Entrevista

"Bolsonaro atua em desacordo com oportunidades e desafios mundiais", avalia cientista político

Para Diego Pautasso, o governo Bolsonaro atrasa o posicionamento do país em um mundo sacudido por grandes transformações

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Bolsonaro tem rompido com políticas de Estado e com o padrão diplomático do Itamaraty, aponta cientista político - Evaristo Sa / AFP

Professor convidado do Curso de Especialização em Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o cientista político Diego Pautasso é autor do livro China e Rússia no Pós-Guerra Fria. Também leciona geografia no Colégio Militar de Porto Alegre.

Nesta conversa com Brasil de Fato RS, ele aborda as profundas alterações sofridas no tabuleiro geopolítico mundial com a ascensão da China, a reaproximação entre chineses e russos, as consequências da Guerra ao Terror deflagrada pelos EUA, a vitória do Talibã e o papel do Brasil fragilizado por uma diplomacia equivocada.

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Confira a entrevista:

Brasil de fato RS - Este mês de setembro marca os 20 anos do atentado contra o World Trade Center e a deflagração da “Guerra ao Terror” movida pelo governo George W. Bush. O que classificaria como as maiores transformações vividas pelo mundo desde então? 

Diego Pautasso – A Queda do Muro de Berlim e o colapso do campo soviético representaram a vitória dos EUA na Guerra Fria. Durante os anos 1990, os EUA tentaram sustentar uma unipolaridade sob o signo da imposição da agenda neoliberal. As crises financeiras e a polarização social, bem como a ascensão de novos polos de poder, criaram grandes dificuldades à hegemonia estadunidense, sobretudo após a escalada intervencionista que se seguiu à Guerra Global ao Terror.         

A ascensão da China é irrefreável

Para muitos, os EUA são um império em decadência. Concorda com esta avaliação?

Por vezes, há um pouco de wishful thinking, ou seja, um pensamento mais baseado em crenças e desejos do que em realidade objetiva. Já se anunciou o fim do império com a Guerra do Vietnã, com o fim de Bretton Woods, com os atentados de 11 de Setembro e com a crise do Subprime de 2007-8. 

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Analisando em perspectiva, de fato a unipolaridade dos EUA nos anos 1990 foi efêmera, o mundo está se tornando mais complexo e a ascensão da China é irrefreável. Contudo, basta olhar rapidamente a conjuntura para ver a capacidade de Washington produzir 'regime change', revoluções coloridas, guerras híbridas, etc. 

Agora, não resta dúvida que a competição com a China está cada vez mais indigesta. Ocorre em todos os planos, inclusive em setores estratégicos. E resta evidente que o governo estadunidense está com dificuldade de ofertar alternativas de desenvolvimento e liderança em face da projeção global chinesa.

A percepção desta decadência – apontada na competição econômica internacional com a China, por exemplo – tornou-se mais visível com as cenas trágicas do aeroporto de Cabul e a debandada no Afeganistão. No xadrez da geopolítica mundial, que peças irão se mover com a retirada estadunidense?

Pode-se dizer que há uma espécie de 'metáfora do Afeganistão’. Por um lado, o país representou um ciclo de intervenções militares de vinte anos, guiadas pela visão de uma Guerra Global ao Terror, cujos resultados foram no mínimo erráticos, senão catastróficos. Por outro, a China tem buscado, inclusive sob o novo governo Talibã, engajar o Afeganistão na Nova Rota da Seda, via CECP (Corredor Econômico China-Paquistão) e OCX (Organização de Cooperação de Xangai), promovendo desenvolvimento e estabilidade.


Traçado da nova rota da seda / Reprodução

Pequim tem utilizado o desenvolvimento e a integração regional como os mecanismos decisivos para garantir estabilidade e segurança no seu entorno estratégico. Isto fica evidente quando se observa a maior sinergia na relação ASEAN (Associação das Nações do Sudeste Asiático) – China, cujos desdobramentos incluem a criação da RCEP (Parceria Econômica Regional Ampla). Os EUA, por seu turno, não conseguem dar uma resposta para além da questão securitária, de contenção, cerco e tentativa de interdição das iniciativas chinesas.

O epicentro geoeconômico já se deslocou para a Ásia Central

A ascensão de um governo do Talibã no Afeganistão passa a impressão que a Ásia Central irá se tornar ainda mais instável do que sempre foi. Ou China e Rússia conseguirão pacificar a região com diplomacia e investimentos?

A China e a Rússia têm os mais profundos interesses no Afeganistão. Para a China, a Nova Rota da Seda e, sobretudo, o Xinjiang (região onde a etnia Uigur, de religião islâmica, representa quase a metade da população da província e tem conflitos com Pequim) depende da estabilização regional. A Rússia, cujos interesses se entrelaçam com o território afegão desde o Grande Jogo do século XIX, passando pela ascendência da URSS sobre a Ásia Central e apoio à revolução socialista afegã e culminando, atualmente, na liderança, junto com o governo chinês, sob a Organização para a Cooperação de Xangai.

Que nova realidade na política internacional está sendo definida com a reaproximação entre China e Rússia?

A aproximação sino-russa remonta a meados da década de 1990, quando (Ievguêni) Primakov se torna chanceler russo. Aprofunda-se com o acordo de 2001 e a criação da OCX. De lá para cá, a cooperação tem avançado em diversos níveis, do setor energético até o envolvimento em diversos arranjos diplomáticos, como BRICS e OCX, entre outros. Atualmente, Rússia e China são o núcleo da integração eurasiática, bem como o principal eixo a se contrapor às políticas do hegemon (EUA). Assim, a rivalidade sino-estadunidense é, sem dúvida, o motor das dinâmicas internacionais contemporâneas. 


O cientista político destaca que, apesar da retórica anti-chinesa do governo Bolsonaro, desde 2018 a participação da China só aumentou como destino das exportações brasileiras / Foto: César Xavier

Entramos na terceira década do século 21 com a China ultrapassando os EUA em número de patentes registradas, respondendo por 28% dos produtos manufaturados no mundo, sendo a principal parceira comercial de 130 países e principal locomotiva da economia global. O século 21 será asiático?

Não há dúvida que o epicentro geoeconômico já se deslocou para a Ásia Oriental, depois de cinco séculos de domínio do Atlântico Norte. Isso é mensurável através dos mais variáveis indicadores, de crescimento do PIB até distribuição dos maiores portos do mundo.

Tenho trabalhado com a hipótese da reafirmação de um sistema sinocêntrico como base da integração regional e esta como suporte da projeção global da China. Agora potencializada pela Nova Rota da Seda, uma espécie de projeto chinês de globalização, cujos investimentos estão transformando a realidade regional e assumindo contornos globais. 

É urgente repensar um projeto nacional de desenvolvimento

A China é a grande parceira comercial do Brasil, sendo a principal compradora de minério de ferro, petróleo bruto, carne e cereais. No entanto, contraditoriamente, o governo Bolsonaro mantém uma tensão constante, o que já incluiu agressões diplomáticas, com nosso maior cliente no mercado exterior. O Brasil está perdendo novamente o trem da história?

Apesar da retórica anti-chinesa de eminentes figuras do governo Bolsonaro, desde 2018 a participação da China só aumentou como destino das exportações brasileiras, já superando um terço do total. Tampouco os esforços de alinhamento com Trump foram suficientes para reverter esta tendência. Ao contrário, a participação dos EUA como destino de nossas exportações caiu cerca de 50%. Tal distribuição do comércio exterior brasileiro torna a disjuntiva entre preferências ideológicas do atual governo e vinculação das forças econômicas cada vez mais insustentáveis. Além das declarações do governo não fazerem eco em face dos interesses materiais, amplia-se a pressão dos grupos internos em defesa de seus interesses comerciais.

A questão de fundo, contudo, é outra. É urgente repensar um projeto nacional de desenvolvimento à luz dessas mudanças sistêmicas. O momento é de confusão. Setores da direita seguem um anacrônico projeto neoliberal (parte dela com a cabeça em Miami, ainda que o bolso dependa cada vez mais de Xangai), já desacreditado em grande parte do mundo e, mais recentemente, enterrado pelo gigantesco Plano Biden. Setores da esquerda se digladiam em pautas centradas no reconhecimento, abandonando completamente a visão abrangente da questão nacional. Tudo isso em meio a uma gigantesca mudança sistêmica e civilizacional, obstruindo os avanços necessários para a concretização dos interesses nacionais de longo alcance.

Bolsonaro, nesse sentido, não apenas atua em desacordo com as oportunidades e desafios mundiais. Ele rompe com políticas de Estado e com o padrão diplomático do Itamaraty, cuja permanência atravessou governos dos mais variados matizes. O país, nesse sentido, mais do que nunca precisa se reencontrar consigo mesmo.

 

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Marcelo Ferreira