Depoimento

Quem é Liva do Rosa, 'soldado' de Bolsonaro e ex-membro do MST que será escutado por CPI nesta terça (8)

Depois de auxiliar bolsonaristas no sul da Bahia, Liva recebeu seu título de domínio da terra das mãos do ex-presidente

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Liva recebendo seu título de domínio da terra das mãos de Bolsonaro e Nabhan - Foto: Incra

A ala bolsonarista que integra a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do MST na Câmara do Deputados convocou, para esta terça-feira (8), Elivaldo da Silva Costa, ex-membro do movimento, conhecido como Liva do Rosa, em referência ao assentamento Rosa do Prado, no município de Prado, no sul da Bahia.  

Na Câmara, Liva do Rosa deverá prestar depoimento sobre sua saída do movimento e a série de conflitos por terra no sul da Bahia, a partir dos quais o dissidente teria passado a liderar um grupo em oposição aos sem-terra na região.

Liva é um ex-militante do MST que se tornou aliado de Jair Bolsonaro depois de ser acusado pelo movimento de tentar cooptar as famílias que vivem na área, prometendo facilidades para acessar o título das terras onde estão acampadas.

Em 28 de setembro de 2021, Jair Bolsonaro (PL), então presidente da República, entregou o título de domínio (TD) de propriedades rurais para pequenos agricultores de Teixeira de Freitas, na Bahia.

Um dos beneficiados pelo documento fundiário foi Liva do Rosa. Ele recebeu seu título das mãos de Bolsonaro e de seu secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Nabhan Garcia.

Em 2022, Liva utilizou no acampamento Fábio Henrique o método de aterrorizar e cooptar moradores do MST, o mesmo método já testado por ele em outras duas áreas: os assentamentos Jaci Rocha e Rosa do Prado, ambos no município de Prado, no sul do estado.

O Brasil de Fato esteve na região, em janeiro de 2022, colhendo depoimentos e informações, sobre o grupo bolsonarista que agia na região. Entre eles, está Liva.

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Nabhan e Incra

Em outubro de 2019, Liva se proclamou presidente da Associação dos Pequenos Produtores Rurais do assentamento Rosa do Prado, destituindo do cargo sua presidenta eleita, Joceli Rocha dos Santos. A entidade responde formalmente pelo assentamento.

Quase um ano depois, em setembro de 2020, Nabhan Garcia realizou uma visita oficial ao local, representando a Secretaria de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, e procurou Liva para que o acompanhasse na visita, o que acabou respaldando a liderança do ex-integrante do MST perante os demais assentados.

Além do pecuarista, esteve presente na mesma ocasião o presidente do Incra, Geraldo Melo Filho, e o diretor da Câmara de Conciliação Agrária do Incra, João Pedro Ribeiro Sampaio de Arruda Câmara.

Ao chegar ao Rosa do Prado para falar com os assentados, a comitiva do governo Bolsonaro conversou com Liva e ignorou Joceli Rocha dos Santos, a então presidenta da entidade. Diante dos moradores, Garcia discursou:

“Estamos aqui para trabalhar dentro da lei e da ordem, no sentido de proporcionar a segurança que todos merecem. Mas não podemos permitir que os domínios do Estado brasileiro sejam suplantados com a ingerência de quem quer que seja, quando, de fato, a administração do local é de responsabilidade do Incra. Afinal, a gestão dos assentamentos da reforma agrária é única do governo federal e exclusiva da instituição Incra”.

Na frente de Garcia e Melo, Liva celebrou o encontro: “É tudo o que a gente esperava, que o Incra pudesse estar aqui fazendo este trabalho e agora está acontecendo o que a gente espera há muito tempo”.

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No assentamento Rosa do Prado, Liva e Nabhan Garcia (centro da roda) conversam, diante dos moradores do assentamento / Reprodução/Instagram de Liva do Rosa

Destituição da presidenta

Joceli Rocha dos Santos era a presidenta da Associação dos Pequenos Produtores Rurais do assentamento Rosa do Prado. Juridicamente, é ela quem poderia responder pela área ocupada pelo MST. No entanto, em 18 de outubro de 2019, Liva convocou uma assembleia extraordinária para deliberar sobre a destituição da diretoria e uma nova eleição.

Em 27 de outubro de 2019, nove dias depois, a assembleia ocorreu, sem o quórum mínimo exigido e sem a presença da direção. Na ocasião, Liva se autoproclamou o presidente da Associação dos Pequenos Produtores Rurais. Desde então, a área está sob duplo comando, provocando um racha dentro do assentamento.

Liva afirma que a transição foi legal, que 93% do assentamento apoia sua gestão à frente do grupo e que também pode ser destituído, caso não agrade.

Joceli Rocha solicitou à Justiça que reconheça a anulação da assembleia. Na ação, a presidenta da associação anexou oito boletins de ocorrência (BOs) registrados na Delegacia Territorial de Alcobaça, da Polícia Civil, em que assentados relatam ameaças e casos de violência cometidos por Liva e seus comparsas.

Em um dos boletins, com data de 9 de janeiro de 2020, Joceli Rocha afirma que Liva e “seus companheiros” estiveram em seu lote e a ameaçaram, dando um prazo de dois dias para se retirar da presidência da associação e entregar todos os bens da entidade, como maquinários e tratores.

De acordo com sem-terras da região, em entrevista ao Brasil de Fato na época, o grupo liderado por Liva seria responsável por “aterrorizar” os assentados.

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Assentamento sob terror

Relatos de animais torturados, roubo de produção agrícola, homens armados e ameaças são comuns nos boletins de ocorrência registrados por assentados. De acordo com os documentos, o bando, liderado por Liva, abordava os assentados exigindo que abandonassem o MST e apoiassem a nova direção da Associação dos Pequenos Produtores Rurais da Rosa do Prado.

Em um dos casos, um produtor rural do assentamento conta que Liva e o grupo estiveram em seu lote e o ameaçaram. Diante da negativa em abandonar o movimento, passaram a torturar um de seus porcos e cortaram uma de suas orelhas, com o animal ainda vivo.

Versão de Liva

Em contato com o Brasil de Fato em 2022, Liva afirmou que as denúncias teriam sido orquestradas pelo MST para prejudicá-lo. “Não há uma única queixa contra mim de pessoas que não sejam do movimento, é uma forma de tentar me atingir”, argumenta.

O bolsonarista afirmou que seu grupo também registrou “inúmeros boletins” contra o MST. A reportagem solicitou a Liva que enviasse os registros com as denúncias para que fossem publicados.

Quase dois anos depois, Liva nunca enviou os boletins de ocorrência ao Brasil de Fato.

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Acesso privilegiado

Em entrevista ao Brasil de Fato em 2022, Liva negou que tivesse, durante o governo Bolsonaro, acesso privilegiado ao governo federal, ao Ministério da Agricultura, ao Incra ou a Nabham Garcia. “Fui procurado como representante da associação”, argumenta.

Eliane Oliveira, dirigente estadual do MST no sul da Bahia, conta que, desde “meados de 2020”, o Incra e a Secretaria de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura têm dialogado apenas com o grupo dissidente, mostrando aos assentados e acampados que privilegiará os sem-terra que romperem com o MST.

“Nabhan é quem representa o governo. Ele vindo na região, a partir de tudo que Liva já vinha colocando para os assentados e para toda a região, só fez legitimar a posição de Liva. O objetivo é enfraquecer o MST e desarticular suas lideranças”, disse a dirigente em 2022.

Força Nacional

A visita de Nabhan Garcia ocorreu uma semana após o governo federal enviar a Força Nacional para o sul da Bahia, em setembro 2020, sob argumento de que a corporação seria necessária para garantir a segurança das equipes do Incra, durante visita técnica aos assentamentos do MST na região.

O envio da tropa para o território baiano é resultado de um imbróglio que teve início na manhã de 27 de agosto de 2020, quando duas viaturas da Polícia Militar do Estado da Bahia (PM-BA), escoltando um terceiro veículo branco, aproximaram-se da entrada do assentamento Jaci Rocha, do MST, em Prado.

A 100 metros da porteira, os militares foram barrados por assentados que vivem na área e forçados a explicar o objetivo da operação.

“A gente tem um representante do Incra aqui. Libera aqui a passagem. Se afastem. Quando ele estiver subindo, fala com vocês”, pede um dos militares, como mostra um vídeo gravado por membros do movimento.

Quando os assentados solicitaram que os policiais apresentassem um documento que explicasse a operação, ou que o servidor do Incra descesse do veículo para se apresentar, a comitiva recuou e abandonou a área, desistindo de entrar no Jaci Rocha.

Em nota, à época, o Incra informou que o servidor era o superintendente regional do instituto na Bahia, Paulo Emmanuel Macedo de Almeida Alves. “Ele apresentou-se na chegada ao assentamento Jaci Rocha e portava o crachá funcional de identificação”.

Segundo o movimento, o representante do governo federal não desceu do carro em nenhum momento.

Fogo no assentamento

Na noite anterior, dia 26 de agosto de 2020, o casal Aparecida da Silva Souza dos Santos e José Carlos Bispo dos Santos, que foi expulso do assentamento Jaci Rocha no dia 31 de julho de 2019, teria, de acordo com o MST, retornado à área com outras 13 pessoas. Entre eles, estaria Liva. O grupo ateou fogo em suas antigas casas para criminalizar o movimento.

O Brasil de Fato teve acesso à ata da reunião que resultou na exclusão de Santos e Aparecida da área. Os motivos apontados para a expulsão são: não residir com sua família no assentamento, após a conclusão das moradias; ausentar-se por mais de 30 dias do assentamento, sem autorização ou motivo justificado; portar arma de fogo no assentamento; e não comparecer por três dias consecutivos ou por seis dias alternados ao trabalho coletivo.

As razões que não constam na relação da ata, mas que se tornaram preponderantes para a decisão, de acordo com integrantes da direção do movimento, são o envolvimento do casal com o tráfico de drogas no sul da Bahia e o roubo de gado dos produtores rurais da área.

O incêndio nas casas dentro do Jaci Rocha e a operação da Polícia Militar barrada por militantes do MST foi suficiente para que, em 2 de setembro de 2020, o governo federal, após intervenção do então ministro da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça, confirmasse o envio da Força Nacional aos municípios de Prado e Mucuri.

Ação desproporcional da Força Nacional

A decisão surpreendeu o governo da Bahia, que considerou a presença da tropa um excesso, já que o episódio era uma contenda local, que não levava risco à vida dos baianos que vivem no sul do estado.

Em 6 de setembro, Liva procurou a imprensa local para defender o governo Bolsonaro pela decisão apontada como precipitada por especialistas.

“Conseguimos trazer a Força Nacional para atuar em dois assentamentos aqui, no Prado (Rosa do Prado e Jaci Rocha), e em quatro assentamentos em Mucuri”, afirmou Liva.

Contato de Brasília

Na entrevista, o ex-militante do MST admitiu ser o contato do governo Bolsonaro na região e ter trabalhado pela presença da tropa nas áreas do movimento.

“Estamos protestando desde o ano passado [2021], e, de lá para cá, as coisas melhoraram, conseguimos avançar. Estamos em contato com o Ministério da Agricultura, com o presidente do Incra Nacional e algumas forças, inclusive com apoio da imprensa, que vem esclarecendo a verdade”, explicou Liva.

O governo da Bahia foi ao Supremo Tribunal Federal (STF) pedir que a presença das tropas no local fosse suspensa. Duas semanas depois, em 18 de setembro de 2020, o ministro Edson Fachin determinou a retirada da Força Nacional do local.

Edição: Rodrigo Chagas