UNIVERSIDADE

Ano perdido? Vestibulandos enfrentam dificuldades para estudar em meio à pandemia

Com o adiamento do Enem para janeiro de 2021, milhares de estudantes têm sonhos frustrados

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Segundo o MEC, 6,1 milhões estudantes se inscreveram no Enem 2020, mas o sonho da universidade ficou mais distante para jovens de baixa renda. - Reprodução MEC

“Está muito difícil, porque eu sinceramente eu não estou conseguindo fazer esse estudo”, o desabafo é da estudante pré-vestibular, Laine Almeida da Silva Prata, de 23 anos, moradora da favela do Borel, no Rio de Janeiro. 

Ela, como muitos jovens do ensino público e de baixa renda, está vendo o sonho de cursar uma universidade pública cada vez mais distante com a pandemia do novo coronavírus. O motivo é que com a mudança das aulas presenciais para on-line, os estudantes não têm conseguido acompanhar os estudos. Impacto este sentido na ponta pelos cursinhos comunitários que oferecem aulas gratuitas para estes alunos.

“É muito diferente, no presencial eu estava ali o tempo todo com foco, motivada, com metas na minha vida. A gente não esperava essa pandemia, hoje em dia eu não consigo. Pra mim é muito decepcionante, porque eu estava com a expectativa muito grande de entrar na universidade nesse final de ano. Agora tenho que esperar mais um ano para esse sonho ser realizado, estarei na faculdade com 25 ou 26 anos, não sei”, conta Almeida.

A estudante foi uma das 60 inscritas no cursinho pré-vestibular Broto na Laje, que oferece aulas gratuitas para favelas na Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro, mas também foi uma das que desistiu de tentar acompanhar as aulas. De acordo com uma das coordenadoras do cursinho, Blenda Paulino, agora apenas seis (10% dos inscritos) acompanham as aulas.

::Exclusão digital e precarização do ensino: as dificuldades da educação à distância::

“O coronavírus só escancarou a nível mundial a desigualdade social, isso no mais extremo. Quando a gente pensa na desigualdade social, passa pela saúde pública, se encontra também o acesso à educação, que é onde estamos nesse momento. De 60 alunos, a gente só tem hoje 6, 7 alunos conseguindo acessar esses materiais”, aponta Paulino.

 


Imagem da turma do cursinho comunitário Broto na Laje antes da pandemia de covid-19. / Broto na Laje

As atividades do cursinho foram adaptadas para as plataformas online na tentativa de continuar o ensino dos alunos. Entre as mudanças, há não só a disponibilidade dos conteúdos, mas, principalmente uma tutoria dos estudos dos alunos, conforme a sua realidade e necessidade. Ainda sim, há dificuldades que ultrapassam a dinâmica pedagógica.

Entre as razões para a desistência, a educadora cita a dificuldade do acesso à internet e a computador, dificuldade com a modalidade a distância, instabilidade emocional e falta de ambiente adequado para estudar, que é o caso de Almeida.

“Hoje a gente está lá no grupo do Broto da Lage, mas é muito difícil participar de uma aula virtual. Eu, por exemplo, não consegui entrar em nenhuma, não pela internet, mas não tenho facilidade para aprender a distância. Aqui em casa é muita gente, cachorro, crianças, não dá para se concentrar, falta espaço para esse ambiente virtual”, relata  ela, que acrescenta que antes acompanhava aulas presenciais no cursinho de segunda a sexta-feira e, inclusive, aos finais de semana.

Embora não seja o caso da jovem carioca, a última pesquisa do TIC Domicílios, do Comitê Gestor da Internet (CGI), aponta que dos 47 milhões de brasileiros que não usam a internet, a maioria está nas áreas urbanas e pertence às classes D e E.

Sonho perdido?

Outro fator levantado por Paulino sobre o “ano perdido”, como ela define, é a desmotivação, o impacto psicológico do distanciamento das aulas e nos sonhos dos estudantes. “Temos um número de alunos que já desistiu de fazer. Como a gente vai pensar esses alunos para os próximos anos? Será que já ficaram desmotivados a fazer o pré-vestibular? É lidar com esses sonhos, quebras de expectativas. Esse ano a gente começou muito pensando: nós vamos polir nossos sonhos, porque é uma realidade coletiva.”

Foi exatamente o que aconteceu com a Laine Almeida: “estava pensando em ir para a área de nutrição. Agora eu fico até me perguntando se é isso mesmo que eu quero? Estou numa fase muito confusa. É muito difícil descrever o sentimento, porque é triste. Eu chegava lá e ficava muito feliz”. 

Ela chegou a se inscrever no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), mas perdeu as expectativas de fazer uma boa prova. De acordo com a pesquisa "Juventude e Pandemia do Coronavírus", divulgada mês passado, a estudante não foi a única. 

Realizado pelo Conselho Nacional da Juventude (Conjuve), Fundação Roberto Marinho, Unesco, Rede Conhecimento Social, Em Movimento, Porvir, Mapa Educação e Visão Mundial, o levantamento aponta que 49% dos jovens entrevistados já pensaram em desistir do Enem, essencial para acessar as universidades públicas federais e programas como ProUni e Fies. 

::Enem, Prouni e práticas integrativas complementares são destaques do Bem Viver::

Foram ouvidos 33.688 jovens de 15 a 29 anos de todo o Brasil - segundo o governo, o Enem 2020 teve 6,1 milhões de inscritos. Além disso, 28% dos entrevistados pensaram em deixar a escola, e 32% afirmam que falta um ambiente tranquilo para estudar em casa. Outros fatores são a instabilidade financeira e emocional.

Problemas financeiros

A preocupação com o sustento, é a realidade de 33% dos entrevistados da pesquisa que tiveram que buscar alguma maneira de complementar renda devido a pandemia e deixar os estudos de lado. Quatro em cada dez participantes da pesquisa reduziram ou perderam renda. Cinco em cada dez mencionam que suas famílias tiveram essa redução.

O Cursinho Livre Dona Leonor, na periferia de Mauá, acabou encerrando as atividades em decorrência da realidade dos alunos. "A  gente parou as atividades pedagógicas voltadas para o conteúdo, está propondo agora círculos de debates e também os outros cursinhos que a gente conversa, estão na mesma questão. Porque os alunos estão passando por várias condições, que são muito mais urgentes, como a questão de alimentação. Por exemplo, o cursinho livre da Sul, que está em uma região até mais vulnerável, os alunos estavam passando por problemas de falta de comida. Não faz sentido você ficar falando de Enem sendo que os alunos não estavam nem com o que comer. Eles estavam fazendo uma ação de cestas básicas para ajudar os alunos", conta a educadora Barbara Menezes.

Outro dado é o impacto emocional deste cenário: sete em cada dez participantes disseram que seu estado piorou por causa da pandemia.

Na cidade de Buri, interior de São Paulo, o jovem Mateus Gonçalves, de 20 anos, compartilha o mesmo sentimento de Almeida e os estudantes. “É muito frustrante, porque até pouco tempo, no ensino médio, eu achava que ia dar tudo certo, ia conseguir uma boa nota. Não consegui nada, dois anos depois, ainda estou na luta. Quando pensei que ia tudo dar certo, chegou essa pandemia”, diz.

Estudante de escola pública, Gonçalves está tentando entrar no curso medicina ou enfermagem há dois anos e frequenta as aulas do cursinho popular Carolina Maria de Jesus, oferecido pela UFSCar Lagoa do Sino, na cidade vizinha Campina do Monte Alegre. Ele tem, no entanto, dificuldades com a modalidade presencial e com o tempo, visto que com a pandemia precisou aumentar o período de trabalho para suprir as demandas de casa.

"Eu sou um tipo de pessoa que gosto muito de perguntar e com a aula a distância eu não consigo ter muito essa interatividade com o professor, fico com vergonha de perguntar e atrapalhar a aula. A minha dificuldade é isso, a questão do horário, de não estar presente. Agora eu moro sozinho, tenho que cuidar das coisas, serviço e estudo, acabou sobrecarregando nessa parte.”

Ele também se inscreveu no Enem e ainda tenta acompanhar as aulas online do cursinho mesmo com as dificuldades. Em sua unidade foram 300 inscritos no início do ano e agora apenas 10 frequentam com mais assiduidade os conteúdos. 

Os dados são do educador, Leonardo Paes Niero, que leciona algumas disciplinas no Carolina Maria de Jesus. Ele também integra a Rede de Cursinhos Populares Podemos+ do Levante Popular da Juventude, que conta com uma atuação em 20 estados do país e com 60 turmas de cursinho. Segundo o levantamento da organização, feito no ano passado, eram 1.500 alunos atendidos, mas agora eles estão recalculando os dados, visto que o cenário nacional é o mesmo sentido por Blenda Paulino, do broto na Laje.

“Aulas remotas são uma realidade distante para estudantes de escola pública, das camadas populares. Os governos estaduais têm construído estratégias de conteúdos virtuais online, mas sabemos que que nossos alunos do cursinho, que também estão na escola pública, têm uma dificuldade tremenda de acompanhamento, seja por acesso à internet ou questões da própria dinâmica da aula”, explica Niero.

Embora a Rede esteja “tocando o barco” e oferecendo aulas online, materiais e acompanhamento para os alunos, ele pontua que efetivamente as aulas do ensino regular não tem efeito nenhum, principalmente, para as camadas populares e são espaço perdidos, apenas para cumprir o calendário escolar.

Adiamento Enem

Diante desta realidade, a saída tanto para os estudantes como para os educadores, Paulino e Niero, é o adiamento para o Enem. A mobilização nacional de estudantes conseguiu o adiamento da prova para o próximo ano, entretanto o Ministério da Educação (MEC) não levou em consideração a enquete feita pelo governo, onde a maioria dos estudantes sugeriu que as provas fossem realizadas em maio do ano que vem, e marcou as provas para 17 e 24 de janeiro de 2021.

Apesar da definição do MEC, os estudantes ainda se mobilizam para adiar a prova. A Rede Podemos Mais e a União Nacional de Estudantes (UNE) defendem que o Enem seja realizado a partir de um ajuste com o retorno do calendário escolar presencial

“O que pedimos é que o Enem seja ajustado com o calendário acadêmico. As aulas vão voltar presencialmente em setembro, ele teria que ter esse intervalo de seis, sete meses e acontecer no meio do ano que vem, não em janeiro”, explica Niero.

"Nós por nós"

O Podemos Mais articulou um mutirão nacional para inscrição no Enem e isenção da taxa da prova para garantia de participação dos estudantes de baixa renda. A iniciativa proveu 1.500 inscrições no exame e agora eles segue com a campanha Estudar para Geral, que tenta viabilizar recursos materiais para estes estudantes.

 


Apesar da falta de apoio do poder público, cursinhos comunitários tentam suprir a demanda de conteúdo com aulas online e de alimentação com doação de cestas básicas. / Rede Podemos +

“É uma campanha de arrecadação financeira e com essas finanças a gente vai comprar livros, apostilas para distribuir para os nossos educandos, tablets, acesso à internet. Para além disso, a gente tem construído as aulas, por mais que tenha uma participação baixa a gente não deixou de construir as aulas e fazer o processo pedagógico”, afirma ele.

Em conjunto com movimentos populares a rede de cursinho também promove ações de solidariedade. Mesma prática utilizada na periferia carioca pelo projeto Broto na Laje, que distribuí cestas básicas para os alunos das comunidades.

“O que a gente tem é a nossa solidariedade para conseguir cestas básicas para doar. O que nós temos hoje é esse quadro da gente fazendo nós por nós”, pontua Paulino.

Laine Almeida e Mateus tentam manter a esperança.“Eu acho que não vou conseguir, mas tento reverter isso. Eu busco pensamentos positivos, tudo vai dar certo. Tenho que manter minha fé extrema até conseguir. Eu sei que está complicado, o mundo está difícil, nós estamos nessa pandemia horrível, mas tudo vai dar certo no final”, encerra o jovem paulista.

Para ajudar a campanha Estudar para Geral, acesse o site:http://www.estudoparageral.com.br/ e para ajudar o Broto na Laje, acesse seu perfil no Instagram @brotanalaje.

Edição: Rodrigo Durão Coelho