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O Estrangeiro

Primeiros 100 dias de Trump são coerentes com projeto supremacista dos EUA, diz José Arbex

Programa discutiu motivações e consequências das medidas adotadas pelos EUA no período

Para o jornalista e professor da PUC-SP José Arbex, os 100 primeiros dias do segundo mandato do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, não representam um fracasso administrativo, apesar da baixa popularidade, mas sim a execução meticulosa de um projeto autoritário, com traços supremacistas, sustentado por uma parcela significativa da elite estadunidense. Marcado por ataques à Suprema Corte, ofensiva contra imigrantes e confronto com a China, esse projeto expressa, na avaliação do professor, uma reação à perda da hegemonia global dos EUA.

“Trump está sendo coerente com uma visão que afirma que os Estados Unidos são a potência máxima, com poder incontrastável, que não devem se submeter a normas internacionais. […] Essa é a visão de Trump, sustentada por uma parcela da burguesia dos Estados Unidos”, afirmou Arbex, em entrevista ao podcast O Estrangeiro, do Brasil de Fato. Para o professor, o presidente está reativando a doutrina do “destino manifesto”, ideia segundo a qual os EUA seriam predestinados a liderar o mundo, para justificar medidas autoritárias e fortalecer sua base social.

Na prática, isso se expressa em medidas como o desmonte de garantias constitucionais, ameaças de prisão a juízes, ofensiva contra a liberdade de expressão e apelos a um estado de exceção. “Trump está destruindo o equilíbrio que caracterizou os 200 anos de história dos EUA, lançando as bases para um governo autoritário, ditatorial. Não importa se as políticas de tarifas e de deportações vão funcionar; o que interessa para ele é afrontar as instituições, acumular poderes excepcionais nas próprias mãos e dizer que está fazendo tudo isso para ‘salvar o país’. Por isso que eu digo que ele é coerente”, disse Arbex.

Conflito com a China e crise da hegemonia

Outro eixo da análise de Arbex é o enfrentamento com a China. Segundo ele, a ascensão da Nova Rota da Seda, iniciativa chinesa para conectar a Eurásia e expandir sua influência econômica, colocou em xeque o domínio geopolítico e financeiro dos EUA. “A China está capturando os mercados daquilo que os Estados Unidos consideram o seu ‘quintal’. Isso é a posição de um império que está perdendo a hegemonia no planeta. O Trump vem como reação a essa perda de hegemonia, ele não pode tolerar isso”, avalia.

Essa reação, afirma Arbex, explica o discurso protecionista de Trump, as tarifas de importação e o ataque às cadeias globais de produção. Ainda que as medidas sejam ineficazes do ponto de vista econômico, elas cumprem a função simbólica de mobilizar uma base nacionalista e trabalhadora, afetada pela globalização.

“Para os trabalhadores dos EUA, o discurso é: ‘Vocês estão desempregados, com salários baixos, em uma situação difícil porque a China está tomando seus empregos. As empresas dos EUA estão indo para outros países devido à política do [ex-presidente Joe] Biden e dos democratas. Vamos acabar com isso.’ Foi com essa promessa que muitos votaram em Trump. O Trump sabe que isso não é possível, mas não interessa”, explica.

O professor destaca ainda o temor da Casa Branca diante da ameaça de que o dólar deixe de ser a principal moeda internacional. “O próprio Trump disse que perder o dólar como moeda referência seria equivalente a perder uma guerra mundial”.

Efeitos econômicos e diplomáticos na América Latina

A política migratória de Trump também tem gerado impactos econômicos e diplomáticos. Segundo Lorenzo Santiago, correspondente do Brasil de Fato em Caracas, mais de 3 mil venezuelanos foram deportados dos EUA nos primeiros 100 dias do segundo mandato de Trump. A medida se insere em um contexto de crescente pressão econômica e política sobre a Venezuela, com sanções reforçadas e bloqueios comerciais.

“O governo venezuelano apostava que Trump teria uma postura mais pragmática e dependente do petróleo venezuelano, mas isso não aconteceu. […] A Casa Branca passou por cima disso, e não só manteve, como aumentou o bloqueio”, relata Santiago. O governo dos EUA avisou que até 27 de maio a Chevron, principal petroleira estadunidense que atua na Venezuela e uma das principais exportadoras de petróleo venezuelano, deve encerrar suas operações no país.

A Chevron era vista como um ponto de contato entre os dois países, por manter uma licença especial para operar mesmo em meio às sanções. A possível saída da empresa representa um duro golpe à economia venezuelana, que depende das exportações de petróleo. “A empresa tinha renovação automática a cada seis meses. Com o déficit e a necessidade dos Estados Unidos de importar petróleo, até ela entrou nesse jogo das sanções de Trump. A Venezuela está muito preocupada com o futuro das relações econômicas, principalmente com a entrada de dólares no país diante desse nível de bloqueio”, explica o correspondente.

Além disso, Santiago destaca que parte das deportações foi justificada pelos EUA com acusações de envolvimento de venezuelanos no grupo criminoso Trem de Aragua. Contudo, segundo familiares ouvidos pelo jornalista, muitos dos 252 detidos em El Salvador trabalhavam em atividades legais, como produção musical e entregas por aplicativo. A falta de provas, de acordo com ele, gerou um novo conflito diplomático entre os dois países.

O governo Maduro até tentou retomar o diálogo, propondo uma “agenda zero” com os EUA, mas o correspondente avalia que ficou evidente a assimetria da relação.“Isso não se concretizou. Os EUA impuseram uma agenda para a Venezuela, que não teve cartas fortes para jogar e acabou aceitando a política dos EUA. Dentro disso, encamparam também a questão dos deportados, dizendo que parte dessas deportações fazem parte do ‘Volta à Pátria’, um plano do governo venezuelano desde 2018 para o retorno de milhares de imigrantes que saíram do país pela crise econômica.”

Risco de guerra civil

Na leitura de José Arbex, os EUA estão mergulhando em um processo de polarização extrema, com o crescimento de milícias armadas e conflitos raciais nas ruas. “Há confrontos nas ruas entre nazistas, hispânicos e imigrantes. O país está caminhando para um processo de guerra civil. Isso não é uma brincadeira”, alerta.

Em meio ao caos, Trump se apresenta como o único capaz de restaurar a ordem, mas nos termos de um regime autoritário. “Não é à toa que ele escolheu como lema, nos primeiros dias do seu governo, uma frase de Napoleão Bonaparte: ‘Aquele que salva o próprio país não comete crime algum’”, conclui.

O podcast O Estrangeiro vai ao ar toda quarta-feira às 11 horas no Spotify e YouTube.

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