O Ministério Público Federal (MPF) deu um passo decisivo na defesa dos direitos de povos e comunidades tradicionais do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, ao emitir, na terça-feira (9), uma recomendação formal à Agência Nacional de Mineração (ANM). O pedido visa a suspensão e revisão de todas as autorizações de pesquisa e extração de lítio em Araçuaí e cidades vizinhas, além de solicitar a consulta prévia, livre e informada dessas populações, antes de qualquer nova concessão minerária.
A medida surge após um inquérito civil do MPF constatar o descumprimento de direitos étnico-raciais e territoriais, em face do avanço da mineração do lítio na região. Dados de fevereiro de 2024 revelam que mais de 6,2 mil processos de exploração mineral estão em andamento ou em distintas fases na área, evidenciando a crescente pressão sobre ecossistemas e comunidades.
Apesar de a ANM ter alegado que a legislação minerária não prevê a obrigatoriedade da consulta prévia, o MPF refuta essa posição. O órgão destaca que a postura da agência contraria a legislação brasileira e tratados internacionais, em especial a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Essa convenção, reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) com status supralegal, garante a necessidade do diálogo e do consentimento das comunidades antes da aprovação de projetos que as afetem diretamente.
Água e território ameaçados
Para quem vive na linha de frente desses impactos, a realidade é dura e transformadora. José dos Santos, indígena Aranã Caboclo e morador de Poço Dantas, descreve uma mudança drástica em sua vida e na de sua comunidade. “Quando eu cheguei, isso aqui era um paraíso, uma benção. Todo mundo trabalhava e tinha seu dinheirinho”, relembra, contrastando com a vida atual marcada por “poeira e barulho, dia e noite.”
Vivendo muito perto da pilha de rejeitos e em frente ao Ribeirão Piauí, Santos testemunha a degradação diária. “Olha a situação desse córrego. Olha como ele está. Como você vai viver uma coisa dessa? Antes, nós podíamos fazer nossas vazantes aqui. Hoje, até as árvores estão doentes.”
A observação dele alinha-se com as perícias realizadas pelo MPF. Relatórios técnicos criticaram o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da Sigma Mineração, destacando deficiências em relação aos recursos hídricos e o risco de rebaixamento do nível do Ribeirão Piauí para a lavra.
No laudo, a perita aponta que a situação é particularmente crítica, visto que o Ribeirão Piauí constitui a principal fonte de abastecimento de água para os moradores da área e comunidades rurais no entorno, especialmente em períodos de estiagem.
Além da água, a mobilidade e o acesso à cidade foram comprometidos. “Agora, a gente está aqui preso. Antes, quando precisávamos ir à Araçuaí, íamos”, narra o indígena, contrastando com a dificuldade atual de locomoção devido a estradas fechadas e desviadas.
Os impactos na saúde são outra preocupação central. “A mineração acabou com o ganha pão da gente e aumentou foi a doença. Com essa poeira, ninguém tem saúde. As crianças ficam doentes”, afirma.
A poeira intensa e o barulho constante das operações, especialmente à noite, torna o descanso impossível. “É cada batida que a gente acorda. Se passar de 23h sem dormir, você não dorme mais. Só barulho”, desabafa.
Chapada do Lagoão, APA ameaçada
A preocupação com a água se estende a áreas cruciais como a APA Chapada do Lagoão, considerada a “caixa d’água de Araçuaí” por abrigar mais de uma centena de nascentes catalogadas. Perícias do MPF concluíram que o Projeto Neves, da empresa Atlas Lithium, tem causado severa restrição hídrica e de acesso à água dentro da APA, com obras que resultaram no rompimento de tubulações de abastecimento em comunidades como Calhauzinho Passagem da Goiaba.
No dia 3 de setembro, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), por meio de sua Coordenadoria de Inclusão e Mobilização Social (CIMOS), recomendou ao conselho da APA a anulação da votação que autorizou a pesquisa mineral de lítio na região.
O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) já havia denunciado a violação dos direitos de participação das comunidades quilombolas de Giral, Malhada Preta e Córrego do Narciso do Meio, além de outras populações indígenas e tradicionais que dependem economicamente e culturalmente da Chapada, alegando a não realização da consulta prévia. O conselho da APA tem 10 dias para se manifestar.
A complexidade e a controvérsia em torno da APA foi sublinhadas na quinta-feira (11) por uma tentativa de impedir a deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT), presidente da Comissão de Meio Ambiente da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, de acessar o local para uma atividade de fiscalização.
A parlamentar e sua equipe foram barrados por um grupo que obstruiu a via. A deputada relatou que a ação foi organizada e seu veículo chegou a ser cercado, o que a levou a registrar o ocorrido na Polícia Militar. Ela destacou a gravidade de cercear o trabalho legislativo e questionou a tentativa de impedir a comissão de “verificar os problemas e os estragos que a mineração na região já tem produzido”. Cerqueira ainda denunciou que o vice-prefeito de Araçuaí estaria entre os que impediram a passagem.
As perícias do MPF revelaram a tomada irregular de territórios de comunidades tradicionais, resultando na desestruturação das economias locais e na devastação de ecossistemas nativos. Em Araçuaí, há sobreposição de processos minerários sobre territórios de ao menos duas comunidades. No total, 248 comunidades em 19 municípios do Vale do Jequitinhonha foram identificadas como impactadas pela mineração, seja por sobreposição territorial ou infraestrutura.
Racismo sistêmico e a defesa da identidade
A recomendação do MPF vai além dos impactos ambientais e territoriais, sublinhando a persistência do racismo e da discriminação racial que vulnerabiliza essas comunidades. A negação histórica da identidade, a restrição de direitos sobre a propriedade e o acesso a recursos naturais são manifestações dessa discriminação estrutural.
O ministério ainda aponta que a mineração afeta diretamente o artesanato em barro, considerado Patrimônio Cultural de Minas Gerais, atingindo o sustento de muitas famílias, em especial as mulheres artesãs.
Para o procurador da república Helder Magno da Silva, autor da recomendação, “a exploração do lítio não pode repetir um ciclo histórico de exploração predatória e exclusão social no Vale do Jequitinhonha. É dever do Estado garantir o direito à consulta prévia, livre e informada, para que as comunidades possam decidir sobre o futuro de seus territórios e modos de vida.”
Próximos Passos
A ANM tem um prazo de 20 dias para acatar a recomendação do MPF, adotando as providências para rever as autorizações existentes, suspender as atividades em andamento sem a devida consulta prévia e abster-se de conceder novas licenças sem o cumprimento do diálogo com as comunidades. Caso a agência não atenda aos pedidos, o MPF poderá recorrer a outras medidas administrativas e judiciais para garantir o cumprimento da lei e a proteção dos direitos dessas populações.
O outro lado
Em resposta às alegações do Ministério Público Federal e às críticas ao seu Estudo de Impacto Ambiental, a Sigma Lithium refutou categoricamente as afirmações, reafirmando a plena conformidade do Projeto Grota do Cirilo com a legislação brasileira e a posse de todas as licenças ambientais, além de negar a presença de povos originários no raio legal do empreendimento.
A empresa declarou que seus estudos foram conduzidos com robustez técnica e aprovados por órgãos competentes, destacando ainda as ações para proteger o Ribeirão Piauí — dividindo a cava para preservar o curso d’água e monitorando o uso outorgado de água do Rio Jequitinhonha, enquanto aponta que a má qualidade da água do Piauí era preexistente, mas com medidas voluntárias de apoio às comunidades.
O Brasil de Fato MG entrou em contato com a Atlas Lithium e o vice-prefeito de Araçuaí para comentarem sobre as denúncias, mas não obtivemos respostas até a publicação desta matéria. O espaço segue aberto para manifestações.