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Esta coluna é coordenada por Barbara Pires, Bruno Vieira Borges, Mariane Pisani e Michel de Paula Soares. Debatemos diferentes temas sociais a partir e por meio dos esportes, sempre com uma perspec...ver mais

O Mundial de Clubes da Fifa e o terror migratório de Trump

Enquanto Los Angeles habita entre o toque de recolher e os protestos com muita repressão, celebramos uma paixão que unifica culturas e times ao redor do mundo

por Barbara Gomes Pires

Começa neste sábado, nos Estados Unidos, a nova empreitada da Fifa: o Mundial de Clubes. Com a presença de 32 clubes representantes das seis confederações continentais, incluindo 4 equipes brasileiras (Botafogo, Flamengo, Fluminense e Palmeiras), o torneio representa a maior edição da história do campeonato, carregando a promessa de globalização massificada e espetacularizada do futebol masculino de alto rendimento na terra do “soccer”. Mas essa festa futebolística, que foi anunciada como um super mundial a ser organizado de quatro em quatro anos, espelhando a Copa do Mundo de seleções nacionais, contrasta com a tensão e o horror que se espalha pelas ruas de Los Angeles – entre outras cidades estadunidenses – em meio ao endurecimento das políticas migratórias do governo de Donald Trump.

Após ser reeleito para um segundo mandato no fim de 2024, Trump retomou com ainda mais vigor uma promessa de campanha, a de implementar a maior deportação em massa da história dos Estados Unidos. Já nos primeiros meses de 2025, por meio de ordens executivas, seu governo endureceu as políticas migratórias, promovendo mudanças normativas e operacionais que permitiram ao Serviço de Imigração e Alfândega (ICE) conduzir batidas e detenções com amplitude inédita, especialmente em estados de maioria democrata, como a Califórnia. O ápice dessa política de terror ocorreu há poucos dias, quando uma megaoperação em Los Angeles desencadeou uma onda de protestos com repressões mais violentas.

Enquanto o governo Trump envia fuzileiros navais para conter os protestos na Califórnia, a Fifa promove ingressos promocionais a vinte dólares para universitários com o objetivo de preencher o Hard Rock Stadium, na Flórida, para a estreia entre Inter Miami e Al Ahly. De um lado, encontramos um futebol comercial desenhado para atender os patrocinadores, as federações e os grandes clubes, permeado pelo assombro com a possibilidade do fracasso dessa empreitada futebolística. Do outro lado, uma população repartida entre o público local, que não consome muito o esporte, e os diferentes grupos de imigrantes e turistas que se encontram no conflituoso centro desse terrorismo de Estado, cada vez mais acuados com a possibilidade de prisão, de constrangimento ou até mesmo de evitarem encontros em grupo para assistirem os jogos do evento porque, assim, diminuem as chances de serem alvos das batidas policiais que alimentam essa política de deportação em massa.

A Fifa, que reclama da baixa venda de ingressos, não parece disposta a reconhecer que milhares de torcedores potenciais estão fora dos estádios por medo. Medo de serem parados, constrangidos, detidos e deportados. Acostumada a realizar eventos esportivos em territórios marcados por restrições de direitos e de participação social, como a última Copa do Mundo, realizada em 2022 no Catar, a contrapartida para esse aceno deve ser financeira. Ao mesmo tempo que a entidade diz que os números de venda dos ingressos são muito maiores do que os reportados pela imprensa, promove cortesias e descontos que sustentam o oposto. O preço dos ingressos despenca a cada semana, mas os torcedores não abraçam esse consumo de última hora em meio a um ambiente trumpista de terror e violência.

É nesse limiar que o futebol se revela tanto como espelho dos conflitos e das violências sociais como também como vitrine das gestões corporativas e das realidades locais. É um esporte de apelo global, profundamente incorporado na socialização das práticas de lazer e de esporte do dia a dia, mas seu acesso no contexto dos grandes eventos é marcado por fronteiras, desigualdades e gestões que cedem ao medo e conservadorismo. Em uma Califórnia sitiada por tropas federais e com protestos diários contra as políticas migratórias de Trump, o Mundial da Fifa representa um palco maior do que as disputas entre clubes.

O evento se atualiza como uma vitrine dessas múltiplas tensões. Mas a presença da Guarda Nacional e dos fuzileiros navais, encaminhados nesses últimos dias para atuar ao lado dos agentes de imigração a mando de Trump, não garante a segurança nem da população local nem dos turistas que poderiam visitar a região. Essa presença militarizada nas ruas impõe uma lógica de medo, controle e silenciamento que qualifica regimes autoritários.

Por sua vez, regimes autoritários costumam usar do esporte para amenizar as críticas e arrefecer os conflitos sociais. Não temos como antever se o Mundial de Clubes terá um impacto de “sportswashing” ao limpar positivamente a imagem do atual governo estadunidense ou se poderá ser acessado como um espaço político para a visibilidade dessas disputas e tensões.

Um cenário é certo: as emissoras querem audiência, as marcas desejam engajar suas histórias e narrativas de paixão, os clubes precisam das premiações e do destaque para seus ativos, as confederações e federações trabalham para que tudo ocorra bem, sem solavanco nem mal-estar. Mas e o público? Como os torcedores, especialmente do Sul Global, vão se sentir nesse ambiente de repressão? Mesmo com a baixa procura para os estádios, ainda não sabemos do impacto da audiência ao redor do globo. O que podemos especular é que esse Mundial se configura como um evento-teste para a Copa do Mundo de 2026, que também será organizada nos Estados Unidos, com a participação do Canadá e do México.

Contudo, uma nova lista de restrições migratórias foi promulgada recentemente, e nações como o Irã, a primeira equipe da Ásia a se classificar para a próxima Copa, encontra-se na relação de 12 países que Trump baniu de entrar completamente nos Estados Unidos. Ele abriu uma exceção para os atletas e os funcionários das seleções, mas não para os torcedores. Essas ações governamentais podem ser percebidas como movimentos geopolíticos e ideológicos que acionam os mercados e as visibilidades dos eventos esportivos de nível internacional a fim de reforçar suas narrativas internas e políticas locais.

O Mundial de Clubes, em vez de celebrar a pluralidade do futebol global, transforma-se em uma vitrine do terror migratório trumpista e da exclusão velada desses modelos mercadológicos do futebol de alto rendimento. Nos últimos dias, um informe atrelado à política do Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos afirmou que o ICE e a agência federal de Alfândega e Proteção de Fronteiras (CBP), que também é responsável pela regulamentação e fiscalização migratória do país, estarão com agentes presentes no jogo de abertura do Mundial de Clubes para “oferecer segurança”.

Como efeito desses desdobramentos oficiais cada vez mais restritivos e violentos, questiona-se a realização de um evento desta magnitude e a expectativa estadunidense de convidar o mundo para a Copa do Mundo de 2026 e, logo em seguida, para os Jogos Olímpicos de 2028, organizado justamente pela cidade de Los Angeles. A resposta pública sobre essa sistemática violação de direitos já se desenrola fora do campo e vai muito além do primeiro pontapé na bola durante a partida de sábado.

Enquanto Los Angeles habita entre o toque de recolher e os protestos com muita repressão, celebramos uma paixão que unifica culturas e times ao redor do mundo. É por isso que precisamos aprender a consumir, torcer e viver essa enorme paixão sem silenciar diante da violência e da exclusão que, muitas vezes, incorpora o pertencimento esportivo como forma de abafar protestos e transformações sociais.

O campo de jogo não está separado das ruas onde se protesta. A apreensão em Los Angeles é sintoma do esgotamento de um modelo esportivo que privilegia o lucro e a audiência em detrimento da dignidade e do jogo mais inclusivo. Assim, arquibancadas esvaziadas no Mundial de Clubes não são apenas uma consequência dos preços do ingresso ou do desinteresse da população local, mas também representam um reflexo do medo que se espalha pelos complexos esportivos, pelas ruas e pelas casas nas cidades dos Estados Unidos.

O futebol é sempre uma experiência coletiva e política. Não há placar, premiação ou troféu que compense ignorar, em meio aos gritos e às festas da torcida para ver seu time jogar, os gritos e os prantos das famílias que estão sendo destruídas por uma política migratória de supremacia racial. Com a véspera desse evento futebolístico que essa celebração possa, ao menos, abrir um espaço de visibilidade contra o silenciamento do terror e que fortaleça o protesto de populações imigrantes e marginalizadas por uma vida sem medo, mais justa e com dignidade.

*Barbara Gomes Pires é antropóloga, atualmente pesquisadora de pós-doutorado em Antropologia Social, no Museu Nacional (UFRJ). Estuda regulações esportivas para a categoria feminina. Atuou em duas consultorias para a ONU Mulheres Brasil, utilizando o esporte como motor de transformação social e promoção da igualdade de gênero.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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