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‘Meu público empreteceu muito’, diz Elisa Lucinda sobre acesso à cultura pela população negra

Está em cartaz, no Rio de Janeiro, a nova peça de Elisa Lucinda, O Princípio do Mundo

Está em cartaz, no Rio de Janeiro, até o dia 27 de setembro, no Teatro dos Correios a nova peça de Elisa Lucinda, O Princípio do Mundo. Multipremiada, atriz, poetisa, escritora e cantora, a artista aborda com o novo espetáculo uma forma diferente de contar a história do mundo, rompendo com o pensamento branco ocidental

Para tanto, a narrativa conta que a primeira criatura humana foi criada por uma mulher, a mãe do mundo, interpretada por Lucinda. Do seu ventre, nasceu um menino branco.

“A peça parte do princípio matriarcal, que é um princípio da arte do cuidado. Toda a educação feminina é de cuidar. Isso virou uma opressão, mas, na verdade, deveria ser uma política do mundo: a ética do cuidar. Nós fizemos várias personagens, mas a principal é a mãe do mundo. Ela começa a peça contando como criou a primeira criatura”, explica, em entrevista ao Conversa Bem Viver

Ao longo da trama, que tem momentos de envolvimento da plateia como parte da história e é toda rimada, o intuito é convocar o público a desenvolver um novo olhar para a sociedade e as relações que a constituem. 

“Estamos contando a história que a gente acha que tem que ser contada. Tem o indígena conversando com o colonizador, o primeiro encontro. Tem um ator grego conversando com uma contadora de histórias africana, uma artista africana”, continua Lucinda. 

No ano que vem, ela completa 40 anos de carreira, mas acha que está em seu momento de maior visibilidade. Isso porquê, na avaliação da atriz, as políticas públicas e a luta antirracista têm possibilitado a construção de um público e um corpo de artistas mais “empretecido”, além de mudar a forma como o mercado encara sujeitos negros. 

“Estamos num eixo de mudança. E meu público, graças a Deus, empreteceu muito; estamos indo mais ao teatro. Tenho mais trabalho hoje, aos 67 anos, do que tinha aos 40. É porque o mercado do audiovisual, agora, considera mais a mim e a muitos dos meus pares. Havia, antes, um pensamento atrasado do produtor de elenco também — tudo cheio de brancos o tempo inteiro, em todas as funções importantes”, argumenta. 

Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato – O que o público pode esperar do espetáculo O princípio do mundo?

Elisa Lucinda – Essa peça, do ponto de vista dramatúrgico, caminha sobre um fundamento muito importante, que é o nosso extravio. Nós temos uma orfandade. O mundo ocidental é órfão da natureza e dos ensinamentos que poderíamos ter dos povos originários sobre o cuidado com o ambiente. Não existe a palavra meio ambiente nem natureza para o indígena, porque ele é a natureza. Não tem essa separação.

Esse conhecimento do vento que entrou, do vento que vai entrar, do tipo de peixe que aparece no rio quando esse vento entra, etc, nós não temos. É como se a gente estivesse às cegas nesse mundo.

E, o pior, a gente caminha, por causa do patriarcado, em uma ação bélica e predatória. Você lembra quando houve o lockdown por causa da covid-19? Apareceram golfinhos, baleias, com a nossa pequena ausência. Os mares e os rios ganharam saúde sem a nossa ação direta e predatória. A nossa presença no mundo é predatória. 

Tirar o petróleo, por exemplo, do jeito que a gente tira, é de uma irresponsabilidade em relação ao funcionamento da Terra. É como se a gente fosse inimigo de nós mesmos sem saber, porque com isso a gente se acaba também.

Então, a peça vai na contramão disso e parte do princípio matriarcal, que é um princípio da arte do cuidado. Toda a educação feminina é de cuidar: cuidar da casa, do irmão, dos pais, da família, do marido, do namorado. Ela é educada para cuidar e é criticada quando não sabe cuidar. Pode não saber? Não, não pode não saber cozinhar, porque ela tem obrigação de cuidar. 

Isso virou uma opressão, mas, na verdade, deveria ser uma política do mundo: a ética do cuidar. E eu estou encarnada em uma personagem que a gente chamou de “a mãe do mundo”. Nós fazemos várias personagens, mas a principal é a mãe do mundo. Ela começa a peça contando como criou a primeira criatura.

O menino que faz o meu filho de leite é um menino branco. Um grande jovem ator, meu afilhado, que foi criado por uma aldeia educativa, menino de ouro. Tudo o que ele foi fazendo na peça é porque ele foi ganhando com a sua habilidade. Ele é um artista.

Na primeira aparição dele — vou dar um spoiler — ele fala: “Mãe.” E ela, então, diz: “Ué, deu errado. Ah, o primeiro menino que eu fiz era preto, o que houve?”. Ele fala: “Eu sou seu filho.” Ela fala: “Puta que pariu.” Ele diz: “Tem mais filhos lá fora, a senhora ainda não viu?”. Então a plateia se transforma nos filhos dela. A plateia são os filhos dela; mostra para ela a filharada que vai ter que amamentar.

Essa metodologia de envolvimento da plateia também tem a ver com o fato de que quem tem acesso à cultura hoje no Brasil, infelizmente, ainda é uma população majoritariamente branca?

Pois é, mas grande coisa está acontecendo, estamos num eixo de mudança. E meu público, graças a Deus, empreteceu muito; estamos indo mais ao teatro. Nesse espetáculo, a narrativa é outra. 

Estamos contando a história que a gente acha que tem que ser contada. Tem o indígena conversando com o colonizador, o primeiro encontro. Tem um ator grego conversando com uma contadora de histórias africana, uma artista africana.

Eu não quero tirar o gosto do espectador. A peça é cheia de surpresas. As pessoas dizem, quando acaba a peça, que se sentem imersas em uma experiência amorosa — dá muita vontade de fazer uma cultura antibélica.

A gente fala desse menino que eu estou criando; é um menino em construção, branco. Eu falo: “Filho, não seja mais um branco traidor. Honre o leite dessa África que te amamentou.” E a peça toda é rimada, tudo verso. Foi tudo escrito em diálogos rimados.

Sou muito humilde. Sim. Mas é pouca gente que trabalhou assim. Tivemos João Cabral de Melo Neto, com Morte e Vida Severina, Chico Buarque, com Gota d’Água, e Shakespeare. As pessoas têm medo de trabalhar com poesia também. Eu me garanto porque é minha vida a vida inteira.

Quem for ver a peça terá a oportunidade de ver um adolescente no palco brilhando e uma relação amorosa com esse adolescente, acolhedora. Não essa coisa bélica que se transformou com essa geração Z. A peça faz um chamado para nossa reconexão, como se dissesse: “O futuro é ancestral. Fica ligado que não haverá outra solução”.

Mas tem graça, tem humor, tem muita beleza. É um jeito de encantar para contar a história. 

O quanto o “empretecimento” da arte e do público tem relação com as políticas públicas e com as lutas dos artistas negros?

Eu acho que todo mundo que é branco — e eu não estou falando só da cor, estou falando da cabeça ainda aprisionada ao conceito de branquitude, uma cabeça colonizadora — tem que buscar esse letramento. 

Não há outro jeito, senão corre o risco de pagar mico. Hoje, ainda se pergunta: “o que é Kemet?”. Eu vou te dizer: é o nome original. Que quer dizer Terra Preta, o nome original do Egito. Daqui a pouco todo mundo ficará sabendo. Tudo que nos foi negado está sendo contado. A história real está sendo contada.

Você já reparou que quando a gente vai estudar Grécia, os deuses gregos, de repente aparece uma Nefertiti ali no meio? Meio que se confunde com o Egito. Já reparou? O Ocidente não aceitou o Egito negro como grande contribuidor para o primeiro lampejo da civilização.

Já ouviu falar que as pirâmides foram feitas por extraterrestres? Eu acho isso o cúmulo do apagamento. É como se dissessem: “Eles não são capazes.” Uma amiga minha que mora em Portugal, casada, namorava um intelectual de Portugal. Um dia ela se separou dele, falou que era um narcisista. Ela me contou: “Elisa, esse cara dizia que você não escreveu os livros que disse ter escrito.” É muito doido.

No micro, o indivíduo diz isso de mim. No macro, inventam que foi um extraterrestre. Quando não sabem explicar, atribuem a algo externo, e fazem isso com as construções da América Latina: tudo que não sabem explicar e que é de alta tecnologia feito por povos originários, dizem que foi extraterrestre. Nunca há essa narrativa quando é a criação de um software — uma criação branca.

É só para a gente ficar de olho, porque é imensa a quantidade de coisas que estamos passando. Por causa das políticas públicas, mudamos o rumo da história. O Lula (PT), quando criou o ProUni e o sistema de cotas, abriu possibilidades. Agora tem também o Pé de Meia. 

Com os pretos entrando nas universidades, a próxima geração, 10, 15, 20 anos depois — que é o que está acontecendo agora — temos diretoras de cinema como Glenda Nicácio, fruto da política pública, premiadíssima. Temos editores, fotógrafos, figurinistas, roteiristas.

A novela Vai na Fé tinha três roteiristas pretos. Todos os três, Renata Sofia, Pedro Alvarenga e Fabrício Santiago — gosto de dizer os nomes — foram os primeiros universitários de suas famílias. Isso é uma mudança real no funcionamento da sociedade. O que nos diferencia é oportunidade. Minhas amigas brancas da minha geração estão todas ricas.

Minha conversa é igualzinha à de Viola Davis. Apesar de as contas serem diferentes, Viola reclama que Meryl Streep tem 800 mil vezes mais oportunidades de dinheiro do que ela. 

Agora, acho que estamos colhendo frutos da própria luta. Teve gente que morreu — grandes atrizes morreram querendo papéis grandes. Léa Garcia, fizeram, mas não fizeram à altura de sua carreira. Curtí de Souza nunca foi protagonista, mesmo quando era jovem. E não tem a ver com mérito. Jovens fracas brancas foram protagonistas por muito tempo. Não tem nada a ver.

Outro dia, uma menina branca me disse: “Vocês falam como se os brancos não sofressem.” Eu respondi: “Não, os brancos sofrem. O que não acontece é que a cor branca dificulta a vida deles.” Essa é a diferença. Eu não sei quantos empregos eu perdi porque fui julgada pela minha estética antes. Eu e milhões de negros que conheço.

Então, eu estou comemorando poder dizer o que a gente diz na peça. Agora existe um público educado também para ouvir. A sociedade amadureceu. Por exemplo, não é só Thaís Araújo que fez Xica da Silva. Antes não tínhamos uma negra protagonista e as pessoas diziam “Thais”. Mas agora isso pulverizou: temos Clara Moneke, temos Bárbara Reis. Aumentou. Já não é mais apenas uma, graças a Deus. Avançamos.

Tenho mais trabalho hoje, aos 67 anos, do que tinha aos 40. É porque o mercado do audiovisual, agora, considera a mim e a muitos dos meus pares muito mais. Havia, antes, um pensamento atrasado do produtor de elenco também — tudo cheio de brancos o tempo inteiro, em todas as funções importantes.

A sociedade brasileira assistiu a 200 mil peças de teatro e novelas sem nenhum negro — às vezes havia apenas um na cozinha que não era notado. Agora é outro assunto. Eu conclamo as pessoas que estão nos ouvindo agora a fazer uma educação do olhar.

Vai ao restaurante onde só tem branco? No meu condomínio só tem branco? No clube que frequento só tem branco? Tem que ter olhar para isso. 

Essa peça tem um elogio ao homem doce. Essa construção da masculinidade violenta passa como um trator sobre o homem doce. Eu conheci e conheço homens doces maravilhosos que não puderam ser doces porque eram chamados de ‘viado’. 

Inclusive, muitos não eram, mas poderiam ser também. Aliás, eu conheço mais homens homossexuais doces do que homens heterossexuais doces. Faz falta essa doçura dos homens.

Você pode ler algum escrito seu?

Eu quero falar o começo da peça, que é como a mãe — essa mãe do mundo — fez a criatura. Isso é um poema. 

“Meu ventre é fogo, terra, céu, água, firmamento, força, saberes e calma. Tenho a paciência do universo. Sou filha de tempo. Da minha essência, que nasce a ventania da mudança e do meu mais alto sonho, moldei a primeira criatura gerada na lira da esperança. Das belezas da natureza, fiz os olhos e as lágrimas para as alegrias e para as tristezas. Dos perfumes das flores, das ervas e das matas, o que eu fiz? O nariz, com sua respiração, seu sopro. Da música de todos os ventos, fiz os ouvidos e a boca eu também fiz. Desenhei nela um portal de palavras, com seu canto, seu encanto, suas interjeições, as condimentações, os paladares e o repertório da língua, do doce ao amargoso.”

Conversa Bem Viver

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