“Foram 30 minutos de pedidos de socorro. Nunca é apenas uma briga. Às vezes é o fim da vida de alguém. Minha tia era tranquila, calma e ainda assim foi vítima.” O desabafo é de Tais Alves, durante uma vigília em luto pela sua tia, Simone Oliveira dos Santos, realizada na última sexta-feira (19). O ato foi organizado pelo Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e Região (SindBancários) e contou com a presença de familiares, colegas de Simone, bancários, movimentos sociais e parlamentares.
Trabalhadora do setor de limpeza da entidade há cerca de cinco anos, Simone, 42 anos, foi assassinada a facadas no bairro Morro Santana, na zona norte de Porto Alegre, pelo ex-companheiro, 46 anos, que não aceitava o fim do relacionamento. Crime teria acontecido diante dos filhos menores. Preso em flagrante por feminicídio, ele teria ligado para a irmã da vítima e dito que “fez besteira”.
Conforme divulgado pela imprensa, o ex-companheiro tem antecedentes policiais por desobediência, lesão corporal e vias de fato. A diretoria do SindBancários decretou luto oficial e está prestando todo apoio à família.

Falando em nome da família durante o ato, Tais Alves disse que a morte não foi um caso isolado. “Infelizmente, não foi a primeira na família. Minha tia jamais imaginaria que isso pudesse acontecer com ela”, lembrou. Há cinco anos, uma irmã de Simone foi vítima de feminicídio.
Alves descreveu o velório como um momento de dor extrema. “Enquanto minha tia era velada, meu primo pequeno dormia em um carro e as filhas estavam em um banco frio, sem saber o que fazer. Para nós, é um pesadelo, uma dor que nunca vai passar e que poderia ter sido evitada e não foi.” Em maio, a vítima havia feito um registro por perseguição contra o feminicida, porém, segundo a Brigada Militar, não quis pedir medida protetiva de urgência.
Ela pediu que o caso não seja tratado como apenas mais um. “Gostaríamos de mudança e de justiça. Que cada delegado e policial dê atenção. Não é porque minha tia não pediu medida protetiva, como saiu na mídia, que sua morte deve ser em vão. Muitas sequer têm tempo para isso. E, sinceramente, acredito que mesmo que tivesse feito, o destino já estava traçado. Mas isso precisa mudar.” Simone era mãe de cinco filhos, sendo os dois mais novos com o ex-companheiro, cuidava de um enteado e avó de dois netos.
Uma vida dedicada à família e ao trabalho
Durante o ato, colegas que trabalharam diretamente com Simone lembraram dela com carinho. Maria Cristina Costa comentou: “Nós trocávamos de turno, tomávamos café juntas. Ela sempre chegava alegre. Quando cheguei fragilizada, foi ela quem me deu força e coragem. É uma perda imensa.”
Sussan Bivviana Gomez Saenz destacou a crueldade do crime: “Ele calculou cada momento. Simone nunca permitiu que um homem colocasse o pé sobre ela, trabalhava de domingo a domingo, era o motor da família. Esse crime tirou dela o direito de viver e da família o direito de tê-la presente.”
Assessora em Saúde da Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras em Instituições Financeiras (Fetrafi) e recém aposentada após 30 anos de trabalho na saúde do sindicato, Jacéia Netz, lembrou com emoção: “A Simone, para mim, era aquele sorriso que, toda vez que eu precisava de alguma coisa, abria a porta. Ela botava a mãozinha no avental, tirava a chave, abria. Muitas vezes deixava chocolate, que no departamento de saúde a gente recebe muitos chocolates. Eu deixava em cima da mesinha e, no outro dia, tinha um coraçãozinho de vocês agradecendo.”
Netz reforçou que Simone não pode ser reduzida a mais um caso de violência. “Ela não pode ser esquecida. Ela tinha uma vida, filhos e netinhos. Vai precisar de nós, de formas que ainda não sabemos, e a gente tem que descobrir como fazer isso.”

Transformar a dor em mobilização
“Hoje nos manifestamos em memória da Simone e para dar um basta no feminicídio. Não vamos nos calar”, afirmou a secretária-geral do SindBancários, Sabrina Quinteiros Muniz. De acordo com ela, Simone era uma mulher alegre e trabalhadora, que há cinco anos fazia a limpeza do sindicato no turno da noite. “Era mãe, avó, o esteio da família, sempre com um sorriso, sempre na troca de horário. Agora é uma família despedaçada.”
Questionada sobre situações de violência, Muniz contou que Simone havia mencionado apenas a separação e pedidos de alimentos. “Pelos relatos da família, aparentemente não havia risco. O agressor era visto como alguém trabalhador, sem vícios, aparentemente inofensivo. E olha no que deu”, disse.
Emocionada, a dirigente compartilhou sua própria experiência. “Com menos de 10 anos, perdi uma tia para o feminicídio. Não me deixaram ir ao velório. Ao ver as crianças no enterro da Simone, senti que estava vivendo aquele momento de despedida que me foi negado. Mas também projetei toda a dor que essas crianças vão enfrentar.”
Muniz destacou ainda que o sindicato atua diretamente no enfrentamento à violência de gênero. “Temos o projeto Basta – não irão nos calar, que oferece atendimento 100% feminino a vítimas de violência doméstica, assédio e outras situações. Estamos desenvolvendo um protocolo para denúncias de assédio dentro dos bancos e promovendo rodas de conversa e palestras. No próximo dia 25, faremos um debate sobre feminicídio.”
A dirigente ressaltou a necessidade de apoiar a família. “São seis crianças: uma filha de cerca de 20 anos, uma de 11, um filho de 6 anos autista, além de um enteado de quem ela também cuidava. E ainda os dois bebês gêmeos da filha mais velha.”
Ao final, deixou uma mensagem: “Quando uma de nós morre, todas morremos um pouco junto. Precisamos transformar o luto em luta. Não é possível que a gente não melhore.”

Solidariedade
Representando o mandato da deputada Sofia Cavedon (PT), Elisamar Rodrigues levou solidariedade aos colegas e familiares. “Viemos com muita dor, mas também com compromisso de seguir na luta contra a violência de gênero, de raça e social no nosso país”, disse.
Rodrigues falou de um lugar pessoal: em 2016 perdeu a sobrinha de 21 anos para o feminicídio. “Foi a primeira neta da minha mãe, minha primeira sobrinha, assassinada pelo namorido. Essa dor é corrosiva. E mesmo assim temos que seguir, mesmo sem saber de onde tirar força.”
Ela denunciou a naturalização da violência, lembrando a fala de um “legalista branco” que minimizou o conceito de feminicídio: “Olha a desumanidade de falar uma nojeira dessas.” Criticou ainda a rejeição de emenda que buscava ampliar delegacias especializadas e lembrou a Lei 15.484/2020, de autoria de Cavedon, que prevê prevenção da violência de gênero nas escolas.
Vereadoras denunciam feminicídio como epidemia
As vereadoras da Capital Grazi Oliveira e Karen Santos, ambas do Psol, criticaram a ausência de políticas públicas efetivas e denunciaram a escalada da violência contra as mulheres.
Grazi Oliveira, que preside a Procuradoria Especial da Mulher na Câmara de Porto Alegre, afirmou que o estado vive uma “epidemia de feminicídios”, com mais de 60 mulheres assassinadas somente em 2025. A vereadora lembrou o caso recente de uma mulher morta pelo companheiro, tratado pela mídia e pela polícia apenas como “esquartejamento”. Para ela, esse tipo de abordagem invisibiliza o caráter de feminicídio do crime.
“Precisamos ocupar os espaços de poder, investir em educação para igualdade de gênero e combater a narrativa da extrema direita”, disse. Anunciou projeto de lei que cria programa de combate à violência nas escolas.
Karen Santos reforçou o caráter estrutural do problema. “O patriarcado é estrutural, e as políticas públicas estão condicionadas ao teto de gastos e ao pagamento da dívida. No dia em que Simone foi assassinada, estávamos lutando por auxílio-aluguel para mulheres vítimas de violência. O valor aprovado não permite sequer alugar uma casa digna.”
Na última quarta-feira (17), o Plenário da Câmara Municipal de Porto Alegre manteve o veto parcial do prefeito Sebastião Melo (MDB) ao projeto de lei que concede auxílio-aluguel às mulheres vítimas de violência doméstica. O texto estabelecia um benefício equivalente a um salário mínimo mensal por 12 meses prorrogável por mais 12 meses. Com o veto aos artigos 3º e 5º do texto, o prefeito retirou as garantias de valor e tempo do benefício, transferindo a definição desses termos para um decreto do Executivo.
Ela denunciou a baixa prioridade da pauta feminina em 2024. “A Câmara aprovou mais projetos ligados à causa animal do que aos direitos das mulheres. Esse fardo está muito pesado para nós, mulheres feministas e socialistas. Precisamos disputar a narrativa com os homens que estão sendo capturados pela extrema direita, pelo ressentimento e pelo patriarcado em crise.”
A parlamentar criticou a lógica de comemorar vitórias simbólicas, sem impacto real: “O estado aprova leis sem orçamento, cria secretarias sem estrutura. Não podemos nos contentar com migalhas enquanto seguimos indo a passos largos rumo à barbárie. As nossas mulheres estão morrendo.”

Invisibilidade das mulheres negras e políticas públicas
Dirigente da Fetrafi e Secretaria de Combate ao Racismo da CUT-RS, Isis Garcia, destacou a grandeza da trabalhadora. “A Simone já cuidava dos filhos da irmã, que também foi vítima de feminicídio. Tentou dar dignidade para os seus e certamente lutou até o fim pela sobrevivência.”
Garcia ressaltou a vulnerabilidade e invisibilidade das mulheres negras. “Quando uma mulher preta é assassinada, ela é apenas uma estatística. Não sai nos meios de comunicação, a não ser que nós, ativistas, produzamos conteúdo.” Criticou ainda a forma como a mídia trata os agressores. “Mesmo quando são réus confessos, são apresentados como empresários ou publicitários, e não como assassinos. Isso é produto do patriarcado.”
Ela conclamou: “Cada homem deve ensinar seus filhos e sobrinhos que não têm direito sobre o corpo de uma mulher. Precisamos unificar nossas vozes, que tantas vezes são caladas pela violência.”
Garcia analisou o assassinato de Simone como reflexo de uma sociedade doente. “Isso não é desequilíbrio, é autoritarismo de homens que não aceitam que a mulher é um indivíduo com direito a ser feliz. O legado da Simone precisa permanecer vivo. Ela era aquela mulher com o sorriso doce, que mesmo com dor, pensava primeiro nos outros. Nós, mulheres, precisamos aprender a nos colocar em primeiro lugar.”
Necessidade de mudanças culturais
A jornalista e militante Télia Negrão, do Levante Feminista contra o Feminicídio, lembrou que Simone foi a 61ª vítima no RS em 2025. “Depois dela, mais duas. Vivemos a expressão máxima e mais cruel da misoginia, um ódio que tem gênero, cor, raça, orientação sexual, território e moradia. Mostra o quanto ser mulher e não morrer de feminicídio é difícil em nosso país.”
Negrão destacou que a maioria das vítimas são mulheres negras e que grande parte dos crimes ocorre dentro de casa. “A principal arma é a faca, objetos domésticos. Mas cada vez mais vemos armas de fogo, em função da disseminação feita pelo fascismo no Brasil.”
Para Negrão, é urgente promover mudanças culturais. “Basta que não sejamos obedientes, que não silenciemos, para que sejamos alvo. Precisamos de políticas públicas e de reeducação, especialmente de homens e meninos. Simone foi uma de nós. Eu tenho um pedacinho aqui desse sindicato. Aqui eu trabalhei.”

Chamado aos homens e enfrentamento da violência estrutural
Diretor da pasta de Diversidade e Combate ao Racismo do Sindicato, Paulo Roberto dos Santos Caetano, reforçou a responsabilidade masculina. “Não estou aqui apenas para prestar solidariedade à família, mas para falar de um problema que muitos homens ignoram. Quando a gente escolhe uma companheira para morar, para conviver, para trocar, não é uma questão de exploração, não é uma questão de posse de propriedade. Precisamos mudar nossas relações, respeitar, saber aceitar quando um relacionamento chega ao fim.”
Ele também alertou para os números alarmantes. “As estatísticas sobre feminicídio, sobretudo contra mulheres negras, são assustadoras. Precisamos de reflexão, ações concretas, políticas públicas e redes de apoio.” Segundo o 19º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, das 1.492 mulheres vítimas de feminicídio em 2024, 63,6% eram negras.
O desabafo terminou com um apelo direto: “Basta de feminicídio. Basta de matar mulheres. Basta de termos nossas companheiras assassinadas. Eu sou um homem negro, filho de uma mulher negra, irmão de três mulheres negras, marido de uma mulher negra, pai de uma mulher negra, e venho aqui porque eu temo pela minha filha, temo pelas minhas irmãs. E honro a minha mãe que já partiu.”
Enfrentamento coletivo
Funcionária da Caixa Econômica Federal, delegada sindical e integrante da Frente Gaúcha em Solidariedade ao Povo Palestino, Claudia Santos destacou que enfrentar a violência contra as mulheres, sobretudo negras, exige mais do que políticas públicas paliativas. “Precisamos de recursos e segurança, mas é fundamental romper com a lógica racista, patriarcal e supremacista que assassinou Simone.”
Ela denunciou a negação do feminicídio e dos debates de gênero, lembrando que a violência atravessa todos os espaços. “Essa violência cotidiana se alimenta de uma lógica colonial que atinge especialmente as mulheres negras, a mesma que destrói famílias aqui e na Palestina.”
Como saída, defendeu a auto-organização e citou a Ocupação Mirabal, em Porto Alegre, como exemplo. “Nosso papel não é assistir de longe, mas forçar mudanças e construir saídas coletivas.”
A luta coletiva contra o feminicídio
Diretora de juventude e gênero, Cláudia Stella Resende, reforçou o desafio diante do aumento da violência. “Esse é o nosso maior desafio agora, como mulheres no movimento feminista. A violência não começa no feminicídio nem termina nele. Existe uma família que segue sendo vítima dessa violência.”
Ela lembrou que a naturalização contribui para perpetuar o ciclo: “Cada vez que se passa pano para um assediador, estamos contribuindo para que essa violência continue. Simone era uma mulher trabalhadora, que garantia o sustento dos filhos, netos e sobrinhos. A gente se vê sem chão.”
Resende ressaltou a necessidade de luta constante. “Cada dia uma Simone é assassinada. Até quando a vida das mulheres será interrompida pela violência? Precisamos estar prontas para ouvir as mulheres, porque muitas vezes elas não encontram a quem recorrer.”
Por fim destacou os recortes de classe e raça e reforçou o convite para o encontro do dia 25, que debaterá estratégias de enfrentamento. “É algo muito grave, que nos atinge todos os dias. Para nós, que convivíamos com a Simone, é um momento de muita dor.”