História e Ciência

Brasil tenta erradicar a dengue, mais uma vez; você sabia que o país já conseguiu isso antes?

Tecnologia que usa bactéria natural mostra resultados mais promissores e sustentáveis do que inseticidas do passado

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Imagem do Portal Estudos do Brasil Republicano sobrepõe documento sigiloso sobre a propagação da dengue na década de 1980 à foto de uma pessoa observando uma peça de campanha contra o mosquito - ©Arquivo Nacional

O Brasil acaba de anunciar que vai expandir a capacidade de produção de indivíduos da espécie Aedes aegypti com uma bactéria que impede a propagação da dengue, da zika e da chikungunya.

Há 15 anos, cientistas descobriram que o microrganismo Wolbachia causa esse efeito no mosquito e o melhor, passa de geração em geração, uma vez inserido entre os insetos. Em diversas experiências espalhadas pelo mundo, o método sustentável teve eficácia e segurança comprovadas.

O projeto para transformar a tecnologia em política pública nacional envolve a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a entidade internacional World Mosquito Program (WMP), o Ministério da Saúde (MS) e o Instituto de Biologia Molecular do Paraná (IBMP). 

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Durante o lançamento da ação, especialistas presentes foram unânimes em observar que as medidas conhecidas de combate ao mosquito, no entanto, não perdem a importância com a novidade. 

A história do Brasil mostra que esforços passados funcionaram, mas dependeram dos contextos social e geográfico, de vontade política e de envolvimento da população. 

Além disso, as políticas de combate ao Aedes aegypti, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, eram baseadas na visão de que a única forma de alcançar esse objetivo era a erradicação total do mosquito em áreas continentais, com forte apelo ao uso de inseticidas.

O período é analisado no livro A Guerra Fria chega às Américas: origens, controvérsias e consequências do Programa de Erradicação do Aedes aegypti dos Estados Unidos, do pesquisador Rodrigo Cesar da Silva Magalhães.

Ele conta que, lideradas por uma das grandes potencias do mundo, ações dessa natureza ajudavam a aumentar o poder e a influência sobre outras nações.

O Brasil já tinha histórico consolidado no controle do mosquito, que também era vetor da Febre Amarela, desde a década de 1930. As medidas incluíam a eliminação de focos, a extinção de depósitos de água parada e até mesmo o uso de peixes larvicidas.

A população era obrigada por lei a proteger recipientes como caixas d’água. Mas a falta de combate em países vizinhos era empecilho para a erradicação completa.

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Foi nesse cenário - sob forte influência da visão estadunidense - que o Brasil conseguiu acabar com o Aedes aegypti, em 1955, por meio de uma campanha intercontinental liderada pela Organização Panamericana de Saúde (OPAS). 

A parceria internacional trouxe ao país inseticidas recém-criados, como o DDT. O veneno era aplicado manualmente em reservatórios de água, criadouros e até nas residências das famílias. Hoje, é consenso que o DDT prejudica a saúde humana e causa problemas neurológicos.

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Por causa da aplicação de venenos, a ciência do mundo todo se viu frente também a um problema de ordem ecológica. O desequilíbrio ambiental causado pela eliminação de espécies. 

O que mais deu errado?

Há relatos científicos de que, em alguns países do mundo, os mosquitos se tornaram resistentes a venenos como o DDT. Mas essa não é a única e nem a principal explicação para o retorno do Aedes aegypti ao Brasil. 

Entre as décadas de 1960 e 1970, ele voltou a ser registrado em todas as principais metrópoles brasileiras. O cenário foi impulsionado pelo crescimento desordenado de áreas urbanas, que amplificou as consequências da falta de saneamento básico, coleta de lixo, esgoto e água tratada. 

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Na conta entra também o enfraquecimento das políticas de vigilância epidemiológica e a diminuição de recursos para a Saúde. Relatos do período apontam que estados e municípios tinham dificuldades de conseguir informações com o governo militar. Documentos que falavam sobre a dengue eram considerados sigilosos pela ditadura.

Navios negreiros e pneus contrabandeados

O Aedes aegypti tem origem no continente africano e se espalhou principalmente para a Ásia e Américas por meio do tráfego marítimo. Ele chegou ao Brasil no século 18, provavelmente nas embarcações que transportavam pessoas escravizadas. 

Até metade do século passado, a principal preocupação que ele causava era a febre amarela. As primeiras referências de epidemias de dengue datam de 1916, em São Paulo e 1923, em Niterói (RJ), mas ainda não havia diagnóstico laboratorial. 

Segundo um artigo publicado em 2008 na revista científica Hygeia, sinais de que o problema voltou apareceram no ano de 1967, em Belém, capital do Pará. Um surto de dengue foi registrado, com origem provável em água parada acumulada em pneus contrabandeados.

Em 1977 uma infestação atingiu a capital baiana, Salvador e chegou à cidade do Rio de Janeiro. Em 1981, quase trinta anos após a primeira tentativa de erradicação, uma nova epidemia foi comprovada laboratorialmente em Boa Vista, capital de Roraima. 

Nos anos seguintes, a doença se espalhou pelo Brasil, a atingiu estados de diversas regiões em surtos violentos. Em 1986 ela chegou ao Ceará,  Alagoas,  São  Paulo,  Pernambuco,  Bahia,  Minas Gerais e Mato Grosso do Sul. No ano seguinte o Rio  de  Janeiro, registrou mais  de  um milhão de pessoas infectadas.

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A partir daí, a dengue não deixou mais de ser uma das principais preocupações da saúde pública brasileira. De lá para cá, foram registrados  milhões de casos, com ciclos que têm causado explosões de epidemias a cada quatro anos em média. Nos últimos anos, a arbovirose tem apresentado formas mais graves e o mosquito também passou a transmitir a zika e a chikungunya. 

A solução que usa a bactéria Wolbachia para bloquear o poder de transmissão do inseto tem potencial para reverter esse cenário. Ela representa também um avanço nas descobertas científicas de controle de vetores, sem eliminação de espécies, aplicação de venenos e danos à saúde humana e do planeta. 

Edição: Rodrigo Durão Coelho