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Com mais 380 mil pedidos de visto para os EUA esse ano, Cuba vive crise migratória

Número pedidos de autorização para deixar o país explodiu após retomda parcial das relações com os EUA

Brasil de Fato | Havana (Cuba) |
Vista da embaixada dos Estados Unidos em Havana, capital cubana - Adalberto Roque/AFP

Em coletiva de imprensa realizada no dia 25 de maio, o subsecretário de Política de Fronteiras e Imigração do Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos, Blas Nuñez-Neto, informou que 29 mil cubanos receberam autorização para viajar aos Estados Unidos sob o programa de "parole". A cifra corresponde ao período em que os acordos migratórios entre Cuba e Estados Unidos foram restabelecidos, de janeiro até hoje.

Assim, uma média de 5,8 mil cubanos entraram nos Estados Unidos a cada mês por meio do programa. No entanto, esse número ainda é baixo em comparação com a enorme demanda por autorizações de viagem. De acordo com a CBS News, desde o início do programa até o final de abril, foram registrados mais de 380 mil pedidos de liberdade condicional de cidadãos cubanos.

A questão da migração é um problema recorrente em Cuba desde o início do bloqueio econômico promovido pelos EUA, que já dura 61 anos. As sanções minam a economia da ilha, que acumula um prejuízo calculado pelo governo cubano de 154 bilhões de dólares. Alternativas têm sido contruídas, a exemplo do investimento no setor hoteleiro, mas ainda não são suficientes para liberar o país da pressão estrangeira.

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Atualmente, Cuba está passando por uma grave crise migratória. Estima-se que durante 2022 cerca de 270 mil pessoas deixaram a ilha. A grande maioria sem permissão para entrar nos Estados Unidos, que até janeiro deste ano manteve a política implementada pelo governo Trump de manter fechado o processo de concessão de vistos de imigrante para cidadãos cubanos, fechando escritórios consulares e eliminando voos regulares entre os dois países. Essa política, longe de desestimular a migração, levou a um aumento da saída de cubanos sem documentos.

A retomada dessas operações de visto em janeiro fez parte de um restabelecimento moderado do diálogo entre os dois países. Os EUA se comprometeram a emitir até 30 mil vistos por mês para cubanos, haitianos, venezuelanos e nicaraguenses. Desde a implementação dessa política, 90.913 beneficiários receberam vistos nos primeiros quatro meses, o que representa 75% do limite estabelecido pelas autoridades.

Por trás dos números, histórias de vida

"Vim para a reunificação familiar há cerca de um mês. Essa é a forma mais legal possível no momento. Vim com todos os documentos. No entanto, foi uma odisséia. Mesmo que seja legal, não é fácil, nunca é fácil", diz Cesar Nalberto ao Brasil de Fato.

Atualmente, Nalberto mora na cidade de Hialeah, no estado da Flórida, com seu pai e um de seus irmãos. Há 20 anos, seu pai se mudou para lá para trabalhar. No final de 2016, quando Cesar estava prestes a concluir seus estudos de ensino médio em Havana, ele iniciou os procedimentos para obter um visto de "reunificação familiar".

"Foram muitos dias acordando cedo e indo levar papéis e preencher formulários. Você sempre tem a ansiedade de não saber se vai conseguir o visto ou não", lembra ele. Mas logo após o início do processo, quando Donald Trump assumiu o cargo, ele suspendeu todos os pedidos de visto, processo que só foi restabelecido em janeiro deste ano. Foram necessários mais de seis anos para que ele conseguisse a autorização.

O irmão de Nalberto não conseguiu obter a permissão formal e decidiu atravessar a fronteira sem documentos. "A angústia é enorme, você sabe o quanto é perigoso atravessar assim e sabe que alguém que você ama vai passar vários dias passando por isso. Todos os dias lemos notícias de mortes, acidentes ou até sequestros... só nos resta a angústia e a oração", diz Nalberto com a aflição daquele momento ressurgindo em suas palavras.

Xenofobia

Entretanto, as dificuldades não estão apenas na obtenção da permissão. As crescentes políticas anti-imigração e a xenofobia muitas vezes dificultam a vida depois de estabelecidos.

"Recentemente, o governador aqui na Flórida, chamado [Ron] DeSantis, aprovou leis anti-imigração. Por exemplo, nenhum migrante sem documentos pode ter emprego.  Eles não podem ser tratados em nenhum hospital sem serem denunciados. Nós viemos para cá para trabalhar, para lutar pelo nosso futuro, e eles criaram leis que não nos permitem trabalhar", lamenta Nalberto.

A partir de 1º de julho, a nova lei de imigração da Flórida entrará em vigor. Ela obriga as empresas com 25 ou mais funcionários a informar o status de imigração de seus trabalhadores ao governo. Ela também estabelece um fundo para enviar migrantes sem documentos para outros estados.

Ron DeSantis é o atual governador do estado da Flórida, um dos estados que mais recebe migrantes, em sua maioria latinos. DeSantis é conhecido por suas polêmicas leis de ultradireita e discursos de ódio. Ele foi reeleito como governador pelo partido republicano nas últimas eleições, em novembro passado. Na quarta-feira, 24 de março, DeSantis apresentou oficialmente a documentação para disputar a candidatura à presidência pelo Partido Republicano na próxima eleição. O anúncio foi feito no mesmo dia em uma sessão do Twitter Spaces com Elon Musk.

Razões para a migração

Há muitos motivos pelos quais os cubanos optam por migrar para os EUA. O primeiro é a proximidade do país caribenho com a costa dos EUA. O segundo é que o estado da Flórida já abriga uma enorme comunidade de mais de 1,2 milhão de cubanos ou cubano-americanos. Isso significa que muitas pessoas já têm um membro da família, amigo ou conhecido que facilita sua integração.

Além disso, paradoxalmente, nos EUA há toda uma série de leis que dão aos cubanos uma série de vantagens sobre outros migrantes. Uma das mais importantes é a "Lei de Ajuste Cubano", que permite que os cidadãos da ilha que entrarem nos EUA de forma irregular se tornem residentes permanentes legais após um ano de residência.

"Se pensarmos bem, as pessoas que levam a pior vida em Cuba não são as que migram. Porque as pessoas que vivem pior em Cuba não têm os meios para migrar. Os sentidos da migração também mudaram um pouco. Porque não se trata mais de uma migração puramente econômica como no processo dos anos 90. Sinto que agora há também outras razões, que têm mais a ver com aspirações, ideais e frustrações políticas também", diz ao Brasil de Fato Maura Febles Domínguez, socióloga e pesquisadora do grupo Galfisa no Instituto de Filosofia de Cuba.

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Atualmente, Maura está fazendo seu doutorado na Argentina, onde vive há quase um ano com seu marido e filho. Mesmo assim, ela diz que não consegue imaginar uma vida fora de Cuba e que, uma vez terminadas suas obrigações acadêmicas e profissionais no país sul-americano, gostaria de voltar a Havana.
 
"Nos últimos anos, especialmente após a pandemia, há uma narrativa muito forte de que a única possibilidade de realização pessoal - não sei se é profissional, mas pessoal - é fora de Cuba. Há um imaginário de senso comum muito difundido que pensa assim. E isso tem permeado tudo. A dinâmica familiar, os projetos de vida, a família, as aspirações, nas gerações mais jovens. Acho que o grande desafio é como reverter essa situação. Fazer com que as pessoas voltem a se sentir parte de um projeto e que o sentimento de realização pessoal também esteja presente em Cuba", reflete Fables Domínguez.

Edição: Nicolau Soares