Injustiça

Há um ano, TRF4 condenava Lula em 2ª instância e abria caminho para prisão política

Juristas consultados pelo Brasil de Fato apresentam argumentos que colocam em xeque a decisão tomada em Porto Alegre

Brasil de Fato | São Paulo |

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Julgamento dos recursos da defesa de Lula no TRF4 de Porto Alegre durou mais de oito horas
Julgamento dos recursos da defesa de Lula no TRF4 de Porto Alegre durou mais de oito horas - Sylvio Sirangelo/TRF4

No dia 24 de janeiro de 2018, o Brasil parou para acompanhar em transmissão ao vivo em rede aberta de televisão o julgamento em segunda instância do recurso apresentado pela defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), sobre a condenação imposta pelo juiz de primeira instância, Sérgio Moro, no caso conhecido como o “triplex do Guarujá”. 

Do lado de fora do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) em Porto Alegre (RS), milhares de apoiadores de Lula acompanhavam a sessão que, pela primeira vez na história do Brasil, poderia levar à prisão um ex-ocupante do Palácio do Planalto. Do lado de dentro, três desembargadores, Leandro Paulsen, Victor Laus e João Gebran Neto, decidiam o destino do senhor de 72 anos que, ao terminar seu segundo mandato em 2010, deixou o governo com mais de 80% de aprovação popular. 

Os três foram unânimes não só ao aceitar os termos da sentença do “juiz de piso”, como se diz no jargão jurídico, como determinaram o aumento da pena de nove anos e seis meses para 12 anos e um mês, abrindo caminho à prisão de Lula.  

"Se a decisão do Moro já é uma decisão, digamos, juridicamente frágil, eu diria que a decisão colegiada foi ainda pior. Pior porque é colegiada. Porque quando uma pessoa erra, se equivoca ou, na pior das hipóteses, deliberadamente, persegue alguém, é uma pessoa só. Mas quando três erram da forma como o TRF4 errou, é ainda mais grave”, opina a jurista Gisele Cittadino. 

Milhares de pessoas acompanharam o julgamento do lado de fora do TRF4. Foto: Agência PT

Segundo Cittadino, apesar de o resultado não haver sido uma surpresa, já que o próprio presidente do TRF4, o desembargador Thompson Flores, havia qualificado a sentença do juiz Moro como “irretocável”, a coincidência na argumentação e na dosimetria da pena levanta suspeitas sobre os objetivos políticos de uma decisão unânime. 

“Se tivesse sido uma decisão por dois a um, ainda que um voto a favor do ex-presidente Lula e dois votos contrários, confirmando a sentença do Sérgio Moro, o ex-presidente Lula teria a possibilidade de apresentar ao próprio TRF4 um recurso que se chama embargos infringentes, que é um recurso que cabe a qualquer pessoa que não tem na segunda instância a sua sentença expedida unanimemente. O que se discutia na época é que se esse voto não fosse unânime, esse prazo para os embargos infringentes talvez não fosse suficiente para que essa condenação em segunda instância se concluísse a tempo de impedir o presidente de participar do processo eleitoral”. 

À época, a defesa do ex-presidente também criticou a velocidade inusual com a que a decisão de Moro chegou ao TRF4. De todas as apelações feitas no âmbito da Lava Jato, o trâmite de Lula foi o mais rápido. Desde a sentença do ex-juiz de primeira instância até a tramitação do recurso em segunda instância passaram 42 dias. Em média, esse percurso na Lava Jato, levou 96 dias. Para alguns juristas essa velocidade pode ter violado o princípio de isonomia.

Fernando Hideo, advogado criminalista, acompanhou com detalhes o julgamento no TRF4 afirma ainda que a dosimetria da pena também suscita suspeitas sobre o caráter político da sentença.“Considerando que o ex-presidente Lula tinha mais de 70 anos no momento da condenação, a prescrição é reduzida pela metade. Se fosse mantida a condenação dos nove anos e seis meses, poderia haver a prescrição, no caso concreto. Mas passando de 12 anos, que muda o marco da prescrição, aí não”. 

À época, outro ex-juiz, agora governador do Maranhão pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Flávio Dino, denunciou a dupla moral da justiça brasileira. Numa rede social, Dino disse acreditar que o aumento da pena buscou evitar a prescrição, como ocorrido no caso de José Serra (PSDB), acusado pelo executivo da JBS Joesley Batista de haver recebido mais de R$ 6 milhões em propina. 

“O aumento da pena de Lula fica mais esquisito quando se nota que o objetivo nítido é evitar prescrição. Mas este critério não consta do Código Penal como legítimo para sustentar dosimetria de pena”, escreveu o governador. 

A defesa do ex-presidente já havia pedido a prescrição da pena original. 

Outro problema apontado por Hideo é a incoerência entre o que foi julgado pelos três desembargadores e o objeto da denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal (MPF), de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Segundo o advogado, os votos se concentraram na defesa corporativista da sentença proferida pelo juiz de primeira instância. 

“O maior problema que eu vejo no julgamento do acórdão, foi a incongruência entre o que foi julgado pelo tribunal e a denúncia. Em um trecho, o relador Gebran fala que o Lula teria sido o chefe de uma suposta quadrilha que indicava cargos em troca de não sei o quê. Mas isso em nenhum momento foi objeto da denúncia”.

A crítica é compartilhada por Cittadino. “Na verdade, o que o TRF4 fez foi dar uma certa consistência à absoluta inconsistência da sentença de Sérgio Moro. Mas ele não agrega nada, não acrescenta nenhum outro argumento. Isso foi o que provocou tanta surpresa para as pessoas da área jurídica”, apontou. 

Moro recompensado

Tantas contradições fizeram com que o caso do “triplex do Guarujá” ficasse marcado como o começo do fim da candidatura do ex-presidente Lula à Presidência da República em 2018. No dia 5 de abril, depois de o Supremo Tribunal Federal negar um pedido de habeas corpus preventivo feito pela defesa do petista, o juiz Sérgio Moro determinou a prisão do ex-mandatário. Dois dias mais tarde, depois de uma longa jornada de mobilização em seu apoio, Lula se apresentou em Curitiba para o cumprimento da pena de 12 anos e um mês de prisão.  

Ainda assim, o Partido dos Trabalhadores (PT) manteve a candidatura de Lula, até que a Justiça Eleitoral decidisse por sua cassação. Até então, o petista era apontado por todas as pesquisas de intenção de voto como favorito para levar o pleito ainda em primeiro turno.

Com Lula fora da disputa, ficou fácil para que o segundo colocado assumisse a dianteira e levasse a melhor. No dia 28 de outubro, Jair Bolsonaro é eleito presidente da República e, em agradecimento, entrega nas mãos de Moro o Ministério da Justiça, com poderes ampliados.  

“O juiz que condenou o presidente à prisão, que determinou a condução coercitiva dele, que vazou áudios da presidenta Dilma interceptados ilegalmente, que conscientemente ou não, voluntariamente ou não, mas que inegavelmente colaborou para a destituição da presidenta Dilma e para o impedimento da candidatura do ex-presidente Lula, esse mesmo juiz, assim que o segundo colocado nas pesquisas assume o governo, se tornou ministro do primeiro escalão. Então isso mostra a perda da aparência que restava da isenção e imparcialidade desse ex-juiz, agora ministro”, critica Hideo. 

Desde a prisão de Lula, outros fatos chamaram a atenção do mundo jurídico e da opinião pública em geral. No domingo, 8 de julho de 2018, o desembargador plantonista do TRF4, Rogério Favretto, determinou a soltura do ex-presidente por identificar vícios na condenação. Naquele dia, uma guerra de liminares foi deflagrada. O juiz Moro teria interferido para impedir a libertação de Lula, contrariando os procedimentos naturais de contestação. O conflito foi resolvido depois que o presidente do TRF4, de maneira monocrática, decidiu por suspender a decisão do colega. 

O STF, corte máxima do país, não escapou à guerra de decisões sobre o caso Lula. No dia 28 de setembro, o ministro Ricardo Lewandowski concedeu uma liminar autorizando o ex-presidente Lula a dar entrevista aos jornalistas Mônica Bérgamo e Florestan Fernandes Júnior, dos veículos Folha de São Paulo e Rede Minas de Televisão, respectivamente. A decisão foi invalidada em seguida pelo presidente da corte, Dias Toffoli. 

Já no dia 19 de dezembro, o ministro Marco Aurélio Mello concedeu outra liminar determinando a liberdade de todos os presos após condenação em segunda instância, em resposta a uma ação movida pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB). A decisão, que poderia beneficiar o ex-presidente Lula, foi imediatamente suspensa, também em ato monocrático, pelo presidente do tribunal. 

Preso há 292 dias, o ex-presidente Lula tem recebido quase 600 visitas, incluindo líderes internacionais, dirigentes de movimentos populares, intelectuais, lideranças religiosas, entre outros diversos referentes da política nacional e internacional. 

Edição: Mauro Ramos