RECORTE DE GÊNERO

Artigo | No Brasil, a fome tem rosto de mulher: nordestinas, mães, pretas e pardas

"Imagine um lar em que uma mãe desempregada, preta ou parda, observa seu fogão vazio, sua geladeira vazia"

Brasil de Fato | João Pessoa (PB) |
Mulheres da comunidade Aratu, em João Pessoa, aguardam por alimentos durante ação de solidariedade em 1° de maio de 2021 - Heloisa de Sousa

Quando pensamos na tragédia da fome, as imagens que nos vêm imediatamente à cabeça são de corpos magros e fracos, surrados e envergados pela humilhação que a violência da fome expõe. Entretanto, no Brasil de 2021, quando pensamos nas milhares de pessoas que padecem de insegurança alimentar e nutricional, podemos dar a estes corpos um tipo de rosto: os rostos das mulheres, principalmente as nordestinas, em sua grande maioria mães, pretas e pardas, algumas com crianças de 0 a 3 anos. O grau de aumento da fome inclui os rostos conhecidos, são familiares, vizinhos, conhecidos, ou nós mesmos. É, certamente, alguém que está lendo este artigo. 

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Quem fornece estas informações é o IBGE e o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da covid-19 no Brasil, publicado em 2021 pela Rede PENSSAN. De acordo com o estudo, 52% dos domicílios brasileiros encontram-se em situação de insegurança alimentar e 9% (19,1 milhões de pessoas) em situação de fome, fator que se agrava no meio rural. Com a pandemia de covid-19 assolando o país desde 2020, as regiões Norte e Nordeste apresentaram os maiores índices de perda de emprego, queda na renda familiar, endividamento e cortes nas despesas.   

Os índices de desemprego de mulheres jovens com crianças de até 3 anos chegaram a 54,6% e a taxa de desocupação das mulheres que não moram com crianças nesta faixa etária é de 67,2%. Estes dados são apresentados pelo estudo Estatísticas de Gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil, IBGE (2021). Segundo o mesmo relatório, mulheres pretas ou pardas, com crianças, apresentaram nível de ocupação abaixo de 50%, reforçando o entendimento de que a pobreza e a fome têm um recorte de gênero muito bem delineado e as principais vítimas desta violência sistêmica são as mulheres, notadamente mães pretas e pardas do Brasil, especialmente nordestinas e nortistas. 

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Mulheres desempregadas e famílias passando fome

Segundo pesquisa da Rede PENSSAN, no Nordeste, mais de 7 milhões de pessoas convivem com a fome, outras quase 9,5 milhões de pessoas apresentam insegurança alimentar moderada e ainda quase 23 milhões foram classificadas com grau de insegurança alimentar leve.  Dos responsáveis pelo domicílio entrevistados na região Nordeste, 57,5% são mulheres chefes de família, predominantemente pretas e pardas, destacando a baixa ou nenhuma escolaridade e o alto grau de desocupação, trabalhadoras autônomas ou informais. Este é o maior percentual de mulheres chefes dos lares nas regiões do Brasil. As mulheres nordestinas são as mais afetadas pela insegurança alimentar e a fome na região, ao passo que são, na maioria dos casos, a única fonte de renda da família. 

Para o Inquérito Nacional da Rede PENSSAN, as desigualdades regionais acerca do acesso aos alimentos é o reflexo de muitas outras desigualdades, destacando que o índice da fome no Nordeste é maior para os povos do campo. Em 2020, o índice de insegurança alimentar chegou a 70% no Nordeste, atingindo agricultores, ribeirinhos, quilombolas e indígenas (REDE PENSSAN, 2021). No semiárido, os resultados se apresentam duplamente violentos: a fome vem acompanhada da seca. Segundo a Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), pelo menos ¼ da população passa fome: são pelo menos 3 milhões de pessoas em estado de insegurança alimentar grave, sobretudo durante a pandemia. Em entrevista ao Brasil de Fato, a coordenadora executiva nacional da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), Valquíria Lima, afirma que os números crescentes de pessoas passando fome no semiárido não são reflexos apenas da pandemia, mas também da interrupção de políticas públicas direcionadas ao semiárido.

Para além da pandemia, dificultando a vida das pessoas e ceifando a vida de muitas outras, as medidas tomadas pelo Governo Federal foram no mínimo atrasadas, a maioria ineficientes, sem contar as muitas delas, irresponsáveis e mortais. O contínuo aumento dos preços dos alimentos e da cesta básica (que já atingiu mais de R$ 600,00), segundo estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), a demora na decisão e consequente concessão, além do baixo valor do Auxílio Emergencial, trouxeram e ainda trazem impactos imediatos para parte da população, como o aumento da fome e insegurança alimentar no país.  

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Na maior parte dos dias pode ser que nem tenha nada

Imagine então um lar em que uma mãe desempregada, preta ou parda, observa seu fogão vazio, sua geladeira vazia, enquanto pensa no que vai dar para suas crianças na hora do almoço ou do jantar. Alguns dias têm cuscuz, noutros têm mingau, têm arroz, mas na maior parte dos dias pode ser que nem tenha nada, ou que só tenha porque alguém doou. Multiplique essa mãe e essas crianças por milhares no Brasil, são a maioria no Nordeste e muitas delas estão nas zonas rurais. Estão no meio de uma pandemia e o Auxílio Emergencial não é suficiente para pagar o gás, comprar comida, pagar aluguel, luz, água ou outras despesas essenciais. Muitas delas não tiveram acesso ao Auxílio Emergencial e se tem acesso ao Bolsa Família, ainda não é suficiente na maioria dos casos.  A fome no Brasil, tem rosto de mulher. 

Entretanto, como afirma o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da covid-19 no Brasil, “Embora seriamente impactado pelo alastramento da pandemia da Covid-19, o agravamento da Insegurança Alimentar (IA) no Brasil é parte de um processo que já estava em curso de deterioração das condições de vida de um significativo contingente populacional e do aumento das desigualdades sociais” (REDE PENSSAN, 2021). 


Insegurança alimentar grave (fome) atingiu 9% da população brasileira em 2020 / Miguel Schincariol/AFP

Desmonte de políticas públicas afeta às mulheres

Seguindo a lógica bolsonarista de desmonte de políticas públicas do campo à cidade, que tem afetado diretamente às mulheres, os gastos do governo federal com políticas destinadas às mulheres têm o menor patamar desde 2015. Quem detalha é a Universa, que obteve com exclusividade o levantamento feito pelo Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) em 2020, destacando que em 2021 o investimento tende a ser ainda menor. Durante o Governo Bolsonaro, a Secretaria de Políticas Nacionais para Mulheres foi vinculada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, chefiado por Damares Alves.  

De acordo com o Inesc e Universa, políticas como a Casa da Mulher Brasileira foram o principal alvo dos cortes, recebendo apenas 2,6% da verba autorizada para o ano de 2021. Estes cortes impactam diretamente nos repasses feitos aos estados e aos municípios e, sobretudo, no aumento da violência contra as mulheres durante a pandemia.

É neste ponto que a fome no Brasil assume por completo o rosto de uma mulher, pois, na maioria dos casos, mulheres vítimas de violência doméstica são dependentes econômica e financeiramente de seus agressores, desassistidas pelo Estado e em situação de vulnerabilidade seja pela fome, seja pela violência física ou psicológica.  

Felizmente, um caso que traz esperança a essa triste situação foi desenhado no Ceará: a Câmara Municipal de Fortaleza aprovou no dia 5 de agosto de 2021, o projeto de lei ordinária nº 447/2021, que institui o Aluguel Social Maria da Penha. O Aluguel Social deve conceder valor mensal de R$ 420 às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar por um período de até 12 meses podendo ainda, ser renovado por mais dois anos. O valor é menor do que uma cesta básica, mas pode salvar muitas mulheres fortalezenses de situações degradantes de violência doméstica e da fome. É um começo. Projetos como esses podem ser “copiados”, reformulados e adaptados em diversas esferas governamentais pelo Nordeste. Há que se pressionar.  

Assim, na contramão do Governo Federal, os estados, municípios, organizações e movimentos socioterritoriais e a população organizada vão desenhando as alternativas de combate à insegurança alimentar e fome, além de todas as mazelas sociais que as desencadeiam ou que agravam o que já é desumano. Ainda estamos longe, muito longe de um cenário ideal de luta e combate à fome no Brasil, mas pequenas ações podem nos dar uma perspectiva menos triste do Brasil das mulheres abandonadas, das mães nordestinas pretas e pardas que convivem com a fome, seja no campo ou na cidade.  

 

*Mestranda em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe (IPPRI/UNESP). 

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Fonte: BdF Paraíba

Edição: Heloisa de Sousa