Apesar de ter voltado ao poder com apoio massivo de movimentos populares, o terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem decepcionado na agenda da reforma agrária. Em dois anos e quatro meses, o governo federal incorporou apenas 385 mil hectares ao programa, número considerado pífio por especialistas e militantes históricos do tema. A situação contrasta com os próprios governos anteriores do petista: entre 2003 e 2010, Lula destinou cerca de 47 milhões de hectares à reforma agrária.
Em entrevista ao videocast Três por Quatro, do Brasil de Fato, o economista João Pedro Stedile, da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e Yamila Godfarb, doutora em Geografia Humana pela USP e pós-doutoranda em Desenvolvimento Territorial pela Unesp, apontaram entraves estruturais, políticos e econômicos para explicar a estagnação.
Para Stedile, o cenário atual é de “resultados fajutos, medíocres”. “Eles foram eleitos para mudar e não mudou. O Incra continua uma tapera velha, sem recursos, sem funcionário, sem vontade política”, critica. Havia uma expectativa de reversão do desmonte promovido pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que incorporou apenas 2,8 mil hectares ao programa da reforma agrária. Os hectares incorporados pelo governo atual ainda têm sete decretos que somam outros 13 mil hectares.
O economista também aponta como desafio a desproporcionalidade do poder do Congresso Nacional e o peso das emendas parlamentares como obstáculo. “Hoje nós estamos vivendo praticamente um parlamentarismo. Os parlamentares gastam R$ 50 bilhões em emendas que só eles decidem. E o orçamento do Incra é R$ 1 bilhão. É ridícula essa correlação.”
Além disso, ele aponta o agronegócio como “hegemônico na mídia e no Poder Judiciário”. “Todas as noites, aparece no Jornal Nacional que ‘o agro é pop’. Isso vai criando uma hegemonia ideológica. As pessoas passam a achar que o agronegócio resolve os problemas, quando não resolve. […] Commodity não é comida, é só uma mercadoria mundializada”, critica.
Enquanto o agronegócio agride o meio ambiente e a saúde das pessoas com o uso desenfreado de venenos, a reforma agrária seria, na sua visão, a solução: “Só a agricultura familiar pode produzir alimentos saudáveis”.
Terra virou ativo financeiro
A pesquisadora Yamila Godfarb soma ao diagnóstico uma análise do cenário global: “Esse capital financeiro que investia muito no mercado imobiliário nos Estados Unidos migra para o mercado de commodities e de terras no chamado Sul Global. Isso faz com que esse avanço do agronegócio seja ainda mais violento”.
Segundo Godfarb, a terra passou a ser tratada como “ativo financeiro“, o que encareceu os preços e dificultou a aquisição para reforma agrária, mesmo quando há recursos. “A terra em si vira um ativo financeiro. Ela está no portfólio das empresas agora. Então grilam, compram, adquirem terra de algum jeito para colocar no seu portfólio, que aí a sua ação vale mais, e conseguem um empréstimo maior”, explica.
Ela alerta ainda para um cenário de retrocesso dentro dos próprios assentamentos. “Tem uma instrução normativa do governo Bolsonaro que o governo Lula não derrubou, que permite mineração, grandes empreendimentos em área de assentamento. E não conseguimos sentar com o Incra para falar: ‘E aí, o que que fazemos com isso?’”, lamenta.
A expansão da mineração, estimulada sob o discurso de transição energética, também pressiona territórios que deveriam ser protegidos. “Minera aqui, se disputa a área inclusive de assentamento. Na Europa, o que circula são carros elétricos feitos com o lítio daqui”, afirma.
O avanço da reforma agrária também esbarra no aumento da judicialização, ressalta a geógrafa. Ela destaca que, mesmo que o presidente Lula assine diversas desapropriações, essas medidas podem ser travadas se não houver enfrentamento ao que ela chama de um Judiciário “completamente oligárquico”.
Ausência da pauta na esquerda
Para Godfarb, a situação é ainda mais grave porque a própria esquerda institucional abandonou o tema. “A reforma agrária como uma transformação estrutural necessária pro desenvolvimento nacional saiu da agenda da esquerda. […] O plano de governo só vai falar de reforma agrária porque porque tem pressão popular.”
Enquanto isso, dizem os especialistas, a violência no campo segue aumentando. O agronegócio avança sobre territórios indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais. A judicialização das desapropriações trava os processos. E o poder público se mostra cada vez mais ausente.
Stedile alerta: “O agronegócio é cada vez mais agressor do meio ambiente, cada vez mais utiliza o agrotóxico que pega todas as pessoas. […] A pobreza no campo não se resolve. Vai resolver como? Com Bolsa Família? A luta pela reforma agrária terá muitos anos pela frente.”