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Manifestações anti-Israel na Rússia: Putin acusa interferência dos EUA e busca protagonismo em revolta contra o Ocidente

'Rússia quer se colocar como parte do Sul Global, como defensora dos povos se revoltam contra o Ocidente', diz analista

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Captura de um vídeo postado no Telegram em 29 de outubro de 2023 mostra manifestantes na área de pátio de um aeroporto em Makhachkala - Telegram / @askrasul / AFP

A invasão ao aeroporto de Makhachkala, na república russa do Daguestão, em 29 de outubro, gerou um alerta sobre o aumento da instabilidade no país em conexão com a escalada da crise no Oriente Médio. A reação do presidente russo, Vladimir Putin, ao ataque também revela as pretensões geopolíticas de Moscou em meio ao massacre que Israel promove em Gaza

Centenas de pessoas invadiram o aeroporto, em um ataque contra passageiros israelenses que vinham de Tel Aviv. Durante o ataque, os manifestantes chegaram a invadir a pista de pouso e tentaram entrar no avião que vinha de Israel, mas sem sucesso. Dezenas de pessoas ficaram feridas e mais de 80 foram detidos. 

Composto por uma população de 3,1 milhões de pessoas, o Daguestão é uma república russa de maioria muçulmana que fica no norte do Cáucaso.

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Apesar de o incidente não ter escalado para uma tragédia de maiores proporções, o ataque gerou um alerta para um aumento da instabilidade na Rússia como decorrência da crise no Oriente Médio. Também revelou uma fragilidade das forças de segurança locais para controlar a situação.

O jornalista especialista em Oriente Médio, Ruslan Suleimanov, aponta que as autoridades russas não estavam prontas para estes protestos. "Vimos uma reação muito perdida das forças de segurança. Representantes da Guarda Nacional Russa chegaram ao aeroporto somente duas horas após os manifestantes terem conseguido invadir a pista de pouso. Antes disso, eles não tiveram qualquer impedimento", afirma.

Em entrevista ao Brasil de Fato, Suleimanov destaca que o ato em Makhachkala cria um cenário semelhante ao caso da rebelião do Grupo Wagner, em junho deste ano, quando também houve dificuldade do governo russo de assimilar a natureza do protesto. A consequência foi uma reação frágil diante da crise.

"As forças de segurança russas sabem muito bem como lidar com os opositores do regime, com aqueles que se manifestam contra Putin, resolvendo tudo de forma muito simples, com violência, prisões. Mas o que fazer com pessoas que não são contra o Kremlin, como o Grupo Wagner, que em geral é pró-Putin, mas marcharam a Moscou? E como lidar com aqueles no Daguestão que não se manifestaram contra Putin, e até agiram de forma, digamos assim, 'pró-russa'?", argumenta.

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"Harmonia interétnica"

No dia seguinte ao incidente, o presidente russo, Vladimir Putin, convocou uma grande reunião com os chefes dos órgãos de segurança do país para buscar estabilizar a situação. Durante o encontro, ficou nítida a preocupação do líder russo em garantir a ordem constitucional da Rússia, e o que ele chamou de "harmonia interétnica e inter-religiosa" do país.

Enquanto protestos de apoio à Palestina tomam as ruas ao redor do mundo, denunciando o massacre que o governo de extrema-direita de Benjamin Netanyahu promove contra Gaza, os atos no aeroporto de Makhachkala tiveram um perfil bem diferente. Apesar de ter a defesa da Palestina como mote, a aglomeração que se deu no aeroporto foi encarada como uma manifestação abertamente anti-semita.

Além do incidente no aeroporto de Makhachkala, na noite de 29 de outubro desconhecidos chegaram a incendiar um centro cultural judaico em construção em Nalchik, na região de Kabardino-Balkária, outra república que integra a Federação Russa, também no Cáucaso. Os casos geraram uma preocupação sobre o risco do aumento do ódio anti-semita como consequência do massacre que Israel promove na Palestina.

Para o cientista político e diretor do Centro Russo para o Estudos da Turquia, Yuri Mavashev, nos acontecimentos no aeroporto de Makhachkala "o quadro é mais do que angustiante, dado o frágil equilíbrio multirreligioso e multiétnico na Rússia”.

"Observamos um comportamento extremamente atípico dos povos do Norte do Cáucaso e do Daguestão, em particular. Felizmente não houve vítimas, mas é preciso tirar conclusões agora. E estas conclusões devem estar longe do conflito israelense-palestino e da questão do anti-semitismo. Estamos falando principalmente de mudanças no trabalho com a sociedade do Daguestão em diversas áreas", diz Mavashev ao Brasil de Fato.

Segundo o analista, os protestos anti-Israel podem ser encarados como um "ensaio geral" de uma possível perseguição das elites locais das repúblicas a judeus russos, como consequência de um desgaste da interação das regiões do Cáucaso com o poder central de Moscou.

O dilema que se impõe ao Kremlin é buscar garantir a estabilidade e a ordem institucional nas repúblicas federativas do país e ao mesmo tempo sustentar a posição que a Rússia vem adotando de crítica a Israel em meio à crise no Oriente Médio. Para o jornalista Ruslan Suleimanov, "essa onda de anti-semitismo foi espalhada e foi reforçada com a guerra no Oriente Médio".

"Putin adotou uma posição pró-Palestina, criticando abertamente Israel, comparando a situação da Faixa de Gaza com o cerco de Leningrado, que é um tema muito sensível para muitos na Rússia. E então por isso o sentimento anti-Israel na Rússia hoje é muito alto, e não só no Cáucaso do Norte. Então, de uma forma ou de outra, isso é resultado da propaganda que existe a nível oficial", destaca.

Além disso, o Suleimanov aponta que o Daguestão é uma região muito difícil, com um dos mais altos níveis de desemprego na Rússia, há muitas pessoas sem trabalho, há uma ausência de futuro, de perspectiva. "Mesmo em Makhachkala, a maior cidade do Daguestão, existem grandes problemas com fornecimento de água, é comum o desligamento de eletricidade. E essa raiva, esse ódio, foi se acumulando, e a questão judia foi apenas uma possibilidade de liberar essa raiva e ódio", argumenta.

Retórica anti-Ocidente

Ao mesmo tempo, a situação em torno do ataque no aeroporto do Daguestão foi instrumentalizada pelo presidente russo como uma retórica "anti-Ocidente", acusando os EUA de promover a instabilidade no país e traçando paralelos com a guerra na Ucrânia. 

"Estamos conscientes e vemos como a liderança da Ucrânia aplaude os nazistas da Segunda Guerra Mundial, que foram responsáveis ​​pelas vítimas do Holocausto, participaram pessoalmente nestes crimes e hoje, sob a liderança dos seus patronos ocidentais, estão tentando instigar pogroms [perseguições a judeus] na Rússia", disse ele durante a reunião com os órgãos de segurança do país.

"[Os EUA] também enviam recursos financeiros, inclusive para a Ucrânia e o Oriente Médio. Incitam ao ódio na Ucrânia e no Oriente Médio. Sem alcançar resultados no campo de batalha, querem nos dividir, no que concerne à Rússia, para nos enfraquecer por dentro e semear confusão. Eles também não estão satisfeitos com qualquer participação da Rússia na resolução de problemas globais e regionais, incluindo o acordo no Oriente Médio", acrescentou Putin.

A posição russa em relação à guerra que Israel promove em Gaza, manifestando uma posição favorável à Palestina e crítica ao governo de Benjamin Netanyahu, revela uma pretensão de caráter geopolítico, de se colocar como uma liderança de um bloco anti-ocidental.

De acordo com Ruslan Suleimanov, a propaganda russa promove abertamente um paralelo entre Ucrânia e Israel, compara abertamente Netanyahu com Zelensky, e nesse sentido "a Rússia quer se colocar como parte do chamado Sul Global, como defensor dos povos que buscam a liberdade, ou seja, contra o Ocidente".

Ele destaca que a posição oficial do país "não é tanto favorável ao Hamas, favorável aos palestinos, quanto é contra o Ocidente".

"Os sentimentos anti-Ocidente e anti-americano são muito fortes entre os palestinos, entre outros países árabes, e a Rússia quer se colocar como parte desse mundo anti-Ocidente, porque a Rússia há muitos anos antagoniza o Ocidente, e Putin não pretende agir de outra forma. Para ele é muito importante destacar que ele está junto com quem é anti-Ocidente", afirma.

Dessa forma, ele acredita que o governo russo viu esse caso como uma ameaça, acima de tudo, para si próprio, e não deve alterar a posição da Rússia em relação ao conflito no Oriente Médio.

"Acredito que a Rússia manterá a sua 'dança' com o Hamas, a amizade com o Irã, para que Putin consiga 'retaliar' Netanyahu. A Rússia já assumiu a sua posição nesse conflito. E isso lembra de alguma forma o que aconteceu durante a URSS, quando Moscou apoiou os países árabes em conflitos com Israel, mas no fim das contas teve que fazer as pazes com Israel e fazer concessões. Então acredito que, mais cedo ou mais tarde, a Rússia novamente terá que ir de encontro à reconciliação com Israel", completa Suleimanov.

Edição: Thalita Pires