ENTREVISTA

"Construir o socialismo na Venezuela é uma demanda", assegura ministro do Trabalho

Ministro Eduardo Piñate relata ações do governo durante a pandemia e reflete sobre o futuro dos venezuelanos

Brasil de Fato | Caracas (Venezuela) |
Em 2018, Eduardo Piñate foi nomeado ministro do Trabalho e, em 2019, organizou o I Congresso Internacional de Trabalhadores na Venezuela - Reprodução

Neste mês de julho, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) realizou seu encontro anual de maneira virtual, com representantes de mais de 50 Estados. O debate se centrou em como será o mundo do trabalho pós-pandemia e nas possibilidades de diminuição dos impactos da crise econômica mundial.

Segundo levantamento do próprio organismo, somente nos três primeiros meses de 2020, foram perdidos 305 milhões de emprego ao redor do mundo, sendo 1/6 nos Estados Unidos. 

Diante desse cenário, o ministro de Relações Exteriores de Cuba, Bruno Rodríguez, e o ministro do Poder Popular para o Processo Social do Trabalho venezuelano, Eduardo Piñate, foram incisivos na denúncia de que a crise já havia sido desatada pelos governos neoliberais da região e que a pandemia da covid-19 teria ressaltado as falências dos sistemas políticos atuais.

Ainda que o regulamento desse encontro da OIT não previa réplica, os representantes da Casa Branca pediram direito de resposta depois das intervenções dos ministros latino-americanos.

Cuba e Venezuela são dois países bloqueados economicamente pelos Estados Unidos e pela União Europeia. Isso se deve, em grande medida, pela orientação política de esquerda de seus governos. Os impactos das sanções, no entanto, são sentidos pelos revolucionários e também pelos opositores em cada país.

Somente na Venezuela, o bloqueio gerou um impacto de cerca de US$ 192 bilhões, de 2016 até 2019. O desfalque econômico é sentido em todos os setores, como no sistema de saúde, a inflação, a intermitência nos serviços de água, luz e, mais recentemente, no abastecimento de combustível.

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Ainda que com debilidades, o governo venezuelano tem sido um exemplo no combate à pandemia do novo coronavírus na região, sendo um dos únicos países que emitiu medidas para proteger os trabalhadores e impedir uma onda de desemprego. 

Além das medidas sanitárias, o Executivo assumiu o pagamento dos salários dos trabalhadores das pequenas e médias empresas por seis meses, abriu incentivos de crédito para a indústria, criou planos emergenciais, emitiu microcrédito para a indústria e agropecuária, buscando manter o país ativo economicamente e abastecido.

O Ministério do Poder Popular para o Processo Social do Trabalho esteve envolvido em parte das medidas aplicadas durante a pandemia. Sob o comando da pasta está Eduardo Piñate, venezuelano natural de Apure, na fronteira com a Colômbia, ele é professor de história e iniciou sua vida política militando na Liga Socialista, organização fundada por Jorge Rodríguez, ex-guerrilheiro e pai dos vice-presidentes Jorge e Delcy Rodríguez.

Hoje, Piñate é secretário executivo do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) e, desde 2018, atua como ministro do Trabalho na Venezuela. 

A reportagem do Brasil de Fato conversou com o ministro para analisar o presente e o futuro da sociedade venezuelano e do processo chavista no país.

Confira a entrevista completa.

Brasil de Fato: Quais são os planos de reativação produtiva durante a pandemia nos quais o Ministério do Trabalho está envolvido?

Eduardo Piñate: Existem vários setores da economia que nunca pararam sua atividade. Nestes, estamos fazendo um processo de reestruturação da produção, principalmente no setor petroleiro, que foi fortemente afetado pelo bloqueio nos últimos anos. Como também a indústria siderúrgica, que há alguns anos passa por um trabalho de recuperação. Nosso papel é, fundamentalmente, de estímulo da organização da classe operária para produzir. 

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Existem cerca de 1,7 milhão de venezuelanos que permaneceram trabalhando em serviços essenciais durante a pandemia. Como o Ministério do Trabalho agiu para garantir que essas pessoas teriam seus direitos laborais garantidos, como transporte e condições sanitárias no local de trabalho? 

Tanto as pessoas que estão trabalhando como as que não estão são protegidas pelo decreto de imobilidade, que impede as demissões até o final deste ano. Além disso, o governo assumiu o pagamento dos salários dos trabalhadores das pequenas e médias empresas privadas, além das bonificações solidárias. 

Ainda que estejamos trabalhando com um número reduzido de trabalhadores, estamos trabalhando. Nunca deixamos de trabalhar, somos um ministério que está presente em todo o país, com os fiscais, as procuradorias, as defensorias, além de todo o sistema de inspeção e seus organismos adscritos.

Estamos muito vigilantes, principalmente no início da pandemia, quando vivemos também uma escassez de gasolina, que afetou a dinâmica nos locais de trabalho. Junto ao Ministério de Alimentação, de Comércio Nacional, a PDVSA [empresa petroleira estatal], a Força Armada Nacional Bolivariana e a Comissão Presidencial de Combate à covid-19, criamos coordenações regionais para garantir o abastecimento de combustível. Tanto para receber a matéria-prima e distribuir o produto final, como para o transporte dos trabalhadores.

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Até o dia 30 de junho, haviam sido registrados 2.163 Conselhos Produtivos de Trabalhadores (CPT) na Venezuela, a grande maioria no setor agroalimentar. Qual a importância da criação dos CPTs e qual o seu papel?

São organizações da classe trabalhadora para assumir a direção do processo de gestão da produção nas empresas. Foram criadas pelo presidente Nicolás Maduro em 2016. Naquele momento, esse foi um instrumento fundamental para combater a guerra econômica, que se expressava no ataque a alimentação, medicamentos e produtos de higiene pessoal.

Você deve se lembrar que naquele ano houve muita propaganda contrarrevolucionária dizendo que aqui não havia nem papel higiênico. Então, o presidente cria os Conselhos Produtivos de Trabalhadores com a intenção de assumir a produção nesses setores. 

Então, em 2018, a Assembleia Nacional Constituinte aprova a lei que regulariza os CPTs. Em agosto do ano passado, realizamos o segundo encontro nacional dos CPTs e foi quando aprovamos o objetivo de expandir a organização dos conselhos em todos os setores da economia do nosso país.

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Com isso, em menos de um ano, passamos de 1.119 a 2.163 Conselhos Produtivos e seguimos desenvolvendo esse plano de expansão, apesar da pandemia da covid-19.

Eu sempre defino os Conselhos Produtivos de Trabalhadores como o equivalente das comunas dentro das empresas. É o espaço de exercício direto de poder pelo povo. E esse poder está respaldado pelo modo de produção socialista, cuja essência é o protagonismo da classe trabalhadora, algo que estamos implementando.

Diferente do esquema de produção burguesa, capitalista, que é vertical e autoritário, esse é um modelo democrático, que horizontaliza dentro da classe operária a direção do processo social do trabalho. Também é respaldado pela criação de corpos de combatentes da classe trabalhadora, o que chamamos de milícia operária.

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Infografia dos CPTs na Venezuela / Arte: Michele Gonçalves/Brasil de Fato

E como funcionam os CPTs?

Dentro dos CPTs, criamos duas instâncias: os Centros de Estudo e Reflexão para a Ação (Cera) e a as Salas de Batalha Produtiva.

Os centros de estudo são conformados por todos os trabalhadores de uma unidade, podem ser dividos por setor produtivo ou por base industrial, quando se trata de uma corporação de grande porte. Debatem os problemas técnicos, deliberam, elaboram propostas e elegem porta-vozes do CPT, que vão à Sala de Batalha Produtiva, onde estão também representantes da gerência da empresa, que é onde se tomam as decisões técnicas do processo produtivo daquela indústria. 

Os Ceras e o Corpo de Combatentes, então para as tarefas de defesa, que se converte em uma Unidade Popular de Defesa Integral, e as empresas se convertem em uma Área de Proteção Popular Integral. Essas são estruturas da defesa territorial da milícia operária. O CPT é a vanguarda política da produção. 

Em maio, houve um reajuste de 60% do salário mínimo na Venezuela, como já é habitual, no Dia do Trabalhador. No entanto, sabemos que também é comum que os comércios e distribuidoras subam os preços dos produtos antes mesmos do aumento ser anunciado, atacando o poder de compra do trabalhador. O que o ministério debate sobre a proteção do valor do salário e do poder de compra do trabalhador? 

Desde o início da revolução, reivindicamos a defesa do salário e dos ingressos das famílias. Aprovamos mais de 50 reajustes salariais, 30 somente pelo presidente Nicolás Maduro, de 2013 para cá, o que também demonstra a agressividade da guerra. 

Nosso trabalho tem sido, primeiro, de vigiar os empregadores para saber se estão cumprindo com o que é estipulado pelo governo nacional. Acompanhamos os debates de convenções coletivas.  

É um trabalho permanente de pensar possibilidades de como adequar os salários a essa situação que estamos vivendo e defender o poder de compra e a capacidade de consumo dos trabalhadores. 

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Em 2016, existiam 5.189 milhões de venezuelanos no setor informal e 1.035 milhão de desempregados, segundo o Ministério do Trabalho. No Brasil, vem sendo retomado com vigor o debate sobre uma renda mínima universal, principalmente por conta da pandemia. Na Venezuela, o governo se responsabilizou pelos trabalhadores formais do setor privado, mas o que é feito para apoiar os informais e desempregados?

Estão sendo atendidos pelo Sistema Pátria, com os bônus sociais. Ainda não começamos a debater com força sobre o ingresso mínimo universal, mas vejo como uma tendência, porque é como podemos responder ao teletrabalho, trabalho 2.0. Vemos novas formas de ataque ao trabalho pelos setores dominantes. Acredito que esse é um debate que devemos fazer.


Depois de cinco anos, a Venezuelana de Alumínio (Venalum) voltará a exportar, graças à gestão dos Conselhos Produtivos de Trabalhadores / Foto: Venalum

Na Venezuela, com a pandemia, um setor que se fortaleceu foi o de serviços de entrega. Começam a surgir os entregadores por aplicativo. Como garantir os direitos trabalhistas nesse novo formato de relações de trabalho e como inseri-los nessas estruturas de organização vinculadas ao ministério, como os CPTs?

Essas novas formas de trabalho que resolvem determinados problemas derivados dessa conjuntura de confinamento, também revelam formas de exploração distintas, de evasão da legislação laboral que existe. Um dos perigos do teletrabalho, trabalho 2.0 e dos entregadores por aplicativo é a flexibilização das leis do trabalho. 

Nós acompanhamos os debates da classe trabalhadora. Acreditamos que essa tarefa é das centrais sindicais. Acredito que há, sim, um debate necessário para pensar na organização desses trabalhadores, ainda quando aqui na Venezuela já temos organizações de motoboys, que inclusive estão representados na Assembleia Nacional Constituinte. 

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Nos dias 8 e 9 de julho, foi celebrada uma cúpula virtual entre os países membro da Organização Internacional do Trabalho para debater as perspectivas para o mundo do trabalho pós-pandemia, você representou a Venezuela. Como o governo bolivariano pretende consolidar suas propostas dentro da OIT?

Primeiro, reafirmamos nossa posição de defesa da Revolução Bolivariana e de exposição das nossas conquistas, que geralmente são invisibilizadas. E, como se tratava da pandemia da covid-19, pude oferecer alguns dados sobre a Venezuela. 

Como a OIT é um organismo tripartite, nós geralmente somos especialmente criticados pelo setor patronal, no nosso caso, representado pelo Fedecâmaras.

Qual o papel do Ministério do Trabalho no processo de diversificação da base econômica venezuelana, principalmente num contexto de crise, agudizada pela pandemia? 

Quando o presidente Nicolás Maduro me empossou, no dia 14 de junho de 2018, ele disse: "Sua tarefa principal é reorganizar a classe trabalhadora e colocá-la à disposição da produção e a reativação econômica do país". 

Isso implica que minha tarefa, neste momento, é o estímulo à organização dos trabalhadores em todos os setores da produção. Estamos lutando para sair de um modelo rentista petroleiro, mas não deixaremos de produzir petróleo. O petróleo deve ser o sustento da economia produtiva. Deve servir como palanque para outros setores estratégicos nesse processo de diversificação da economia. 

A vanguarda é a classe trabalhadora. O que nós aprendemos é que a classe trabalhadora é a vanguarda para construir o socialismo. Na Venezuela já não é mais só uma questão ideológica ou teórica, é uma demanda desse momento. 

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Quais são os maiores desafios para o ano de 2020 para a Revolução Bolivariana? E para os anos seguintes?

No âmbito político, nosso maior desafio é ganhar as eleições para a Assembleia Nacional de maneira contundente. Estamos garantindo um processo democrática com participação aberta de todos os partidos. 

E o desafio estratégico continua sendo elevar a produção e a  independência nacional, e tudo isso está ligado à construção do socialismo bolivariano.

Edição: Vivian Fernandes