América Latina

Opinião | Washington dá um tiro político no próprio pé

As más negociações entre os EUA e a Venezuela podem ter um saldo político desfavorável a Joe Biden

|
A Rússia substituiu a Venezuela no mercado energético dos EUA após o embargo do petróleo em 2019.
A Rússia substituiu a Venezuela no mercado energético dos EUA após o embargo do petróleo em 2019. - Foto: Reprodução

Em um intervalo de poucos dias, a Venezuela protagonizou uma série de eventos que, vistos sob um ângulo político, trazem os elementos de um melodrama com uma pitada de comédia. Tudo começou quando um avião decolou em Washington, passou por Miami e foi terminar sua viagem no Aeroporto Internacional de Maiquetía (La Guaira), onde uma delegação de funcionários estadunidenses teria sido recebida pelo governo venezuelano.

A visita, inédita em um contexto de hostilidades e desconexão diplomática foi uma espécie de "esforço" para romper a relação russo-venezuelana, já que, segundo o New York Times, o governo de Nicolás Maduro "poderia começar a ver o Sr. Putin como um aliado cada vez mais fraco".

Além das gargalhadas que um objetivo tão maniqueísta e fora de contexto poderia causar, é preciso chamar atenção à principal motivação do encontro entre altos funcionários do governo Biden e o executivo venezuelano: o comércio de petróleo.

:: OPEP decide aumentar produção de petróleo ::

Em 2019, quando o governo de Donald Trump acirrou o bloqueio financeiro contra a Venezuela na forma de um embargo de energia, roubando a petroleira Citgo e o dinheiro público venezuelano para transferi-los para as mãos de bandidos profissionais (também conhecidos como "governo interino de Guaidó" ou Reserva Federal), os produtos da PDVSA deixaram de ter lugar no mercado norte-americano. E as empresas russas tomaram esse espaço negado à República Bolivariana.

Agora que o governo de Joe Biden decidiu desencadear uma guerra econômico-financeira em larga escala contra a Federação Russa, um conflito que já vinha sendo promovido de forma mais branda desde 2014, os interesses energéticos dos Estados Unidos correm perigo, com a alta inflação doméstica em um momento político crucial (em novembro, há eleições legislativas). Por isso, suas principais autoridades decidiram bater à porta de Caracas.

Na verdade, mais parecia que eles queriam chutá-la: relatórios da Reuters, que devem ser sempre tomados com cautela (assim como outros veículos da anglosfera hegemônica), indicam que "Washington buscou garantias de eleições presidenciais livres; amplas reformas da indústria petrolífera venezuelana para facilitar a produção e exportação de empresas estrangeiras; e a condenação pública do governo à invasão da Ucrânia".

:: Artigo | O que está por trás da expansão da Otan e como isso tem alimentado o clima de guerra ::

Como apontado repetidamente pelo próprio presidente e por um relatório recente do Wall Street Journal, era de se esperar que o governo bolivariano permitisse que empresas estadunidenses e europeias investissem na indústria petrolífera nacional. Mas pensar que a Venezuela seria capaz de ignorar todas as agressões cometidas pelo Ocidente contra os países do Sul Global por anos e dar às costas à Rússia, um aliado estratégico da região, chega a ser risível.

De fato, o governo de Vladimir Putin tem sido fundamental no combate à estratégia de "pressão máxima" do establishment norte-americano, articulando canais de oxigênio para a economia e o comércio venezuelanos na área de influência da Eurásia, como resposta ao bloqueio total mantido por Washington, que inclui o veto ao uso do sistema SWIFT.

A Venezuela não está disposta a cometer um suicídio estratégico e político recusando a cooperação com a Rússia, com quem compartilha os mesmos agressores, seus vizinhos do Norte, e interesses que não têm nada a ver com questões ideológicas, mas sim existenciais.

A ofensiva multilateral dos Estados Unidos contra os dois países fortaleceu os laços que já compartilhávamos, e a solidariedade e o apoio mútuo têm sido uma política estatal recíproca em basicamente todos os cenários de construção multipolar e de crise.

Quanto às "garantias eleitorais", até mesmo a colonizada União Europeia (UE) concorda que os resultados das últimas megaeleições na Venezuela foram legítimos, e ainda destaca o fato de que a disposição representativa da atual liderança do Conselho Nacional Eleitoral (CNE) cumpre as exigências institucionais de qualquer democracia, até as de uma democracia decaída como a dos países europeus ligados aos interesses da OTAN.

Mas a arrogância tragicômica do governo Biden fica ainda mais evidente quando analisamos as figuras enviadas (segundo o Washington Post) ao Palácio de Miraflores.

:: Sandinistas vencem com mais de 70% de apoio na Nicarágua; em resposta, EUA impõem sanções ::

Roger Cartens, ex-tenente-coronel das Forças Especiais do Exército dos EUA, que participou da invasão do Panamá em 1989 (vale lembrar: onde houve mais mortes de civis do que de militares) e atua como negociador de reféns para o Departamento de Estado, esteve antes em Caracas com a intenção de conseguir o lançamento do chamado "6 de Citgo".

Juan González, diretor do Conselho Nacional de Segurança para o Hemisfério Ocidental, que recentemente declarou que as "sanções" contra a Rússia foram projetadas para atingir Cuba, Nicarágua e Venezuela também.

James Story, "embaixador do Ministério das Relações Exteriores dos Estados Unidos para a Venezuela", com sede em Bogotá, um operador político que costuma se reunir em sua residência colombiana com os principais atores do golpe venezuelano para planejar novas ações desestabilizadoras contra a República Bolivariana.

Usar essa cambada de funcionários para formar uma delegação negociadora é um completo desatino se levarmos em conta seus perfis profissionais, ações e declarações recentes, além de sua amargura desatada contra as autoridades venezuelanas. Não é à toa que a mídia de Nova York e Washington preparou o terreno para a reunião, sabendo que as demandas beiravam o radicalismo impositivo.

É provável que uma janela de negociação continue aberta, e tenha como cenário a mesa de diálogo no México em um futuro talvez não tão distante, já que os canais diretos entre os governos dos EUA e da Venezuela foram abertos conforme a fantasia chamada "governo interino de Guaidó” naufragava nas profundezas do oceano político.

:: "Suprema corte" paralela irá processar Guaidó por má gestão do dinheiro público da Venezuela ::

No entanto, as prerrogativas de Washington são hoje inatingíveis, beiram o absurdo e não têm base na realidade geopolítica atual, especialmente se levarmos em conta que a Venezuela rejeita categoricamente a atualização da "Noite dos Cristais" no Ocidente com uma russofobia in extremis que, de certa forma, nós, venezuelanos, já vivenciamos nas áreas de influência dos Estados Unidos.

E, apesar da agressão unilateral, as previsões econômicas de instituições e personalidades que nem remotamente podem ser classificadas como chavistas, como o FMI e a Cepal, anunciam um crescimento positivo do PIB, ou seja, um aumento da capacidade produtiva do país. Certamente não se pode dizer que estamos no caminho certo rumo à independência e à estabilidade econômica, mas as dificuldades estão sendo superadas. Com ou sem cancelamento do embargo petrolífero, com ou sem a admissão de licenças pelo Tesouro.

Afinal, a delegação gringa veio a Caracas, e não o contrário. A bola (política) está no campo norte-americano, embora pareça que eles não querem chutá-la.

Se Biden assinar o decreto que acabaria proibindo a importação de petróleo russo para os Estados Unidos, sem ter acesso a outros mercados energéticos ligados aos seus interesses estratégicos, quem vai pagar (muito) caro são os cidadãos estadunidenses comuns, e é bem possível que o Partido Democrata seja cobrado por isso nas eleições de meio de mandato ("midterm elections"). Nesse sentido, Washington estaria dando um tiro político no próprio pé, abrindo uma ferida profunda em sua economia real, enquanto sua hegemonia unilateral vira pó, ainda que sua hybris permaneça intacta.

As autoridades estadunidenses não têm escolha a não ser cair em um constante estado de excesso, mantendo a coerência em seu comportamento antipolítico, que só encontra analogia na imagem mítica (?) de Nero, que decidiu beber vinho e tocar sua lira enquanto, ao longe, observava as chamas brincarem sobre a cidade de Roma. O imperador é lembrado pela história como um maníaco cegado pela autocomplacência, um traço típico de artistas sem muito talento.