jogo de palavras nas declarações feitas pelos EUA. A porta-voz do governo de Donald Trump, Karoline Leavitt, afirmou que os Estados Unidos usariam “toda a força” contra a Venezuela. Antes, o Departamento de Estado havia aumentado a recompensa pela prisão de Nicolás Maduro para US$ 50 milhões e, sem apresentar provas, reiterou que o mandatário venezuelano seria chefe do Cartel dos Sóis, uma suposta organização criminosa, sobre a qual não há informações oficiais.
O ex-diplomata e analista internacional venezuelano Sergio Rodríguez Gelfenstein entende que essas declarações representam uma peça na estratégia dos EUA de pressão sobre o país caribenho, mas não significam uma mudança nas contínuas ameaças sofridas desde que o ex-presidente Hugo Chávez assumiu em 1999. Para ele, é possível que os navios sequer cheguem à costa venezuelana.
“Marco Rubio sempre mente e usa isso como estratégia. É diferente o que se diz do que se faz. Nós estamos ameaçados há 26 anos. Tivemos golpe, guarimba, imposição de um presidente ilegal, invasão por via marítima e terrestre… Eles já estiveram aqui para bloquear barcos com alimentos e medicamentos que iriam chegar na Venezuela. Não podemos construir a política com base nas declarações dos EUA”, afirma.
O deslocamento de navios não é uma ameaça nova. Em 1º de abril de 2020, Trump já havia feito as mesmas “denúncias” para enviar tropas para a região. Na época, as manchetes eram iguais: “Marinha dos EUA vai ao Caribe para combater narcotráfico”. A Casa Branca já tinha um expediente repetido de acusar Maduro de integrar um grupo terrorista. A operação há 5 anos também não deu em nada.
O sul do mar do Caribe é uma região estratégica para a Venezuela porque é por onde trafegam os navios que levam as exportações de petróleo. As sanções contra o país foram implementadas em 2017 e também têm esse foco, evitar que o governo de Maduro venda seu principal produto no mercado internacional.
Um movimento militar na região cria desconforto no sentido de intimidar as exportações feitas para furar o bloqueio dos EUA.
Resposta interna
Há uma disputa dentro do Partido Republicano dos Estados Unidos entre duas alas bem definidas. Uma delas é comandada por Marco Rubio. Descendente de cubanos, ele é uma das principais vozes contra governos de esquerda na América Latina. O seu apoio parte, principalmente, dos imigrantes latinos que vivem nos EUA e, nesse caso, especialmente os venezuelanos que se posicionam contra Maduro.
Para Serafino, é possível que as tropas estadunidenses façam apreensões de cargas com drogas e associem à Venezuela para alimentar uma “guerra psicológica” e uma propaganda negativa contra o governo chavista. Isso, de acordo com ele, aumentaria uma confrontação contra os venezuelanos por meio de uma narrativa que já é construída há duas décadas.
“Até agora a ofensiva é performática. Isso pode mudar, mas todos os elementos parecem indicar que se trata de uma operação destinada a satisfazer os setores intervencionistas linha-dura dentro do Partido Republicano, que há anos pressionam pelo uso da força contra a Venezuela. A questão é onde eles traçarão o limite. Uma possível simulação de interdição de drogas poderia ser declarada uma ‘vitória tática’ e vendida como um duro golpe para as supostas finanças do ‘Cartel dos Sóis’”, afirmou.
Conseguir algum argumento para embasar a tese de que o Cartel dos Sóis existe seria uma conquista para esse bloco. Isso evitaria em um primeiro momento uma escalada militar lida por Serafino como “arriscada e irreversível”.
Ainda que seja improvável uma incursão militar estadunidense, os analistas entendem que essas declarações mantêm um sinal de alerta para o Exército venezuelano, que já é constantemente preparado para lidar com ameaças.
“Há um plano de defesa do país que está ativado permanentemente e que não varia de acordo com declarações dos EUA. O Exército venezuelano tem uma paciência estratégica. As Forças Armadas estadunidenses sabem que um movimento militar seria perder tempo e recursos. Os EUA não querem uma guerra na Venezuela, querem o ‘pátio traseiro’ tranquilo. Eles têm outros problemas para lidar, como Ucrânia e Israel”, disse Gelfenstein.
Defesa venezuelana
Caracas tem observado com atenção, mas com calma os movimentos estadunidenses. Até agora, o governo de Maduro emitiu um comunicado dizendo que a atitude “desesperada” de Washington é reflexo do “fracasso das políticas na região”.
Além disso, Maduro também pediu a mobilização de 4,5 milhões de milicianos venezuelanos para defender o país dos ataques estrangeiros. A milícia bolivariana (brigadas populares) é uma organização formada em 2009 por civis e militares aposentados em seus quadros. Eles recebem treinamento para defesa pessoal e fiscalização do território em seus diferentes contextos (urbano e rural). A milícia passou a compor uma das cinco Forças Armadas da Venezuela, que tem uma estrutura diferente do Brasil.
Nas últimas semanas, o governo tem denunciado planos de ataques organizados por grupos paramilitares. O ministro do Interior, Diosdado Cabello, fez três entrevistas coletivas na última semana detalhando a apreensão de explosivos e a identificação dos ataques planejados por grupos que teriam vinculação com a extrema direita.
Para Serafino, a linha que o governo venezuelano tem adotado é a correta: denunciar os ataques, mas manter o clima de tranquilidade para a população.
“O governo está priorizando operações cirúrgicas para desmantelar planos violentos e comunicar os riscos atuais, promovendo a mobilização política em torno da questão, à luz dos perigos subjacentes ao movimento lançado pelos Estados Unidos. Acredito que essa abordagem tem sido correta: conscientizar e disseminar informações, mas sem alimentar o clima de coerção psicológica que a mídia e os porta-vozes estadunidenses tentam estabelecer”, disse.
Deslocamento militar
A tensão em torno dos navios estadunidenses tem origem no potencial bélico dessa estrutura que foi deslocada para o sul do Caribe. A Marinha dos EUA afirmou que estaria enviando o Grupo Anfíbio de Prontidão de Iwo Jima e a 22ª Unidade Expedicionária de Fuzileiros Navais, que integram o Comando Sul. Isso significa a presença dos navios destróieres USS Iwo Jima, USS Fort Lauderdale e USS San Antonio e de 4 mil fuzileiros navais.
Esses navios fazem parte da classe Arleigh Burke, a principal estrutura da Marinha estadunidense. Essas embarcações são capazes de promover de maneira simultânea ataques terrestres, aéreos, marítimos e até submarinos. Segundo a agência de notícias Reuters, a missão inclui também aeronaves de reconhecimento P-8 Poseidon, navios de guerra e ao menos um submarino de ataque nuclear.
Todo esse conjunto de navios militares faz parte do Sistema de Combate Aegis, desenvolvido durante o século 20 e atualizado para melhorar o rastreamento de ataques. Eles são capazes de transportar aviões e helicópteros, além de terem uma estrutura hospitalar.
Para Gelfenstein, não é possível saber se os EUA sequer vão enviar esses navios para o sul do Caribe. Ele entende que essas declarações fazem parte dessa estratégia permanente de pressão de Washington sobre Caracas.
Militares venezuelanos ouvidos pelo Brasil de Fato afirmam que a Venezuela não só mantém o sinal de alerta permanente, como também tem uma estrutura militar qualificada para responder aos ataques estrangeiros. O ex-presidente Hugo Chávez mudou completamente o armamento das forças armadas venezuelanas, que antes era estadunidense. Ao longo dos últimos 20 anos, todo o aparato militar da Venezuela se tornou russo.
O objetivo de Caracas era reduzir a dependência dos EUA no setor militar em um momento de ataque da Casa Branca contra os governos chavistas.
Em 2005, a Venezuela já havia se tornado o maior comprador de armas russas na América Latina. A partir daí, essa relação comercial cresceu ainda mais. Naquele ano, os dois países já tinham contratos militares assinados no valor de US$ 11 bilhões (R$ 62 bi) e negociavam outros US$ 2 bilhões (R$ 124 bi), segundo a estatal russa Rostec.
Mesmo com o bloqueio, a Rússia enviou em 2018 dois caças TU-160 para a Venezuela e, em 2019, inaugurou um centro de treinamento e manutenção de helicópteros militares no país. Dentro de um projeto de cooperação militar, a Rússia inaugurou naquele mesmo ano um centro de simulação de voo de aeronaves SU-M30, em que pilotos venezuelanos podem treinar para operar esses caças.
Essa cooperação militar se fortaleceu ainda mais nos últimos meses. Em julho de 2024, os russos enviaram navios militares para uma visita de quatro dias à Venezuela. O objetivo era aprofundar a “cooperação técnico-militar” entre os dois países, de acordo com o ministro da Defesa venezuelano, Vladimir Padrino López.