risco de ruptura

Artigo | Rescaldo do 7 de setembro (e dos dias seguintes). E agora?

"Bolsonaro precisava de milhões na rua no 7 de setembro. A oposição também precisa destes milhões, muitos milhões"

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Atos antidemocráticos realizados em 7 de setembro reuniram milhares em apoio a Bolsonaro - Miguel Schincariol / AFP

Um sem-número de metáforas aparecem na qualificação das manifestações bolsonaristas do dia da Independência. “A montanha pariu uma ratazana”, “fiasco”, “tiro no pé”, “passou dos limites” e muitas outras. Não acho. A manifestações bolsonaristas foram maiores do que se previu, embora muito menores do que esperava o energúmeno. No entanto, relativizo estes números em função do day after, do que se passou depois que os manifestantes voltaram para casa, o presidente de helicóptero e avião (pagos pelo contribuinte para que o candidato a ditador promova as suas agressões à democracia), outros nos ônibus contratados por apoiadores endinheirados do democraticida e outros ainda nos seus carrões importados.

Vamos lá. Para não ficar atrás vou criar a minha própria frase de efeito: na briga de viela entre Bolsonaro e a democracia o primeiro round acabou empatado. Ia usar uma metáfora das lutas de box, mas neste esporte existem regras aplicadas por um juiz neutro o que não é o caso neste embate brasileiro atual. No nosso caso não há regras ou, pelo menos, não há regras que sejam respeitadas. Também não há juiz que as aplique, pois esta atribuição (fazer valer a Constituição) depende de dois personagens, Artur Lira e Augusto Aras, que ajudam o liberticida. O STF vem, aos poucos, assumindo a defesa da Constituição e respondendo com galhardia (mas devagar, muito devagar) às pressões sobre os processos abertos contra Bolsonaro, seus seguidores e sua família. Custou a se mexer, mas está em movimento. Mas o STF não pode ter a iniciativa de provocar um processo de crime de responsabilidade; só a PGR (Aras) e o Congresso (Lira) podem fazer isso.


Apoiadores de Jair Bolsonaro invadiram Esplanada dos Ministérios na véspera de 7 de setembro Brasília (Distrito Federal) / Evaristo Sa / AFP

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Por que acho que houve empate? Afinal de contas, Bolsonaro colocou muito mais gente na rua do que os atos da esquerda e da CNBB, numa proporção estimada de três para um. O problema, para Bolsonaro, é que 100 mil em Brasília, 150 mil em São Paulo ou 50 mil no Rio de Janeiro, além de umas missangas aqui e ali, não chegam a superar a maior das manifestações que a esquerda convocou, alcançando 700 mil manifestantes em centenas de cidades, de metrópoles a vilarejos.

Mesmo dividida no dia da Independência, a oposição não fez feio e marcou posição. E Bolsonaro apostava em muito mais. Seus apoiadores gastaram muito dinheiro e mesmo assim os milhões de manifestantes não apareceram. Pior ainda, a expectativa criada por Bolsonaro era de eventos dramáticos, repercutidos nas redes sociais bolsominianas: invasão do STF, paralisação de Brasília com caminhões e tratores fechando a Esplanada e até o fechamento do Congresso. Os mais fanáticos bolsonaristas apostavam que o dia 7 ia ser o dia da tomada do poder e foram vistos incitando a multidão a derrubar as frágeis barreiras colocadas pela tímida (ou cúmplice) polícia do governador Ibaneis.

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Eles esperavam do mito um discurso que levasse a massa ao enfrentamento, primeiro passo para uma escalada que acabaria com uma intervenção das Forças Armadas. Mas o mito miou. Seu discurso foi mais do mesmo e (em Brasília) tão confuso que a mensagem não chegou a ser entendida. Acabou sendo um repeteco: ameaças, promessas, insultos e arreganhos, mas sem a ordem tão esperada: “INVADAM O STF”. Em São Paulo aumentou o tom da agressividade, mas o gesto não acompanhou a palavra. Bolsonaro perdeu um bocado de moral com sua tropa mais aguerrida.

Mas apesar destas frustrações não se pode chamar os mugidos rumorosos do gado de um fiasco total. Neste segundo round tudo depende do efeito secundário das manifestações. Se nada acontecer na rinha de viela o 7 de setembro logo será esquecido e novas provocações ocorrerão enquanto Bolsonaro espera e prepara o caos social, político e institucional que necessita para dar o golpe.


Apoiadores de Bolsonaro em ato antidemocrático realizado em 7 de setembro de 2021 / Miguel Schincariol / AFP

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Pelas declarações do presidente da Câmara nada demais aconteceu. É vida que segue enquanto o fluxo de grana dos orçamentos secretos estiver azeitado. O Procurador Geral da República fez um pronunciamento no plenário do STF em favor da democracia e do cumprimento das leis, mas não fez referência aos ataques à Corte Suprema que lhe concedia a palavra. Ou seja, outro mais do mesmo.

O efeito bumerangue dos desatinos do presidente parece estar centrado na reação de alguns personagens e partidos no Congresso, em particular o PSD de Gilberto Kassab e, talvez, o PSDB, o Cidadania, o MDB e até o PL, que começaram a falar de impeachment. Se estes movimentos se confirmarem a base do Centrão começará a derreter, como ocorreu no caso do ex-presidente Collor. A palavra impeachment começou a circular abertamente nas conversas de deputados e senadores e levou pânico ao núcleo duro do bolsonarismo, deixando o próprio energúmeno sem dormir.

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A carta pedindo “pinico” (expressão em desuso desde os meus tempos de garoto), elaborada por Temer e tremulamente assinada por Bolsonaro é a prova definitiva de que o tresloucado capitão deu, de fato, um tiro no pé e o segundo round o levou para perto do nocaute. O silêncio eloquente dos comandos militares e até dos generais de palácio mostra que a manobra golpista deu xabú. A provocação necessitava de muito mais massa do que a que compareceu aos atos, sobretudo em Brasília.

A base mais combatente do mito, alguns até com fardas de paraquedistas, bem que tentou instigar um ataque às frágeis barreiras da polícia do governador Ibaneis. Mas não rolou. Bolsonaro deve ter avaliado (ou pode ter sido avisado) da falta de apoio da generalada. E fica a grande questão para Bolsonaro: pagar ou não pagar para ver? Mais uma vez ele instigou, mas na hora H ele tirou o seu da reta e não pagou.

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Não pagou para ver, mas pagou politicamente e muito. Os bolsominions estão tentando desesperadamente difundir a narrativa de que foi tudo um golpe de mestre estrategista e que o jogo continua a ser jogado, ou seja, o golpe foi só adiado para uma circunstância mais favorável. Esta explicação não cola, sobretudo para o setor mais combativo dos adoradores do mito, os que se expuseram nas provocações nas estradas e na Esplanada. E nas redes sociais, sob vigilância ameaçadora de Alexandre de Moraes.

Não cola para os que choraram de emoção pelo fake Estado de Sítio (ou seria de Circo?) em vídeos que viralizaram nas redes sociais no mico do ano. O gado pode continuar mugindo por mais tempo, mas uma parte significativa, do setor mais importante para Bolsonaro, os violentos, os armados, vai pensar duas vezes na próxima vez que forem convocados para “ir com tudo” pelo mito e pela pátria. Não foi uma capitulação vergonhosa? Vão contar essa para outro! Já dizia a velha raposa política portuguesa, o ditador Manoel de Oliveira Salazar na sua única frase que ficou na história: “em política, o que parece, é”.


Apoiadores do presidente em Brasília na terça (7), durante o ato antidemocrático promovido pelo grupo no Sete de Setembro / Carl de Souza/AFP

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Outro efeito colateral da relativa modéstia do tamanho das manifestações bolsonaristas e dos arreganhos do presidente é a consolidação do movimento, iniciado antes do 7/9, afastando os “donos do PIB” do governo. Embora alguns setores econômicos ainda se perfilem do lado do presidente, em particular a base dos grandes e médios produtores rurais, o setor que compra destes para processar e/ou vender grãos e carnes no Brasil e no exterior já cortou as amarras. O setor financeiro, sempre tão governista, também já navega em águas de oposição. Todos estes empresários têm pressa em se livrar do mito que elegeram e adularam. Com ele no poder a probabilidade de se forjar a tão almejada “terceira via” fica difícil, senão impossível. Além disso, a deterioração da economia e do próprio governo por mais um ano e pouco provocaria perdas enormes para os investidores.

O sonho de consumo deste setor é o general Mourão no governo e, portanto, o impeachment do presidente. Creio que não há, neste momento, ninguém tão pró impeachment quanto os “donos do PIB”, mais até do que a esquerda que sonha com um Bolsonaro derretido como adversário em outubro de 2022. A subida da Bolsa após a divulgação da carta de capitulação de Bolsonaro levou alguns analistas a dizer que o “mercado” dava um voto de confiança no presidente. Balela. A recuperação da sexta-feira não cobriu as perdas da quarta e da quinta. E é bom lembrar que os movimentos da Bolsa de Valores têm pouco a ver com as tendências dos grandes empresários e investidores.

Como já deixei claro em outros artigos sou dos que acham que Bolsonaro precisa ser detido como uma emergência nacional pela infinidade de desastres, de todos os tamanhos e em todos os setores da vida humana (e animal e vegetal), provocados a cada dia que passa com o energúmeno no poder. Precisamos acelerar o processo de retirada de Bolsonaro e não existem muitos caminhos legais a trilhar.


Sem partidos e movimentos de esquerda atos do MBL contra Bolsonaro ficam esvaziados no Rio e em BH / Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas

O impeachment é um processo longo?

Sem dúvida, mas uma vez aprovada a abertura do processo na Câmara o cujo será afastado e Mourão assume até o caso ser decidido. Muita gente na esquerda acha que Mourão não é mais do que um Bolsonaro menos truculento e, mais ainda, é um autêntico representante do “Partido Militar”. Bolsonaro era para ser apenas o cavalo de Tróia, usado para os militares chegarem ao poder e depois deveria governar sob controle dos generais. Deu mal. O Rocinante tratou os generais do partido militar a patadas e tomou o freio nos dentes. É verdade que contratou 6000 militares, e fez inúmeras barretadas e concedeu incontáveis benesses para este grupo. Mas o poder propriamente dito não ficou com eles e agora ele é um estorvo e até um risco.

Risco de desmoralização das Forças Armadas frente à opinião pública (fenômeno já em curso) e risco ainda maior de perda de controle da própria força armada com a politização dos quartéis e o estímulo à indisciplina por parte do capitão com vocação de Gauleiter. Mourão no governo daria uma chance para o partido militar recuperar espaço, mas o tempo corre contra ele e seus parceiros. Depois de um processo de afastamento de Bolsonaro por atentado às instituições democráticas ficaria muito difícil politicamente o partido militar tentar alguma forma de se manter no governo ou no poder fora dos marcos legais. Neste caso as eleições de 2022 dariam os rumos para o país.

Resumindo: DELENDA EST BOLSONARO (tirado da frase do político romano Catão: “Cartago tem que ser destruída”). Temos que tirá-lo o mais rápido possível. E isto só será possível desequilibrando o jogo que está sendo jogado. Para empurrar Aras e Lira para que liberem o processo de impeachment vai ser preciso que a sociedade se manifeste de tudo quanto é forma, manifestos, abaixo assinados, conferências, panelaços, congressos dos partidos, e tutti quanti. Mas sobretudo o que vai botar Lira e os deputados do Centrão contra a parede vai ser a mobilização das mais amplas massas ameaçando seus redutos eleitorais e a reeleição de seus deputados e senadores no ano que vem.

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Bolsonaro precisava de milhões na rua no 7 de setembro. A oposição também precisa destes milhões, muitos milhões. Até agora sabemos que 65% dos brasileiros e brasileiras com direito a voto são contra Bolsonaro e que 58% são a favor do seu impeachment. Mas também sabemos que a esquerda conseguiu, no máximo, colocar não mais do que 700 mil pessoas nas ruas em centenas de cidades. Depois disso as manifestações convocadas pela esquerda (entenda-se por esquerda, neste caso, a frente Fora Bolsonaro) minguaram um pouco. Ou seja, mesmo que retome as mobilizações a esquerda dificilmente vai dobrar o seu melhor resultado embora seja isto que ela espera. Para derrubar o energúmeno precisamos de muito mais.

Porque os anti-bolsonaristas que não são de esquerda não participaram das manifestações chamadas por esta última? A história mostra que os traumas da maioria com a esquerda, independentemente de serem ou não justificados, ainda são muito recentes. Alegam os petistas que Lula bateria Bolsonaro com 55% dos votos no segundo turno e essa base é o potencial para as convocações anti-bolsonaro. Não me parece que gente que não é de esquerda se sinta confortável em manifestações chamadas e controladas pela esquerda, com suas palavras de ordem e sua estética de camisetas e bandeiras.

A solução vem inspirada no movimento das Diretas Já. Em 1984 as manifestações eram chamadas por entidades “acima do bem e do mal”, não marcadas politicamente como direita ou esquerda, tais como a OAB, ABI, CNBB e SBPC. Todas as outras forças se organizavam em apoio às primeiras e as manifestações não eram controladas por uma ou por outra tendência, mas por acordos entre elas.

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Há várias iniciativas em curso propondo a frente ampla e, felizmente, já parece ser consenso a ideia de que ampla quer dizer AMPLA, isto é, da esquerda até a direita e vice-versa. Sem olho no retrovisor nem cobranças do que cada um fez no verão passado. Ainda há gente com um olho nas eleições do ano que vem e não com os dois olhos postos no afastamento de Bolsonaro e isto pode ser um problema. E ainda existem as desconfianças entre as forças de esquerda, de centro e de direita, levando a disputas sobre a hegemonia nas ruas. Algo como “não vou na sua manifestação para não dar força para a sua corrente (esquerda ou direita)”.

Vai ser difícil juntar água e óleo em uma torrente irresistível para arrastar o energúmeno do poder sem um “biombo” de neutralidade que permita que direita e esquerda se juntem sem conflitos. A questão a ser respondida é: estarão as citadas entidades a altura da sua missão histórica? Serão elas ainda as herdeiras das lideranças das Diretas Já? O futuro do movimento de massas pelo afastamento do candidato a ditador depende da resposta.

*Jean Marc von der Weid é ex-presidente da UNE 69/71, agroecólogo e militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Katia Marko