A agricultura, muitas vezes idealizada como expressão do vínculo do ser humano com a terra, esconde, sob a superfície das estatísticas de produtividade e exportação, uma realidade amarga: a existência de milhares de homens e mulheres cuja vida é marcada pela ausência de terra, de voz e de dignidade. São agricultores por essência, mas impedidos de sê-lo na prática. Sonham com o plantio, mas vivem da colheita escassa do subemprego, da informalidade e da exclusão. Não é exagero dizer que, para esses sujeitos sociais, “não dá para ser feliz”.
O agricultor sem-terra é, antes de tudo, um símbolo da negação estrutural de direitos. Muitos nasceram no campo, têm saberes acumulados ao longo de gerações, conhecem os ciclos da natureza e o manejo ecológico da paisagem. No entanto, estão fora do sistema. Sua condição jurídica e fundiária é instável, seu acesso a crédito, assistência técnica e políticas públicas é mínimo, e sua trajetória profissional é frequentemente interrompida por deslocamentos forçados, grilagens, ameaças e pobreza persistente.
Essa marginalização não é uma falha ocasional, mas o reflexo de uma estrutura agrária concentradora, que prioriza o latifúndio improdutivo e ignora a vocação de pequenos agricultores para a produção sustentável e diversificada. O agricultor sem-terra é, portanto, a personificação de um paradoxo: o Brasil tem terra suficiente, mas não a distribui de forma justa; tem agricultores capacitados, mas os mantém à margem; tem programas, mas não os operacionaliza com equidade.
Na prática, o agricultor sem-terra vive um cotidiano de resistência. Muitos atuam como diaristas, peões de grandes fazendas, trabalhadores temporários do agronegócio. Recebem pouco, trabalham muito e são descartáveis aos olhos do sistema. A experiência de produzir para os outros, sem acesso à terra própria, fere não apenas o plano econômico, mas o plano existencial. O trabalho deixa de ser uma forma de realização e passa a ser uma forma de sobrevivência submissa.
Diferentemente do agricultor estabelecido, que projeta o futuro a partir da terra, o sem-terra vive o presente suspenso. Sem horizonte definido, sem terra para chamar de sua, sem estabilidade para planejar a vida dos filhos, sem a força de um contrato social que lhe garanta dignidade, ele se torna prisioneiro de um ciclo que corrói sua autoestima e sua esperança. É o homem que aprendeu a trabalhar com a enxada, mas que muitas vezes tem de empurrar carrinho em cidade alheia para comprar o pão.
A vulnerabilidade social e econômica vivida por agricultores sem-terra carrega um peso emocional muitas vezes ignorado pelos planejadores públicos e pelas análises tecnocráticas. A dor de não pertencer, de não ser reconhecido, de não poder construir um lar sobre um solo que se possa chamar de seu, afeta a saúde mental, a confiança pessoal, o senso de identidade.
A vida campesina, muitas vezes ensinada na dureza do trabalho e no silêncio da dor, guarda lágrimas não choradas. São homens e mulheres que não podem se fragilizar, porque a sobrevivência exige dureza, mesmo quando o coração pede descanso. Não há espaço para a sensibilidade em um sistema que exige que se cale, se curve e se mova adiante, ainda que em círculos. Não dá para ser feliz quando a própria humanidade é negada em nome de uma produtividade que nunca chega para todos.
Apesar de tudo, o sonho da terra própria permanece. Ele não é apenas econômico, mas também simbólico. Representa a autonomia, a possibilidade de educar os filhos no campo, de plantar o alimento próprio, de cuidar da natureza e de pertencer a uma comunidade enraizada. Para muitos agricultores sem-terra, a posse da terra não é apenas um título: é a condição mínima para existir com dignidade.
A luta por reforma agrária, por acesso a territórios tradicionais, por reconhecimento de territórios de povos e comunidades do campo, das águas e das florestas, é uma luta por justiça ecológica e social. Onde há acesso à terra, surgem iniciativas agroecológicas, cooperativas solidárias, agroflorestas regenerativas. Onde há terra com gente, há produção com sentido. O solo é reconstituído, os saberes são reaplicados, a autoestima retorna.
A solução não virá apenas com declarações institucionais. É preciso um reposicionamento radical das políticas públicas, das universidades, das instituições de assistência técnica e da sociedade civil em direção a um modelo agrícola verdadeiramente inclusivo e ecológico. Isso exige reforma agrária com justiça territorial, priorizando áreas produtivas, respeitando ecossistemas e garantindo infraestrutura básica.
Exige a valorização dos saberes tradicionais e da agroecologia, como ferramentas técnicas e políticas de reconstrução do território. Educação do campo que reconheça a cultura e as lutas do agricultor sem-terra, oferecendo formação crítica e técnica voltada à autonomia. Políticas de crédito, seguro agrícola, comercialização e assistência técnica desburocratizadas, moldadas para atender aos agricultores de base comunitária. Proteção jurídica contra grilagens, despejos e violência no campo, com responsabilização efetiva de agentes que atacam os direitos humanos no meio rural.
Nenhuma nação pode se considerar desenvolvida se mantém parte essencial de seu povo excluída do direito mais básico: o de produzir o alimento com dignidade. O agricultor sem-terra, quando apoiado, transforma paisagens e comunidades. Quando abandonado, sobrevive às custas da própria felicidade, resistindo em silêncio.
Enquanto o sistema continuar a negar terra a quem sabe cultivar e invisibilizar aqueles que produzem alimento com as mãos e com o coração, não dá para ser feliz. Mas é justamente a persistência desse sonho que revela a força de quem, mesmo sem terra, planta esperança.
*Afonso Peche Filho é pesquisador Científico do Instituto Agronômico de Campinas (IAC).
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.